"Eu não recearia muito as más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Não há texto de lei que não deixe campo à interpretação.

A lei é morta. O magistrado vivo. É uma grande vantagem que ele tem sobre ela" - Anatole France

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Efetividade da Justiça criminal exige mudanças pontuais na prescrição penal

OPINIÃO










A discussão sobre a efetividade da Justiça criminal e o combate à impunidade tem catalisado os operadores do Direito e a opinião pública em geral, dando margem a propostas dos mais variados matizes, muitas delas controversas quanto a sua constitucionalidade.
A nosso ver, pontuais modificações nas regras da prescrição penal contribuiriam para esse propósito.
Tarefa árdua é abordar, de maneira sintética, questão complexa como a da prescrição penal.
No intuito de possibilitar sua compreensão até mesmo por um leigo, tentaremos simplificar essa abordagem, assumindo dolosamente os riscos a tanto inerentes.
Prescrição significa a perda do poder de punir do Estado pelo decurso do tempo. Cometido um crime, o Ministério Público, nos crimes de ação penal pública, deve deduzir a pretensão acusatória em juízo a fim de que o Judiciário, observadas todas as garantias constitucionais, possa julgá-la, absolvendo ou condenando o réu.
O Estado tem um prazo para impor a pena (prescrição da pretensão punitiva) e um prazo para executá-la após o trânsito em julgado da condenação (prescrição da pretensão executória), sob pena de perder o poder de punir.
O Código Penal, em seu art. 109, faz um escalonamento dos prazos de prescrição, que variam de 3 a 20 anos, segundo a pena máxima cominada ao crime.
A prescrição da pretensão punitiva, antes do trânsito em julgado, é regulada pela pena máxima cominada ao crime (art. 109, CP).
Há uma razão lógica para isso: como ainda não há uma sentença condenatória individualizando a pena a ser aplicada no caso concreto, o parâmetro abstrato só pode ser a maior pena possível. Assim, a prescrição da pretensão punitiva do crime de corrupção passiva (art. 317, CP), ao qual se comina pena de 2 a 12 anos de reclusão, ocorre em 16 anos (art. 109, II, CP).
Após o trânsito em julgado da condenação, vale dizer, esgotada a possibilidade de recursos, a prescrição não mais se regula pela pena máxima prevista em lei, mas sim pela pena efetivamente aplicada pelo juiz (art. 110, CP).
No referido caso da corrupção passiva, se concretamente vier a ser imposta a pena mínima de 2 anos de reclusão, a prescrição da pretensão executória se verificará em 4 anos (art. 109, V, CP).
Há, portanto, dois marcos bem definidos: a) antes do trânsito em julgado da condenação, a prescrição se regula pela pena máxima abstratamente prevista em lei para o crime; e b) depois do trânsito em julgado da condenação, a prescrição se regula pela pena concretamente aplicada pelo juiz na sentença.
Se a prescrição fosse regulada exclusivamente dessa forma, o sistema seria funcional.
Nele, todavia, há uma jabuticaba.
Em linhas gerais, quando a acusação se conforma com a condenação e só a defesa continua a recorrer, a prescrição da pretensão punitiva passa a ser regulada pela pena efetivamente aplicada na sentença, e não mais pela pena máxima cominada ao crime.
Esse é o verdadeiro estímulo para que infindáveis manobras recursais sejam adotadas, visando alcançar a prescrição.
É certo que, no STF, foi reconhecida a repercussão geral de uma relevante controvérsia sobre essa matéria, qual seja, se o termo inicial para a contagem da prescrição da pretensão executória do Estado é o trânsito em julgado da condenação somente para a acusação ou o trânsito em julgado para todas as partes (Tema 788), que ainda será objeto de análise e pacificação pela Suprema Corte.[1]
De toda sorte, o remédio pode ser mais simples, sem depender de intrincada interpretação sistemática: uma pontual reforma do Código Penal que revogue o §1º do art. 110, para estabelecer que a prescrição da pretensão punitiva seja sempre regulada pela pena máxima abstratamente cominada ao crime.
Poder-se-ia objetar que a pena fixada na sentença, em relação à qual se conformou o Ministério Público ao não recorrer, é a pena justa e, portanto, deveria ser o novo parâmetro para o cálculo da prescrição.
Ocorre que, na legislação de outros países, como Alemanha, Argentina, Chile, Colômbia, Espanha, Itália, México e Portugal, a prescrição da pretensão punitiva (usualmente denominada de prescrição da “ação penal”) regula-se, invariavelmente, pela pena máxima abstratamente prevista, e não pela pena aplicada na sentença, a qual regula, tão somente, a prescrição da pretensão executória (denominada no estrangeiro de prescrição da pena ou da sanção penal).[2]
Em 2010, o Congresso Nacional, com a edição da Lei nº 12.234, deu um significativo e louvável passo no combate à impunidade ao abolir outra reluzente jabuticaba, segundo a qual a prescrição da pretensão punitiva, entre a data do fato e o recebimento da denúncia, regulava-se pela pena aplicada na sentença, e não pela pena máxima abstratamente cominada ao crime.
O Plenário do STF declarou constitucional essa alteração legislativa no HC nº 122.694/SP, Relator o Ministro Dias Toffoli, após submetê-la ao exame da proporcionalidade em antológico julgado, no qual se discorreu sobre o dever estatal de proteção a direitos fundamentais da coletividade e a necessidade de se dar efetividade às normas penais e à prestação jurisdicional.
Como bem destacado no voto condutor desse acórdão, “embora a pena justa para o crime seja aquela imposta na sentença, é uma questão de política criminal, a cargo do legislador, estabelecer-se se a prescrição, enquanto não transitada em julgado a condenação, deve ser regulada pela pena abstrata ou concreta, bem como, nessa última hipótese, definir-se a extensão de seus efeitos ex tunc”.
A adoção de mecanismos legítimos para se impedir que crimes (pretensão punitiva) ou penas (pretensão executória) prescrevam está em consonância com o dever estatal de proteção a direitos fundamentais da coletividade e com a necessidade de se conferir maior efetividade às normas penais que os tutelam.
É preciso, portanto, assegurar a efetividade da execução de uma pena legalmente prevista e regularmente imposta segundo o devido processo legal.
Finalmente, há que se revogar o art. 115 do Código Penal, outra grande causa de impunidade, ao determinar que sejam reduzidos à metade os prazos de prescrição quando o criminoso for, ao tempo do crime, menor de 21 anos, ou, na data da sentença, maior de 70 anos.
Esse artigo deita raízes no Código Penal de 1940, época em que, segundo o IBGE, a expectativa média de vida era de 45,5 anos,[3] e em que, pelo Código Civil de 1916, o imputável entre 18 e 21 anos era considerado relativamente incapaz, questão há muito superada pelo Código Civil de 2002, que fixou a maioridade civil em 18 anos.
Essas pequenas modificações, a cargo exclusivo do legislador, de grande impacto penal, contribuiriam sensivelmente para reduzir a impunidade e tornar mais efetiva a Justiça criminal.

[1] Confira-se a manifestação do Ministro Dias Toffoli no ARE 848.107, reconhecendo a repercussão geral em questão, disponível em  http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verPronunciamento.asp?pronunciamento=5300317
[2] Vide aprofundada análise da legislação comparada no Habeas Corpus nº 122.694/SP, Pleno, Relator o Ministro Dias Toffoli, DJe de 19/2/15.
[3] Confira-se a publicação “Tábua completa de mortalidade para o Brasil – 2017: breve análise da mortalidade no Brasil”, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101628.pdf, mais precisamente pp. 7-8.
 é doutorando e mestre em Direito Processual Penal pela USP; Juiz de Direito titular da 11ª Vara Criminal Central da Comarca de São Paulo e, atualmente, exerce as funções de Juiz Auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça.

Revista Consultor Jurídico, 4 de setembro de 2019, 14h14

Ação de motorista de aplicativo cabe à Justiça comum, determina STJ

SEM VÍNCULO




Motorista de aplicativo é trabalhador autônomo e ação judicial promovida por ele cabe à Justiça comum. Com esse entendimento, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, em conflito de competência, determinou que cabe ao Juizado Especial Cível de Poços de Caldas (MG) julgar o processo de um motorista de aplicativo que teve sua conta suspensa pela empresa. O colegiado entendeu que não há relação de emprego no caso.

STJ reafirmou que motoristas não têm relação hierárquica com a Uber Divulgação 

Na origem, o motorista propôs ação perante ao juízo estadual em que solicitava a reativação da sua conta no aplicativo e o ressarcimento de danos materiais e morais.
Segundo ele, a suspensão da conta –decidida pela Uber sob alegação de comportamento irregular e mau uso do aplicativo– o impediu de exercer sua profissão e gerou prejuízos materiais, pois havia alugado um carro para fazer as corridas.
Ao analisar o processo, o juízo estadual entendeu que não era competente para julgar o caso, por se tratar de relação trabalhista, e remeteu os autos para a Justiça do Trabalho, a qual também se declarou impedida de julgar a matéria e suscitou o conflito de competência no STJ, sob a alegação de que não ficou caracterizado o vínculo empregatício.
Trabalho autônomo
Em seu voto, o relator, ministro Moura Ribeiro, destacou que a competência ratione materiae (em razão da matéria), em regra, é questão anterior a qualquer juízo sobre outras espécies de competência e, sendo determinada em função da natureza jurídica da pretensão, decorre diretamente do pedido e da causa de pedir deduzidos em juízo.
Moura Ribeiro ressaltou que os fundamentos de fato e de direito da causa analisada não dizem respeito a eventual relação de emprego havida entre as partes, e sim a contrato firmado com empresa detentora de aplicativo de celular, de cunho eminentemente civil.
"A relação de emprego exige os pressupostos da pessoalidade, habitualidade, subordinação e onerosidade. Inexistente algum desses pressupostos, o trabalho caracteriza-se como autônomo ou eventual", lembrou o magistrado.
Sem hierarquia
O relatou acrescentou que a empresa de transporte que atua no mercado por meio de aplicativo de celular é responsável por fazer a aproximação entre os motoristas parceiros e seus clientes, os passageiros, não havendo relação hierárquica entre as pessoas dessa relação.
"Os motoristas de aplicativo não mantêm relação hierárquica com a empresa Uber porque seus serviços são prestados de forma eventual, sem horários pré-estabelecidos, e não recebem salário fixo, o que descaracteriza o vínculo empregatício entre as partes."
Por fim, o magistrado salientou que as ferramentas tecnológicas disponíveis atualmente permitiram criar uma nova modalidade de interação econômica, fazendo surgir a economia compartilhada (sharing economy), em que a prestação de serviços por detentores de veículos particulares é intermediada por aplicativos geridos por empresas de tecnologia.
"O sistema de transporte privado individual, a partir de provedores de rede de compartilhamento, detém natureza de cunho civil. Nesse processo, os motoristas, executores da atividade, atuam como empreendedores individuais, sem vínculo de emprego com a empresa proprietária da plataforma", afirmou. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ. 
CC 164544
Revista Consultor Jurídico, 4 de setembro de 2019, 15h38

STF forma maioria para declarar responsabilidade objetiva por danos





O Plenário do Supremo Tribunal Federal formou maioria, nesta quarta-feira (4/9), para declarar constitucional a responsabilização objetiva de empresas por danos a trabalhadores decorrentes de relações de trabalho. A sessão foi encerrada, e retornará nesta quinta-feira (5/9) para conclusão do julgamento.
STF forma maioria para declarar responsabilidade objetiva por danos
Rosinei Coutinho/SCO/STF
O julgamento foi suspenso após o ministro Gilmar Mendes afirmar que o voto era longo e complexo e iria divergir do relator.
Até o momento, prevalece o entendimento do relator, ministro Alexandre de Moraes. Para ele, as leis se desenvolveram para que empresas sejam responsabilizadas pelas injustiças do trabalho. 
Ao desprover o recurso, o ministro propôs a seguinte tese: "o artigo 927, parágrafo único do Código Civil, é compatível com o artigo 7º, XVIII, da Constituição, sendo constitucional a responsabilização objetiva do empregador por danos decorrentes de acidentes de trabalho nos casos especificados em lei ou quando a atividade normalmente desenvolvida por sua natureza apresentar risco especial com potencialidade lesiva e implicar ao trabalhador ônus maior do que aos demais membros da coletividade".
O entendimento do relator foi seguido pelos ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber. O único a divergir foi o ministro Marco Aurélio. 
Alexandre afirmou que o dispositivo do Código Civil é "plenamente" compatível com a Constituição. "O disposto no CC prevê obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem", disse, no Plenário. 
Recurso
O recurso foi interposto contra decisão do Tribunal Superior do Trabalho que reconheceu a responsabilidade objetiva da empresa em um caso em que um segurança que, num tiroteio, matou uma pessoa que passava pelo local.
Portanto, a empresa responde mesmo sem prova de culpa ou dolo, já que se aplica ao caso o artigo 927 do Código Civil, conforme decidiu o TST, por se tratar de atividade de risco.
A empresa condenada contestou a decisão, alegando ofensa ao artigo 7º, inciso XVIII, da Constituição, já que o acidente aconteceu fora do ambiente de trabalho, em ambiente público.
RE 828.040
 é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 4 de setembro de 2019, 18h27