"Eu não recearia muito as más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Não há texto de lei que não deixe campo à interpretação.

A lei é morta. O magistrado vivo. É uma grande vantagem que ele tem sobre ela" - Anatole France

sábado, 4 de abril de 2015

Resposta eficaz ao crime passa por um novo Código de Processo Penal

NORMAS PROCESSUAIS

Resposta eficaz ao crime passa por um novo Código de Processo Penal



Foi em razão de normas processuais justas que a vingança privada sucumbiu ao império da lei. A crença da humanidade em um sistema penal estatal não decorreu da dureza das penas, mas da justeza do processo. O devido processo legal (due process of law) foi o grande artífice dessa viragem, constituindo-se na verdadeira garantia de efetividade da lei penal.
De tempos em tempos somos tomados pelo arroubo da retórica da impunidade, do discurso da lei e ordem. E, parece trivial que não se obtém resultado diferente persistindo-se no mesmo tipo de ação. Diante de episódicos delitos dantescos seguem-se as mesmas proposições de enfrentamento: novas inserções no catálogo de crimes hediondos, agravamento de penas, endurecimento de medidas. Tudo para aplacar o clamor das ruas!
Assim se deu com o homicídio, o estupro e tráfico de vulnerável, a importação e adulteração de produto farmacêutico ou medicinal, dentre outros, severamente sancionados depois de cinematográficas exposições midiáticas de casos policiais que chocaram a opinião pública.
A despeito do recrudescimento da reprimenda penal, os índices ascendentes da criminalidade não foram profligados com tais medidas: 50 mil assassinatos anuais; no ranking das Nações Unidas estamos entre os que mais matam mulheres; aumento da prostituição infantil, difusão da pirataria e o comércio ilegal de drogas em níveis alarmantes.
Agora é a vez do crime de corrupção. Pretende-se torná-lo hediondo — como se já não o fosse! Começam a pipocar os famosos pacotes de combate, aos auspícios daqueles mesmos padrões de conduta, cujos resultados, certamente, não serão outros.
Viceja entre nós a falsa ideia de que a criminalidade deriva unicamente da impunidade, e esta da reduzida penalização criminal. Essa relação, fosse verdadeira, estaria resolvida com a técnica esfalfada e casuística da elevação de penas.
O foco deveria ser outro. Nossas normas processuais não primam pela melhor justiça. A começar, estão defasadas: datam de 1941, plasmadas no vetusto regime do Estado Novo de Getúlio Vargas. A despeito de pontuais reformas, a segurança jurídica, a paridade de armas e o efetivo contraditório ainda são princípios de pouca densidade pragmática no contexto jurídico processual que norteia a jurisdição penal.
Para piorar ainda mais o anacronismo do modelo, para além da mesmice, o pacote anticorrupção recentemente apresentado pelo Ministério Público Federal à nação brasileira traz a lume o lado sombrio da atuação de órgãos da persecução penal: pretende-se relativizar o princípio constitucional da proibição da prova ilícita, como forma de combater a corrupção (artigo 5º, inciso LVI, da CF, “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”).
Alega-se que a anulação de processos por “meros erros formais” têm favorecido a impunidade. E, sabe-se que diversas operações de forte apelo midiático, de fato, acabaram anuladas pela Justiça por vícios insanáveis de nulidade.
É a crua realidade: em pleno século XXI e sob o manto programático constitucional do Estado Democrático de Direito e da dignidade da pessoa humana, nosso processo penal ainda é tisnado pelas denúncias anônimas, interceptações telefônicas ilegais, violações de domicílio, quebras ilegais de sigilo, dentre outras arbitrariedades estatais.
Tais ilicitudes de prova são as mais aparentes, não se podendo negar a existência de tantos outros métodos esquizofrênicos de protagonismo clandestino, patrocinados por agentes públicos pagos pelos titulares do direito pétreo por eles pisoteado.
Investigações secretas resistem ao tempo e aos órgãos de controle. Juízos e tribunais de exceção vão sendo instalados sem parcimônia, estando aí regras abertas de prevenção a garantir que expedientes mais antigos atraiam determinadas causas novas ao juiz “escolhido”. Outras vezes é o pensamento hermenêutico o único critério (velado) a guiar convocações para os tribunais de segunda instância, de modo que a figura fantasmagórica do juiz ad hoc ou do juiz ex post facto vem se fazendo presente neste cenário de instabilidade processual cada vez mais acentuada.
Portanto, é de reforma do processo penal que o Brasil precisa. Processos instaurados como meio de punição, mesmo diante de sua flagrante inutilidade, são uma realidade constante. O princípio da isonomia ainda não foi incorporado ao processo; note-se que para a soltura de preso se penaliza o pobre com a exigência de prova de ocupação lícita e de residência fixa.
O efetivo contraditório é uma falácia com o modelo processual atual, que ainda abarca a esdrúxula figura do recurso (remessa) de ofício. O sistema recursal permite uma infinidade de medidas que procrastinam o início do cumprimento da pena. Esta não precisa necessariamente ser longa. Deveria ser apenas efetiva e reparadora.
A eficácia da resposta estatal ao crime tem a ver muito mais com um bom modelo processual do que com as penas abstratamente cominadas. Com a morosidade, perdem legitimidade as instituições do Estado e meios de justiçamento se espraiam e ganham força. É possível investigar bem, produzir provas, com respeito à Constituição.
A dignidade da pessoa e o Estado de Direito são valores que se realizam de acordo com a boa aplicabilidade dos direitos humanos. O momento não é o de revogar a Constituição Federal, mas, sim, instituir-se uma nova legislação processual que garanta a realização dos valores nela insculpidos.

 é juiz federal em São Paulo, especialista em Direito Penal e professor de Direito Constitucional.

Revista Consultor Jurídico, 1 de abril de 2015, 7h33

COMENTÁRIOS DE LEITORES

16 comentários

ÓTIMO JUIZ.

João B. G. dos Santos (Advogado Autônomo - Criminal)
O doutor Ali é um juiz de perfil em extinção infelizmente pois além de culto faz o Direito valer de forma integral, muito diferente dos magistrados que não cumprem a lei do país e que hoje são a maioria.

VERDADE

Edson Vander da Assunção (Defensor Público Estadual)
Parabéns ao articulista pela clareza das colocações e pelo senso de realidade com que avaliou o nosso momento e o ordenamento jurídico brasileiro. Precisamos de mais operadores do direito comprometidos com essa verdade e prontos para lutar por uma legislação mais precisa, clara, constitucional e justa. Justa tanto para as "vítimas" quanto para os que preferem viver á margem, bem como para os ocasionais. Assim, com respeito, poderemos trabalhar para um país melhor, mais democrático, isonômico. Parabéns.

ENFIM O BOM SENSO

DR. CARLOS ALBERTO (Advogado Associado a Escritório)
Parabéns Magistrado, o Senhor é tipo de juiz que o país precisa. Não se constrói um estado de direito tripudiando ou fazendo promoção pessoal da desgraça alheia. Buscar notoriedade ao desgraçar vidas, ainda que de acusados, suprimindo e aviltando direitos, afigura-se um crime tão ou mais grave que o do próprio réu, mas falta sensibilidade para que a sociedade perceba a sutileza desse tipo de crime. Talvez os que clamam por sangue, morte e cadeia só entendam o que queremos dizer quando tiverem um filho, pai ou irmão subjugado num processo injusto! Mais uma vez Parabéns.