"Eu não recearia muito as más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Não há texto de lei que não deixe campo à interpretação.

A lei é morta. O magistrado vivo. É uma grande vantagem que ele tem sobre ela" - Anatole France

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Minhas dúvidas quanto à audiência de custódia

       Minhas dúvidas quanto à  audiência de custódia



Por Roberto Tardelli


Gosto de ser otimista. Gosto de ver as coisas pelo lado bom e de descobrir lados bons em coisas ruins; assim aprendi a me proteger um pouco das más recordações que todos temos. Ser otimista, porém, não nos dá licença poética para negar a realidade ou a experiência que acumulamos com ela. Há uma expressão grega para isso, fronesis, que é exatamente a experiência adquirida com a estrada, o repertório, a poeira que se come na vida. Diante do desconhecido, esse fronesis, poderá ser o diferencial, poderá significar a salvação. Pode ser que nossa caminhada se dê pelos becos dos preconceitos, das ideias preconcebidas, das frases feitas, do senso comum e confundamos isso com experiência e com sabedoria. Saber o que é preconceito e saber o que é a verdade adquirida pela caminhada exigiria uma caminhada só para isso, só para a aquisição desse saber, que aliás é o que faz distinguir os gênios, aqueles que transformarão o mundo, dos farsantes. Saber qual é mesmo o bom filme, o bom quadro, o bom vinho, o bom parceiro, não são coisas que se aprendem apenas teoricamente. É preciso beber muito vinho ruim para saber como é o vinho bom. É preciso ver muita porcaria assinada com grife para saber o que é um bom filme. É preciso trair e ser traído para se saber quem é o bom parceiro. É preciso amar em vão para se saber amar. Enfim, as ciladas tantas que esse fronesis nos impõe.
Em muitos anos de MP e pouquíssimo tempo de advocacia, vi muita gente ser presa inutilmente. Não tiraria jamais as razões da família da vítima desejar que o agressor do ente querido apodrecesse para todo o sempre em um cárcere – o mais imundo que se pudesse ter -; não tiraria jamais a razão de ter a vítima a sensação de que a punição, qualquer que fosse, em que nível se desse, fosse tímida, fosse pouca. A dor da perda é o que de mais humano habita em nós. Fugindo dos farisaísmos fáceis, eu, como promotor de justiça, devo ter pedido muitas prisões inúteis, algumas relaxadas, outras não. Um erro judiciário dificilmente é individual, mas resulta de um coletivo de pessoas que, em dado processo, deixou de discernir. Abdica-se do discernimento com mais facilidade do que se imagina.
Todos temos profunda raiva do ladrão. Certa vez, corri enlouquecido atrás de um que subtraíra com esperteza tosca, mas suficiente, a carteira que se encontrava na bolsa de uma senhorinha simpática e indefesa, como são as senhorinhas. Corri para pegá-lo de verdade e admito que não queria apenas recuperar a carteira, mas dar uma lição, uma surra naquele um que não poupou sequer uma senhorinha indefesa e simpática, a tia que todos temos e que nos espera com café de bule e bolinho de chuva. Não o alcancei e senti uma amarga frustração por isso. Gritei por polícia, bombeiro, Nostradamus e as demais forças do Bem que por ali passassem. Queria-o preso.
Quem contou ter visto a cena real de um homicídio na vida real, com pessoas reais, afirmou ter sentido um pavor, o pavor de ser a próxima vítima. As narrativas muitas vezes se tornam verborrágicas e são quase ficcionalmente intensas. Ver o furto, crime sem violência, e ver o homicídio, o topo das possibilidades de violência, nos produz estranhas sensações.
Por isso o Delegado de Polícia que recebe, destrincha e encaminha as tragédias sociais tem um contato duríssimo com o crime; ali crepitando as dores, o sangue ainda quente, os nervos em frangalhos de todos, os policiais, vítimas, mulheres desesperadas… Sua decisão de prisão, sobre a prisão, deverá ser comunicada a alguém equidistante dos pontos cardeais da ira humana e que poderia, nas vinte quatro horas depois da prisão, mantê-la (fosse o caso) ou relaxá-la, caso a entendesse ilegal, ou porque a entendesse desnecessária processualmente. Sabemos todos disso: a prisão, no curso do processo, é exceção à regra que se pauta pela liberdade. Essa é uma das questões que sabemos desde o primeiro dia de faculdade, e provavelmente o bedel e a tia da cantina ensinem isso aos calouros antes de colocarem os pés no solo sagrado da sala de aula.
Alguma coisa saiu errada porque o CNJ divulga um dado desconcertante e embaraçoso: 42%, quase 43, dos mais de 500.000 presos no Brasil, uma população que supera muitas cidades médias, são presos provisórios. Na matemática judiciária brasileira, que seria reprovada no ENEM, quase a metade representa a exceção à regra. Inventamos uma exceção da maioria, na maioria, com a maioria, da maioria – sei lá, acho que somos pioneiros nessa matemática estranha. O que era para ser exceção, se tornou regra. Ou a regra se sobrepôs à exceção e a anexou, como fosse um território inimigo a ser conquistado. Em suma, há 50% de possibilidade de uma pessoa ser mantida presa no Brasil, após um inesperado e indesejado encontro com policiais. De gelar a espinha.
Todas essas prisões foram decretadas e mantidas pela autoridade judiciária, comunicada na imensa maioria dos casos pela autoridade policial. Todas essas prisões – salvo casos aberrantes – são consequência de ordem escrita do juiz competente a fazê-lo. Passaram, antes, pela análise do fiscal da lei e titular único da ação penal pública, o MP, que se manifestou em todos os casos. Todas as prisões eventualmente desnecessárias ou ilegais e que foram mantidas ainda assim não podem, por honestidade jurídica, serem colocadas na conta do Delegado de Polícia, uma vez que a ele se seguirão outras vontades, outras percepções, menos duramente envolvidas no caso.
Se corretamente disséssemos alguma coisa sobre a sabedoria popular, diríamos que a polícia prende e a Justiça deixa preso; ou a polícia prende, mas a Justiça não solta. E a regra constitucional se vulgariza e se torna uma ferida aberta. Cobrá-la na sua efetividade pode significar uma disputa ideológica sem fim. Por ora, vencem de goleada aqueles que entendem que a regra não existe para ser respeitada. Cadeia neles! Acusados (em favor de quem milita a presunção de inocência ou de não culpabilidade, como quiserem) de tráfico, roubo, roubo que não é roubo (arma de brinquedo, que não é arma), receptação, furto não famélico ou famélico, acidente de trânsito, homicídio, crimes sexuais, o que não for por venda de CD pirata, dificilmente se voltará a ver a luz do sol nas vinte e quatro horas seguintes. Serão meses, anos, de prisão provisória.
Boa parte dessas prisões são confirmadas pelos Tribunais, e aquela prisão decretada pelo delegado e confirmada pelo juiz de direito, após chancelada pelo MP, ganhará um selo de qualidade da segunda instância. Acredita-se piamente (no sentido dogmático e religioso da expressão) que vivemos uma GUERRA CONTRA O CRIME, na qual todos temos nossa posição no front. Cada soltura corresponderá a mais crimes que assolarão algo etéreo e invisível, a sociedade ordeira. Todas as prisões possuem um dado curioso, em que embora sejam ilegítimas muitas delas, são todas formalmente legais – legalíssimas, diria.
Em razão disso, por otimista que eu possa vir a ser, não festejo e não celebro a audiência de custódia, que será em breve implantada. Não bastará mais a comunicação do flagrante pela Autoridade Policial ao Juiz de Direito. A ele deverá ser remetido o(a) preso(a), com quem terá contato pessoal e direto. No palavrório juridiquês uma cautela pré-processual que terá como finalidade o relaxamento da prisão ilegal ou desnecessária. Olhos nos olhos. O MP já gritou que não há condições materiais, o que é algo que não imagino, porque não se necessita de nenhum aparato específico e ainda não existente. Apenas os presos serão levados ao fórum; nos dias de plantão (feriados e finais de semana), os trabalhos poderão se prolongar, reconheço, mas nada que seja impeditivo para que a medida se concretize, imediatamente. Como toda instância pública ou privada conservadora e reacionária, qualquer mudança assusta notadamente quem tem incorporado ares de anjo exterminador do Dragão da Impunidade.
Meu otimismo pede uma pausa porque os presos serão apresentados aos mesmos juízes que mantêm as prisões, até hoje, apenas formalmente comunicadas. Nada substancialmente mudou. Nenhuma nova janela se abriu: apenas recorre-se ao exaurimento da norma processual. Não houve nenhum salto de qualidade. Quem antes mantinha a prisão continuará mantendo; em algumas circunstâncias, abrindo-se arriscadamente ensejo à atuação de agentes políticos pouco vocacionados ao reconhecimento do direito da liberdade alheia. As mesmas estruturas, com os mesmos protagonistas, certamente projetam um resultado frustrante às louváveis intenções do CNJ, cujo tiro, além de tudo, tem boas chances de sair pela culatra.
Criada para diminuir prisões, meu maior temor é que essa audiência, criada para diminuir as prisões provisórias, acabe por aumentá-las, afinal, ninguém preparou juízes e promotores para esse primeiro embate com os fatos, que os delegados de polícia conhecem bem. Aprofundar ainda mais os estereótipos dos temores sociais, dos preconceitos, poderá criar uma crise que jamais tivemos em proporções que nos farão criar outras infinitas teses sobre a segregação do conflito social brasileiro.
Sou otimista, mas estou com medo, culpa do fronesisde ser a audiência de custódia um tiro no pé.
Ou, mais do menos.
Roberto Tardelli é Procurador de Justiça aposentado (1984/2014), onde atuou em casos como de Suzane Von Richthofen. Atualmente é advogado da banca Tardelli, Giacon e Conway Advogados, Conselheiro Editorial do Portal Justificando.com e Presidente de Honra do Movimento de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Acessado e disponível na Internet em 09/02/2015 no endereço -
http://justificando.com/2015/02/06/minhas-duvidas-quanto-a-audiencia-de-custodia/