"Eu não recearia muito as más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Não há texto de lei que não deixe campo à interpretação.

A lei é morta. O magistrado vivo. É uma grande vantagem que ele tem sobre ela" - Anatole France

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

O reconhecimento de pessoas e o papel do delegado na condução das investigações.

 

ACADEMIA DE POLÍCIA


Por  e 

A recente decisão do STJ, no julgamento do HC 598.886/SC, sobre a prova penal oriunda do reconhecimento de pessoas gerou enorme interesse no mundo jurídico por quebrar um antigo paradigma: a interpretação tradicional da norma contida no artigo 226 do CPP como mera recomendação. No entanto, pouco se atentou a outro viés fundamental desse julgado, qual seja, a relevância da correta atuação das polícias investigativas judiciárias no procedimento de instrução do caso penal.

Inobstante sua importância prática, a fase inicial da persecução penal ainda figura como tema periférico na maioria das análises doutrinárias e jurisprudenciais, o que repercute diretamente no desenho institucional do sistema de justiça criminal brasileiro. Aury Lopes Júnior adverte ser "óbvio que a qualidade e eficácia do processo penal está diretamente relacionada com a qualidade da investigação preliminar, enquanto fase preparatória, destinada a justificar a acusação ou o arquivamento" [1]. O acórdão em exame segue nesta linha ao reconhecer, na contramão da doutrina tradicional, que "vícios" do inquérito têm o condão, sim, de macular a futura ação e mesmo o processo penal [2].

No tocante ao reconhecimento de pessoas, como bem adverte a citada decisão do STJ, fundamental termos em mente que, diante do fenômeno das falsas memórias, uma atuação descuidada em sede policial pode corromper toda a persecução penal, até mesmo ensejando condenações injustas.

Oportuno lembrar que a instrução da grande maioria dos casos penais, em que pese forte movimento de expansão das provas periciais [3], inclusive a partir de vestígios digitais [4], ainda se mostra muito vinculada às fontes de prova de natureza pessoal (vítimas, testemunhas e imputados). De fato, as "provas dependentes da memória humana" continuam na base formativa do juízo de culpa criminal, muitas vezes estabelecido sem qualquer rigor epistêmico compatível com a garantia fundamental de presunção de inocência. Não por acaso, falsos reconhecimentos estão entre as principais causas de erros judiciais tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos da América.

Aliás, falsos reconhecimentos que, segundo Cecconello e Stein, podem ocorrer devido a fatores intrínsecos ao evento criminoso ou às próprias limitações da memória humana (exemplo: observação do crime pela testemunha a longa distância), os quais reunidos pela literatura especializada junto à categoria "variáveis de estimação". Há, contudo, inúmeros "procedimentos utilizados pelo sistema de Justiça" que "também podem aumentar a probabilidade de um falso reconhecimento" (exemplo: apresentação de fotografia única para reconhecimento  showup), assim entendidos como "variáveis de sistema" [5].

Tudo isso precisa ser mais bem compreendido e trabalhado no campo jurídico-penal, em interlocução com os achados científicos da psicologia do testemunho e do raciocínio probatório, para a regular admissão, produção e valoração do reconhecimento de pessoas no contexto das investigações criminais e processos penais. Afinal de contas, como diria Elizabeth Loftus, "a memória é totalmente maleável, seletiva e mutável" [6]. Daí a enorme preocupação com a sugestionabilidade dos atores jurídicos e seu potencial gerador de falsas memórias [7].

Frise-se, embora já repetido à exaustão pela ciência, que falsas memórias são informações sinceras anunciadas pelos sujeitos, muito embora incompatíveis com a realidade fática. Ou seja: falsas memórias não são mentiras (embora sejam falsas, isto é, não verdadeiras) [8]. O que torna esse tipo de fenômeno cognitivo ainda mais complexo e, ao mesmo tempo, perigoso na esfera penal.

Não por outra razão, a enorme urgência quanto à implementação concreta de protocolos científicos no sistema de Justiça criminal para as "provas dependentes da memória humana", em que se inclui o reconhecimento de pessoas [9]. Um tipo de demanda que está longe de figurar como mera "divagação academicista". Isso porque um ato de reconhecimento pessoal conduzido de forma sugestiva, ainda que sem dolo ou má-fé do responsável, contamina não somente a memória humana do reconhecedor, mas a própria atividade estatal de persecução criminal, na medida em que repercute diretamente na esfera probatória do caso penal.

A repetição do ato, seja em juízo, seja na própria fase policial, quando o reconhecimento anterior foi marcado pela sugestionabilidade, não teria o condão, por óbvio, de "reintegrar" a memória humana tampouco de expurgar o vício informativo (ou probatório) estabelecido naquele caso, ainda que o novo procedimento fosse considerado isoladamente perfeito (ou íntegro).

Logo, em situações desse tipo, diversamente do que pareceu viabilizar o STJ no julgado em questão [10], não restaria alternativa, no campo processual penal, senão a declaração de inadmissibilidade do reconhecimento como meio de prova por vício anterior insanável. Isso mesmo sem recorrer a posicionamento doutrinário respeitável, muito inspirado nas lições da psicologia cognitiva, de que o reconhecimento pessoal seria necessariamente um tipo de prova irrepetível [11].

Aliás, estudos demonstram que quanto mais vezes a memória é evocada (sem técnicas adequadas), maiores as chances de que ela seja distorcida [12]. A própria decisão proferida no HC 598.886/SC faz referência a esse dado ao registrar que "há (...) correlação entre a quantidade de vezes que uma testemunha/vítima é solicitada a reconhecer uma mesma pessoa e a produção de uma resposta positiva" (página 20 de 47). Assim, bastante temerário acreditar que se o ato fosse refeito, mesmo que em conformidade com a lei, poder-se-ia reaproveitar a fonte de prova (memória humana).

Justamente aqui reside a importância do papel desempenhado pelo delegado de polícia enquanto primeiro garantidor das liberdades públicas e do devido procedimento penal na fase de investigação preliminar. Incumbe, portanto, à autoridade policial, na condução dos procedimentos investigativos, zelar ao máximo pela higidez do ato formal de reconhecimento e, diante de eventual irregularidade, registrá-la nos autos para devido controle epistêmico da prova penal.

 

[1] LOPES JÚNIOR, Aury. Prefácio. In: ANSELMO, Márcio Adriano; BARBOSA, Ruchester Marreiros; CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de; MACHADO, Leonardo Marcondes. Polícia Judiciária no Estado de Direito. 01 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. X.

[2] Sobre a apropriação, por parte de setores importantes da justiça criminal, inclusive de tribunais superiores, do discurso da inquisitividade e informatividade do inquérito policial como mais um engodo retórico para o não reconhecimento de nulidades processuais penais: MACHADO, Leonardo Marcondes. Manual de Inquérito Policial. 01 ed. Belo Horizonte: Editora CEI, 2020, p. 34-36.

[3] FENOLL, Jordi Nieva. Fundamentos de Derecho Procesal Penal. Madrid: Edisofer/Buenos Aires: EditorialBdeF, 2012, p. 232.

[4] SOARES, Gustavo Torrres. Investigação Criminal e Inovações Técnicas e Tecnológicas: perspectivas e limites. Tese (Doutorado em Direito) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.

[5] CECCONELLO, William Weber; STEIN, Lilian Milnitsky. Prevenindo Injustiças: como a psicologia do testemunho pode ajudar a compreender e prevenir o falso reconhecimento de suspeitos. Avances en Psicología Latinoamericana, Bogotá, v. 38, n. 1, p. 172-188, mar. 2020, p. 173-174. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/apl/a.6471>. Acesso em: 21.04.2020.

[6] LOFTUS, Elizabeth. Falsas Memórias e Erros Judiciários. Entrevista ao Canal Ciências Criminais. Disponível em: <https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/noticias/188132449/falsas-memorias-e-erros-judiciarios-entrevista-com-elizabeth-f-loftus>. Acesso em: 11.08.2020.

[7] MACHADO, Leonardo Marcondes; CECCONELLO, William Weber. É Necessário Rever as Técnicas de Investigação decorrentes da Memória Humana. São Paulo: Consultor Jurídico, 24 mar. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mar-24/academia-policia-necessario-rever-investigacao-decorrente-memoria-humana>. Acesso em: 13.04.2020.

[8] NORMAN, Keneth A.; SCHACTER, Daniel. L.. False Recognition in Younger and Older Adults: exploring the characteristics of illusory memories. Memory & Cognitionv. 25, p. 838-848, 1997.

[9] MATIDA, Janaina. O Reconhecimento de Pessoas não pode ser Porta Aberta à Seletividade Penal. São Paulo: Consultor Jurídico, 18 set. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-set-18/limite-penal-reconhecimento-pessoas-nao-porta-aberta-seletividade-penal>. Acesso em: 14.12.2020.

[10] O item 3 da ementa do acórdão assim prevê: "O reconhecimento de pessoas deve, portanto, observar o procedimento previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se vê na condição de suspeito da prática de um crime, não se tratando, como se tem compreendido, de ‘mera recomendação’ do legislador. Em verdade, a inobservância de tal procedimento enseja a nulidade da prova e, portanto, não pode servir de lastro para sua condenação, ainda que confirmado, em juízo, o ato realizado na fase inquisitorial, a menos que outras provas, por si mesmas, conduzam o magistrado a convencer-se acerca da autoria delitiva. Nada obsta, ressalve-se, que o juiz realize, em juízo, o ato de reconhecimento formal, desde que observado o devido procedimento probatório" (grifo dos autores).

[11] CECCONELLO, William Weber; ÁVILA, Gustavo Noronha de; STEIN, Lilian Milnitsky. A (ir) repetibilidade da prova penal dependente da memória: uma discussão a partir da psicologia do testemunho. UNICEUB. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 8, n. 2, p. 1058-1073, 2018.

[12] STEIN, Lilian Milnitsky; PERGHER, Giovanni Kuckartz. Criando Falsas Memórias em Adultos por meio de Palavras Associadas. Psicologia: Reflexão e Críticav. 14, n. 2, p. 353-366, 2001. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/prc/v14n2/7861.pdf>. Acesso em: 05.08.2020.




 é delegado de polícia em Santa Catarina, doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná, pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha) e especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC. Professor em cursos de graduação e pós-graduação.

 é delegada de polícia no Estado do Paraná, pós-graduada em Direito Público e pós-graduanda em Direito LGBTQ+.

Patricia Burin é delegada de polícia no Estado de Santa Catarina, mestra em Direito Constitucional e pós-graduada em Segurança Pública e Criminologia.

Revista Consultor Jurídico, 15 de dezembro de 2020, 8h02

STJ - Prova obtida por acesso a agenda de celular sem autorização é válida.

 

CONTATOS DO TRÁFICO


Por 

É válida a prova obtida por policiais que acessam a agenda de contatos no telefone de suspeitos presos em flagrante, mesmo sem autorização judicial.

Para STJ, acesso à agenda do celular não ofende intimidade cuja proteção é garantida pela Constituição Federal

Esse é o entendimento da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que deu provimento ao recurso do Ministério Público do Rio de Janeiro para afastar a absolvição de dois réus condenados em primeira instância por tráfico de drogas.

O tema está em discussão no Plenário do Supremo Tribunal Federal, em julgamento interrompido por pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. O caso, que também é oriundo do TJ-RJ, tramita sob o regime da repercussão geral e vai gerar tese a ser observada por todo o Judiciário.

No caso julgado pelo STJ, os réus foram abordados por policiais, que na revista encontraram drogas, dinheiro e um aparelho celular. A autoridade manejou o telefone e encontrou, na agenda telefônica, número e o nome de indivíduos relacionados ao tráfico de drogas em Campos dos Goytacazes (RJ), além de um número salvo como "viciado".

Essas provas embasaram a condenação dos réus a penas de cinco anos para um e cinco anos e oito meses para outro, ambos em regime semiaberto. Eles apelaram, e o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro declarou a nulidade das provas e, pela ausência delas, absolveu-os.

Segundo a corte estadual, para que os policiais militares tivessem acesso à agenda de contatos existente no celular do recorrente, deveriam ter solicitado ordem judicial de quebra de sigilo de dados e comunicações.

No STJ, a 5ª Turma deu provimento ao recurso especial ministerial por unanimidade. Relator, o ministro Joel Ilan Paciornik considerou que deve ser reconhecida como válida a prova produzidida com acesso à agenda telefônica, com restabelecimento da sentença condenatória, determinando-se que a corte continue a apreciar a apelação.

O resultado do julgamento fez com que o procurador do MP-RJ, Orlando Carlos Belém, dispensasse a sustentação oral para defender a legalidade das provas. O parecer do Ministério Público Federal no caso, assinado pela subprocuradora-geral da República, Ela Wiecko, era pelo desprovimento do recurso, confirmando a absolvição.

Presente na seção, a subprocuradora-geral da República Monica Garcia se manifestou pela legalidade das provas porque, no caso concreto, não foram analisadas conversas de Whatsapp ou e-mail, ou mesmo dados que revelassem a intimidade do investigado. Por isso, o acesso à agenda telefônica sem autorização judicial não ofendeu a intimidade.

REsp 1.782.386




 é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 15 de dezembro de 2020, 18h15

Empresa deve indenizar consumidora que perdeu tempo com cobrança indevida

 

DESVIO PRODUTIVO


Por 

Fazer o consumidor perder tempo para solucionar um problema causado pelo fornecedor gera indenização por danos morais. O entendimento é da 3ª Turma recursal dos Juizados Especiais do Paraná. A decisão é de 2 de outubro. 

Autora receberá R$ 3 mil

O caso concreto envolve a operadora de telefonia Oi. A empresa teria cobrado indevidamente uma cliente, que teve que buscar solução na via administrativa e, posteriormente, judicializar o conflito. A autora receberá R$ 3 mil. 

"Verifica-se que a recorrente logrou comprovar a falha na prestação de serviços, fato que lhe gerou a perda do seu tempo útil. Nesse passo, o consumidor acabou vivenciando uma verdadeira saga para tentar entrar em contato com a reclamada para que a empresa cumprisse com o pactuado, o que apenas foi resolvido com o ajuizamento dos autos principais", afirmou em seu voto a juíza Adriana de Lourdes Simette, relatora do processo. 

A magistrada levou em conta precedente do Superior Tribunal de Justiça que aplica a teoria do desvio produtivo do consumidor, elaborada pelo advogado capixaba Marcos Dessaune. Trata-se do REsp 1.737.412.

Segundo a tese formulada por Dessaune, o desvio produtivo ocorre quando o consumidor, diante de uma situação de mau atendimento, precisa desperdiçar o seu tempo para solucionar problemas causados pelo fornecedor, deixando de executar uma atividade necessária ou por ele pretendida. 

A teoria é pioneira no Brasil e no mundo e está ganhando cada vez mais aceitação do Judiciário. De acordo com Dessaune, a teoria já foi aplicada em mais de 12 mil casos julgados por órgãos colegiados de 26 tribunais estaduais brasileiros. Nos cinco Tribunais Regionais Federais, a teoria foi apreciada 96 vezes. Já no STJ, 54 julgados sobre o tema foram analisados.

0010975-45.2019.8.16.0018




 é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 28 de dezembro de 2020, 17h23