O
novo tem que ser visto com os olhos do novo, aconselharam Lenio Luiz
Streck e Dierle Nunes já na véspera da entrada em vigor do novo Código
de Processo Civil.[
1]
A
comunidade jurídica processual civil vê-se, desde 2009, quando se
concebeu o Anteprojeto de CPC por iniciativa do Senado Federal, às
voltas com acaloradas e riquíssimas discussões acerca da capacidade, ou
não, de uma nova codificação processual civil produzir amplos e
consistentes resultados no sentido de reduzir-se o tempo de tramitação
das ações judiciais.
Este, não nos iludamos, é um dos mais
visíveis desejos da sociedade civil quando se escuta falar da entrada em
vigor de um novo CPC. O jurisdicionado, que em geral é leigo, almeja,
fundamentalmente, a redução do tempo exigido para que se ponha termo à
questão debatida em juízo.
Pessoalmente, cremos que o novo CPC
representa, positivamente, um potente elemento de atualização da
legislação processual, fundamentalmente porque permitiu, durante
absolutamente democrático processo legislativo, colher dos mais variados
setores da comunidade jurídica sugestões e proposições que permitiram
assumirmos um resultado pungentemente satisfatório: temos, enfim, um CPC
plural, porque rico em influências de diversos matizes e naturezas,
provenientes de órgãos da magistratura, da advocacia privada, da
advocacia pública, do Ministério Público, de setores acadêmicos
relevantes com distintas origens geográficas e de diferentes orientações
doutrinárias.
A implementação de um sistema de criação e de
observância de precedentes, o estabelecimento da conciliação e da
mediação como premissas básicas quando do processamento de uma ação, a
criação de um rito obrigatório a ser observado relativamente à
desconsideração da personalidade jurídica (em evidente e necessário
respeito ao devido processo legal), a simplificação e a organização das
formas de requerimento e de concessão das tutelas de urgência, dentre
outras figuras, perfazem demonstrações de quão numerosos são os aspectos
positivos deste nosso novo CPC.
A despeito de enxergarmos nosso
novo CPC com muito otimismo e com sincera esperança de dias melhores,
parece-nos que o problema do
tempo do processo não perpassa, em
termos de resolução, por uma nova codificação. Um novo CPC poderá
representar, sim, potente analgésico para os males decorrentes do tempo
processual, porém não nos parece que estamos diante da cura definitiva
de tal patologia.
Ipso facto, um novo CPC não corrige,
per se,
dificuldades materiais, administrativas, organizacionais e de recursos
humanos que assolam a estrutura judiciária e que, de tal arte,
respondem, estas sim em caráter preponderante, pela maldição do tempo
processual, se assim podemos chamar a incrível morosidade que acoima a
tramitação de causas na Justiça.
Tais problemas são, e assim nos
parece, em grande parte resolúveis em âmbito administrativo,
correcional, orçamentário. O Conselho Nacional de Justiça e sua
indefectível Meta 2 não nos deixam mentir: em virtude de tal iniciativa
do CNJ, de color administrativo evidente, ocorreram impactos
sobremaneira positivos na redução do tempo de um sem número de demandas
que jaziam nos escaninhos forenses e que foram iniciadas antes de 2006.
Goste-se
ou não, o fato é que temos um novo CPC. O momento de lamuriar a
respeito e de vociferar por não ter esta ou aquela proposição levada
adiante durante o processo legislativo respectivo já é superado. Temos a
codificação processual nova, e tratar este novo CPC sem o menor laivo
de boa vontade a respeito perfaz, e pedimos escusas aos que pensam
diferente, mero exercício de masoquismo processual, afinal o nosso novo
CPC não será: Jé é!
E seguimos asseverando que, da mesma forma que
acreditamos que o novo CPC não pode suportar um encargo de impossível
desincumbência para si (aceleração do processamento de causas), pensamos
que o oposto é igualmente verdadeiro: nas situações em que o novo CPC
dilargou prazos (novo CPC, artigo 219, cômputo de prazos em dias úteis
apenas) ou estabeleceu recessos (20 de dezembro a 20 de janeiro), tais
aspectos não podem, em absoluto, ser responsabilizados por atentar
contra a razoável duração do processo.
A este respeito, somos
convidados, pelas circunstâncias recentemente verificadas, a analisar
criticamente a Nota Técnica 01/2016, emitida pelo Fórum Nacional de
Juizados Especiais (Fonaje) em 4 de março de 2016.
De conformidade
com tal nota técnica, aos prazos dos juizados especiais cíveis não se
aplicaria o disposto no artigo 219 do novo CPC, que estabelece a
contagem de prazos processuais apenas em dias úteis, desconsiderando-se
os dias não úteis. Em suma, de conformidade com a nota técnica em
relevo, haveria incompatibilidade entre o princípio da celeridade dos
Juizados Especiais e o cômputo de prazos apenas em dias úteis (novo CPC,
artigo 219), além de não se aplicar o artigo 219 do novo CPC à Lei
9.099/95 por ausência de expressa precisão a respeito no primeiro.
Com
a devida vênia a quem pensa de maneira distinta, não procedem ambas as
justificativas aduzidas pelo Fonaje em sua Nota Técnica 01/16 para
afastar do rito da Lei 9.099/95 o cômputo de prazos apenas em dias
úteis.
A primeira das justificativas erguidas na Nota Técnica
01/2016, qual seja, a de que princípio da celeridade que norteia a
aplicação da Lei 9.099/95 a tornaria incompatível com a aplicação do
cômputo de prazos exclusivamente em dias úteis, peca pela falta de
amparo na razoabilidade e na verificação da prática quotidiana do que
sucede no âmbito dos juizados especiais cíveis.
De fato, não é
razoável ponderar que contar apenas dias úteis para fins de cumprimento
de prazos no âmbito da Lei 9.099/95 tornaria o rito desta moroso, ou
ainda mais moroso (pragmaticamente falando). É de domínio público que as
ações judiciais que tramitam nos juizados especiais cíveis Brasil afora
exigem meses e anos para que atinjam sua conclusão, meses e anos estes
que não deixarão de ser, com o perdão pela repetição, meses e anos
porque alguns poucos dias não úteis foram excluídos do cômputo de
prazos!
Semelhante debate estabeleceu-se quando da tramitação do
Projeto de novo CPC na Câmara dos Deputados: algumas poucas vozes
levantaram-se contra o desprezo aos dias não úteis para fins de contagem
de prazos sob a justificativa de que tal atrasaria o tramitar dos
feitos. Manteve-se, porém, a regra do cômputo de prazos apenas em dias
úteis pois considerou-se, com acentuada maioria de opiniões, que excluir
alguns poucos dias não úteis do cômputo de prazos não ocasionaria
demora, protelação ou morosidade dignas de nota, e não seriam estes
parcos dias não úteis não computados que retardariam a atividade
jurisdicional.
O que prevaleceu a respeito, aliás, foi a ideia de
que é por vezes absurdamente desumana, para o jurisdicionado e para seu
advogado, a prática de se considerar dias não úteis no cômputo de prazos
processuais, pois tal conduta, por não relevar que em dias não úteis
não há expediente em repartições públicas ou em muitas particulares
(para fins de obtenção de cópias e de elementos de prova, por exemplo),
pode representar nefasto cerceamento de acesso à justiça. Ou alguém
duvida do que ora se afirma quando se está diante do temível — e absurdo
— início do prazo de cinco dias às quartas-feiras para a prática de
determinado ato processual, caso em que, a rigor, de cinco dias totais
temos, quando muito, dois ou três úteis integrais, excluindo-se o dia da
publicação, o dia da prática do ato e o final de semana?
E, se o
processo for físico e tramitar em comarca longínqua, por vezes em outro
Estado, o problema só faz agigantar, exigindo trabalho hercúleo para a
parte e para seu advogado.
O segundo argumento erigido na nota
técnica 01/2016 do Fonaje, no sentido de que as disposições do CPC novo
apenas se aplicarão ao rito da Lei 9.099/95 nas hipóteses de expressa
previsão permissiva a respeito (artigos 1063 a 1066 do novo CPC, em que
não se inclui qualquer referência à contagem de prazos em dias úteis,
apenas) igualmente nos parece robustamente equivocado,
vênia concessa.
Dizer
que a Lei 9.099/95 é imune ao cômputo dos prazos em dias úteis apenas
(como determina o Novo CPC) porque se trata de lei específica e
informada pelos princípios da celeridade e da razoável duração do
processo, que não consistiriam em princípios informativos do novo CPC,[
2] perfaz rematado equívoco, notadamente à luz do artigo 4º da nova codificação, cuja clareza é solar:
“Art. 4º As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.”
Notem
bem: hoje, induvidosamente, não é de maneira alguma possível afirmar-se
que apenas a Lei 9.099/95 seria balizada pelo princípio da razoável
duração do processo, e não o seria o novo CPC. Em face da clareza do
artigo 4º do CPC novo, cujo teor foi acima reproduzido, é forçoso
concluir que ambos, Lei 9.099/95 e novo CPC, têm como bússola os
princípios da celeridade e da razoável duração do processo, o que elide
qualquer adução de que seriam diplomas legislativos dotados de balizas
díspares ou colidentes.
E há mais a ponderar: a Lei 9.099/95, como
consta do teor da própria nota técnica 01/2016 que ora questionamos,
não conta com disposições expressas acerca do cômputo de prazos apenas
em dias úteis.[
3]
Não
contando com disposições expressas acerca dos prazos (a não ser o prazo
de dez dias para interposição de recurso inominado e o de cinco dias
para oposição de embargos de declaração), e especialmente não contando
com regras expressas sobre
como se contam os prazos, a Lei 9.099/95 forçosamente socorre-se do regime geral do CPC para fins de estabelecimento de critérios de cômputo de prazos!
E
desde 1995 funciona assim: os prazos inerentes ao rito da Lei 9.099/95
são computados obedecendo-se à regra geral de cômputo de prazos do CPC.
E, se tal regra geral modificou-se, passando a ser considerados apenas
os dias úteis (artigo 219 do Novo CPC), não se afigura admissível,
casuisticamente e sob premissas inválidas, aduzir que a regra geral de
cômputo de prazos do novo CPC não se aplicará ao rito dos Juizados
Especiais Cíveis.
E, de remate, cumpre-nos trazer à discussão o disposto no artigo 1º do novo CPC:
“O
processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os
valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da
República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste
Código.”
As disposições do CPC hoje vigente, conforme seu
primeiro artigo, são ordenatórias, disciplinadoras e balizadoras do
processo civil como um todo, de maneira orgânica, assumindo verdadeira
função organizadora do processo civil, não se aplicando apenas e
tão-somente quando houver disposição expressa a respeito em sentido
contrário, o que não ocorre na Lei 9.099/95 relativamente ao cômputo de
prazos, dado ser tal lei omissa a respeito.
E, sendo omissa a Lei
9.099/95 a respeito de como se contam os prazos, obviamente deve ser
aplicada a regra geral constante do artigo 219 do novo CPC, a saber,
contam-se apenas os dias úteis!
Não se pode interpretar o novo com
os olhos dirigidos ao que foi e não mais é. Não é intelectualmente
admissível que se continue a divorciar o novo CPC da Lei 9.099/95 como
se fossem diplomas legislativos contrastados em termos de princípios
informativos: são, a rigor, diplomas positivamente conectados em termos
de celeridade e razoável duração do processo, e o primeiro serve de
fonte informadora à segunda, inexistindo qualquer descompasso entre
ambos.
No que uma é omissa (Lei 9.099/95, no tocante à regra de
cômputo de prazos), o outro lhe preenche, dando-lhe diretriz (o Novo CPC
e seu art. 219), como sempre ocorreu naquilo que não contasse com
contrariedade expressa na Lei 9.099/95 relativamente ao CPC.
Para
perceber o novo, e devemos realmente percebê-lo, tem-se que usar a lente
correta, a lente nova, desembaçada e com boa vontade, senão vai-se ver o
novo como se velho fosse. E ver não é perceber, pois
perceber é algo além, é extrair do objeto de atenção toda sua riqueza e
sua razão de ser, é captar sua inteligência. E temos que perceber o
nosso novo Código de Processo Civil.