"Eu não recearia muito as más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Não há texto de lei que não deixe campo à interpretação.

A lei é morta. O magistrado vivo. É uma grande vantagem que ele tem sobre ela" - Anatole France

sábado, 30 de maio de 2015

Manifestação dos magistrados do Estado de Goiás

SISTEMA PENAL

Manifestação dos magistrados do Estado de Goiás



  
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A Associação dos Magistrados do Estado de Goiás e a Escola Superior da Magistratura do Estado de Goiás promoveram, no dia 25 de abril, um amplo debate com magistrados goianos para discussão do projeto Audiências de Custódia, idealizado pelo Conselho Nacional de Justiça. Na ocasião, uma comissão de juízes foi constituída com o objetivo de elaborar uma nota técnica com os argumentos ressaltados durante o debate que justificam a manifestação contrária da magistratura goiana em relação a esse projeto. A comissão foi formada pelos juízes Eduardo Perez Oliveira, Alex Alves Lessa, Gustavo Assis Garcia e Placidina Pires.
Confira, abaixo, a íntegra da nota técnica elaborada pela comissão.

AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

EM QUE CONSISTE
O Projeto de Lei do Senado 554/2011, de autoria do Senador Antônio Carlos Valadares, visa a assegurar a toda pessoa presa em flagrante o direito de ser apresentada em 24 (vinte e quatro) horas ao juiz para que este analise a necessidade da manutenção da prisão.
O referido projeto de lei inspirou-se na Convenção Americana de Direitos Humanos (também denominada dePacto de São José da Costa Rica) e no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos dos quais o Brasil é signatário, conforme Decretos números 678 e 592 de 1992.
Antes mesmo da aprovação do mencionado Projeto de lei, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) celebrou um termo de cooperação com o TJSP, projeto piloto ainda sem regulamentação, com a finalidade de implementação das “Audiências de Custódia” em todo país. O Estado de São Paulo foi o primeiro a aderir ao projeto e, agora, o Governo do Estado de Goiás, através da Secretaria de Segurança Pública, encaminhou um expediente ao TJGO, na expectativa de adesão do Judiciário estadual.
FINALIDADE DA “AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA OU DE GARANTIAS”
De acordo com o projeto supracitado, o objetivo da “Audiência de Custódia” é analisar a legalidade e necessidade da prisão cautelar, reduzindo, assim, o número de presos cautelares, e também inibir ou fazer cessar eventuais atos de tortura ou maus-tratos à pessoa presa.
Na mencionada audiência, o juiz só poderá questionar o detido sobre sua qualificação e condições objetivas de sua prisão, sendo proibido antecipar qualquer pergunta que possa envolver a instrução do processo, limitando-se a verificar a condição física do preso e se seus direitos foram respeitados.
MOTIVOS DA DISCORDÂNCIA DOS MAGISTRADOS GOIANOS
Os juízes de Direito do Estado de Goiás, porém, entendem que não há amparo constitucional, nem necessidade de criação da intitulada “Audiência de Custódia” no Brasil, seja por intermédio de lei, de resolução do CNJ ou de provimento dos Tribunais Estaduais, porque se trata de providência inócua, que não atende aos critérios de razoabilidade, além de não propiciar o resultado prático almejado, tornando-se antes nociva ao interesse social e ao direito à razoável duração do processo e, ainda, à tutela dos direitos fundamentais.
Soma-se a isso a inexistência de estrutura mínima do Estado no resguardo não só da segurança como de outros direitos fundamentais, buscando impingir ao Judiciário uma desídia histórica do Executivo no que se refere à criação de vagas em presídios e à manutenção de locais hábeis ao cumprimento da pena e à ressocialização. Haverá evidente retardo da prestação jurisdicional, em desatenção ao princípio constitucional da duração razoável do processo, e nítida contribuição para a prescrição e a impunidade.
Os magistrados goianos não descuidam de que o Poder Judiciário tem obrigação de proteção dos direitos e garantias fundamentais da pessoa presa, devendo velar pela integridade física e psíquica desses indivíduos, recebendo e dando a devida atenção a toda e qualquer alegação de lesão ou violação de direitos.
Contudo, não concordam com a suspeita generalizada de que os magistrados brasileiros não fazem o controle de legalidade e necessidade das prisões cautelares, conforme exigência da Lei 12.403/2011, e de que as prisões em flagrante são, em regra, ilegais, e que as polícias, e, também, os delegados de Polícia, bem como os médicos legistas praticam ou toleram a tortura.
Ademais, as prisões cautelares, atualmente, restringem-se aos crimes de maior gravidade ou às hipóteses em que há o descumprimento de medidas cautelares, medidas estas recentemente incluídas no Código de Processo Penal justamente com o objetivo de diminuir ainda mais o número de presos provisórios, em que pese a crescente criminalidade no Brasil.
Os magistrados goianos consideram, portanto, que a “Audiência de Custódia” tem como objetivo camuflado tão somente reduzir o número de presos provisórios e desobrigar o Poder Executivo da criação de novas vagas e de realizar investimentos no sistema de segurança pública, com vistas à ressocialização, algo hoje inexistente, haja vista o índice de 70% de reincidência dos egressos do sistema prisional.
Consideram, ainda, que esse projeto alimenta uma falsa expectativa na população de que o contato físico do preso em flagrante com o juiz fará com que o magistrado, analisando somente aspectos relativos à aparência e a características físicas (cor de pele, sexo, crença e origem), ou simplesmente se baseando em relatos de tortura, relaxe a prisão em flagrante ou conceda liberdade provisória, sem observância do regramento legal em vigor, o que não se coaduna com a postura dos magistrados brasileiros.
Assim, por entenderem que a “Audiência de Custódia” não trará nenhuma contribuição para a melhoria dos serviços que o Judiciário presta ao povo nem para a garantia dos direitos fundamentais ou redução dos alarmantes índices de criminalidade, os magistrados do Estado de Goiás vêm a público dizer que são contrários à criação ou implementação das “Audiências de Custódia” conforme razões abaixo declinadas, sugerindo em seu lugar substitutivos úteis e eficientes.
1. DA INCONSTITUCIONALIDADE DA APLICAÇÃO DA MEDIDA POR MEIO DE PROVIMENTO DE TRIBUNAL DE JUSTIÇA OU DE LEI ESTADUAL
Em que pese o esforço na implantação da “Audiência de Custódia”, não se deve ignorar as competências legislativas determinadas na Constituição Federal, a propósito de concretizar tratado internacional de direitos humanos.
Se de um lado, é certo que não se pode invocar direito interno para descumprir tratado internacional (art. 27 da Convenção de Viena), de outro, não custa lembrar que o STF, ao decidir pela impossibilidade de prisão civil por dívida do depositário infiel, no julgamento do RE 349703, adotou o status supralegal ou dos tratados internacionais de direitos humanos (acima da lei, mas abaixo da Constituição). Além disso, o Supremo não aceitou embargos infringentes para todos os acusados, ao decidir recursos na AP 470 (mensalão).
Neste caso, o STF aplicou o direito interno, em prejuízo ao disposto no art. 27 da Convenção de Viena, bem como relativizou o art. 8.2.h do Pacto San José de Costa Rica, que prevê que todo acusado “tem direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior”, mesmo com o entendimento consolidado da Corte Interamericana de Direitos Humanos no sentido de que  “quando a mais alta Corte de um país atua como primeira e única instância, a ausência de previsão do direito a recurso por um Tribunal Superior não é compensada pelo fato de ter sido o caso julgado pela mais alta corte do Estado Parte” (Caso Barreto Leiva Vs. Venezuela – Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 17 de noviembre de 2009. Serie C No. 206).
Em outros termos, não se adota um monismo radical, de superioridade do tratado de direitos humanos em relação à ordem jurídica interna (natureza normativa supraconstitucional), a exemplo do que tambémdecidiu a Corte Européia de Direitos Humanos, que voltou atrás sobre a proibição do uso de crucifixos em escolas da Itália.
No caso da denominada “Audiência de Custódia”, o Pacto San José de Costa Rica, promulgado pelo Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992, dispõe no art. 7.5 que “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais”. O art. 9.3 do Pacto de Direitos Civis e Políticos, promulgado pelo Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992, tem redação quase idêntica nos seguintes termos: “qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais”.
Porém, assim como ocorre na interpretação constitucional, pelo alto grau de generalidade e de abstração das normas, a interpretação de tratados internacionais de direitos humanos vai além da simples compreensão de um significado prévio existente no texto, pois envolve uma atividade de concretização, a qual se traduz no processo de densificação de regras e princípios, por meio da complementação e preenchimento de espaços normativos.
O disposto no § 1º, c/c o § 2º, do art. 5º da Constituição Federal não torna, como um efeito de mágica, todos os dispositivos sobre direitos fundamentais e direitos humanos autoexecutáveis sem qualquer necessidade de concretização pelo legislador. No caso em questão, por exemplo, os referidos Pactos não preveem prazo específico, muito menos dispõem sobre a presença ou não da acusação e da defesa. Prevê apenas uma garantia a partir de um conceito jurídico aberto (condução, sem demora, à presença do juiz). Não é por menos que, no exemplo do Tribunal de Justiça de São Paulo, foi elaborado o Provimento Conjunto nº 03/2015, com densificação das normas acima descritas, a partir do Projeto de Lei nº 554/2001 do Senado Federal. Se não houvesse necessidade de concretização, dispensável seria a elaboração de um Provimento, com previsão de prazo, procedimento e a presença da defesa e do Ministério Público.
Com efeito, não se pode dizer que a “Audiência de Custódia” consiste em mero procedimento que autoriza o exercício de competência concorrente (art. 24, XI, CF), pois se trata de norma processual inovadora. Do contrário, cada ente federado poderia concretizar não só uma convenção de direitos humanos, da qual o Brasil seja signatário, mas a própria Constituição Federal, diante da inércia do Congresso Nacional, mesmo em situações de competência exclusiva. Neste caso, cumpre lembrar que o STF, no julgamento do HC 90900, declarou a inconstitucionalidade formal da Lei nº 11.819/05 do Estado de São Paulo, por violar, flagrantemente, o disposto no art. 22, inciso I, da Constituição da República, que prevê a competência exclusiva da União para legislar sobre matéria processual. Frisa-se que esta lei estadual apenas disciplinava a realização de audiência por videoconferência, ou seja, apenas uma forma de realização, sem qualquer alteração procedimental, e, ainda assim, o STF entendeu se tratar de norma processual de competência legislativa exclusiva da União.
Igualmente, não se pode admitir que, diante da omissão do Congresso Nacional, a colmatação da lacuna possa ser concretizada por ente federado distinto do que determinou a Constituição Federal, com patente inovação no ordenamento jurídico, ao prever prazo, presença de partes e procedimentos a serem cumpridos. Pensar de modo diverso é atribuir aos tratados de direitos humanos a natureza de norma supraconstitucional (literalidade do art. 27 da Convenção de Viena) e, de outro lado, retirar a força normativa da Constituição quando o assunto for consignado em tratado internacional de direitos humanos, criando-se perigoso precedente para Assembleias Legislativas dos Estados, Câmaras de Vereadores de Municípios ou órgãos Administrativos editarem, respectivamente, leis ou atos normativos (ato administrativo em sentido formal e lei em sentido material), a pretexto de concretizar tratado internacional, em detrimento da competência prevista na Constituição. E, como dito,  pelo fato de os tratados não previrem prazo, procedimento e presença das partes na audiência, diante da inexistência de parâmetro legal nacional, cada Estado da federação poderia disciplinar de modo diferente, alguns prevendo 48h, outros prevendo a presença do MP e da defesa, outros não. Haveria um devido processo legal distinto para cada Estado da federação, o que não condiz com o nosso pacto federativo, segundo a competência legislativa do art. 22, I, CF. E pior, nos Estados em que fosse implantada a “Audiência de Custódia”, a prisão sem audiência seria ilegal, enquanto nos demais casos não, diferenciação esta sem justificação que enseja omissão inconstitucional relativa, por violar a isonomia.
Isto é dizer, o art. 27 da Convenção de Viena, por si só, não autoriza desconsiderar a Constituição e todas as regras constitucionais de competência legislativa, nem permite violar os princípios da separação de poderes e da legalidade (cláusulas pétreas – art. 2º; art. 5º, II; art. 22, I; art. 60, §4º, III e IV, CF ). O art. 22, I, da CF, é muito claro ao definir competência legislativa exclusiva da União para legislar sobre processo penal. Em sede de competência legislativa exclusiva, não há que se falar em competência plena ou suplementar dos Estados (art. 24, §§ 2º e 3º, CF).
Ademais, a alteração na redação original do Projeto de Lei nº 554/2001 do Senado Federal, por emenda substitutiva, demonstra que a matéria necessita de debate democrático (deliberação), na casa que foi vocacionada para tanto, segundo a Constituição Federal, qual seja, o Congresso Nacional. Seja pelo princípio da primazia do legislador na concretização da constituição, seja pelo princípio de conformidade funcional, o mesmo raciocínio hermenêutico se aplica ao caso, em função do alto grau de generalidade e de abstração, e também do disposto no art. 5º, §2º, da CF, que atribui a estes instrumentos normativos, segundo a doutrina de direitos humanos, natureza materialmente constitucional, embora o STF tenha atribuído o statusnormativo supralegal. Mas o certo é que não se adota o conceito de norma supraconstitucional.
Por fim, diferente das previsões legais de prisão do depositário infiel, que se tornaram inaplicáveis em razão dostatus normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos (STF – Tribunal Pleno – RE 349703), em típica violação por ação, a ausência de previsão da “Audiência de Custódia” no Código de Processo Penal enseja, ao revés, uma violação dos tratados por omissão (inconvencionalidade por omissão). Evidente, pois, a distinção quanto ao tipo de conduta ensejadora de violação do tratado internacional de direitos humanos, cuja solução jurídica é  distinta, a exemplo do que ocorre no ordenamento jurídico interno no controle de constitucionalidade. Por lógica, a eficácia negativa (non facere) torna a norma conflitante com o tratado internacional de direitos humanos não recepcionada ou inválida. Mas, de outro lado, diante da omissão, não há norma a ser reconhecida como não recepcionada ou inválida, pois o que há é um vazio legislativo. A eficácia positiva (facere), diante da inércia do legislador, quanto ao dever de densificar as regras previstas nos tratados de direitos humanos, exigem a adoção dos mesmos mecanismos que a Constituição da República previu para solucionar os problemas da omissão inconstitucional.
Portanto, diante da omissão inconstitucional ou inconvencional, a solução constitucionalmente adequada, conforme instrumentos previstos na Carta da República, seria: a) controle difuso de convencionalidade por todos os juízes e tribunais, incidenter tantum, na hipótese de tratado internacional de direitos humanos com status normativo supralegal, conforme decisões do STF no RE nº 349.703 e nos HCs nº 87.585 e nº 92.566, como é, por exemplo, o presente caso; b) controle concentrado de constitucionalidade pelo STF, por meio do manejo das ações constitucionais (ADO, MI ou ADPF), na hipótese de tratado internacional de direitos humanos aprovado peloquorum de emenda, com status formal de Constituição, conforme disciplina o §3º do art. 5º da CF, e, também, controle difuso de constitucionalidade, em sede incidental, uma vez que, neste caso, o tratado se torna paradigma de controle de constitucionalidade. Porém, a omissão inconstitucional (ou inconvencional) não autoriza órgão legislativo diverso do previsto na Constituição Federal a legislar sobre o tema, muito menos autoriza órgão administrativo a usurpar a função do legislador, a propósito de concretizar tratado.
2. DESNECESSIDADE: COMO CONTROLE JUDICIAL DE LEGALIDADE DA PRISÃO CAUTELAR e CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES INTERNACIONAIS
O artigo 306, caput, e parágrafo único, do Código de Processo Penal (CPP) prevê que o juiz deverá ser imediatamente comunicado da prisão de qualquer pessoa, assim como a ele deverá ser remetido, no prazo de vinte e quatro horas, o auto da prisão em flagrante.
Assim, ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz, nos termos do art. 310 do CPP, alterado pela Lei 12.403/2011, deverá, fundamentadamente, relaxar a prisão, convertê-la em preventiva quando presentes os requisitos e fundamentos do art. 312 do CPP, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as demais medidas cautelares não constritivas de liberdade, ou conceder liberdade provisória.
Além do mais, no momento do flagrante, o detido é examinado por um médico, ocasião em que é lavrado laudo competente informando sua condição física, da qual o juiz tomará conhecimento.
A magistratura, ao dar cumprimento a essa previsão normativa, satisfaz, a nosso ver, as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil.
3. DESNECESSIDADE: COMO COMBATE À SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA
O contato da pessoa presa com o juiz não garantirá a liberdade quando presentes os requisitos e pressupostos da prisão preventiva, notadamente em se tratando de crimes praticados com violência ou grave ameaça, ou, na hipótese de agentes reincidentes, com possibilidade de reiteração da conduta ou de fuga.
O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, ou seja, mais de 600 mil presos, em torno de 40% (quarenta por cento) deles provisórios, segundo dados do CNJ.
Isso ocorre não porque os juízes mantêm prisões ilegais e desnecessárias, mas porque se trata de um país populoso, o 5º (quinto) do planeta, e que convive com altos índices de violência, possuindo 11 (onze) das 30 (trinta) cidades mais violentas do planeta, sem falar que lidera o ranking no número de homicídios. Já os EUA, segundo o levantamento, possuem a primeira maior população carcerária do mundo, porém, registra baixos índices de violência.
Pela legislação penal em vigor, devido à falta de vagas e condições de encarceramento por parte do Estado, somente os envolvidos em crimes graves, com relevantes indícios de autoria e materialidade, efetivamente são submetidos à prisão provisória, destacando-se que os processos de réus presos submetem-se a um rito mais célere e prioritário, sob pena de relaxamento da prisão, havendo elevado índice de condenações após a apuração dos fatos.
4. DESNECESSIDADE: COMO MEDIDA INIBIDORA DE ATOS DE TORTURA OU DE MAUS-TRATOS
A implantação da “Audiência de Custódia” parte de pressuposto ideológico equivocado de que os agentes de segurança pública, incluindo a Polícia Federal, a Polícia Civil e a Militar, e os integrantes da carreira de delegado de Polícia praticam, em regra, atos de tortura contra o preso em flagrante, ignorando que se trata de servidores públicos concursados, que responde civil, penal, e administrativamente por seus atos.
Além disso, considera, também equivocadamente, que o Ministério Público é inefetivo, pois a ele compete o controle externo da atividade policial (art. 129, VII, da Constituição Federal), e também  a Defensoria Pública e a OAB, porque, segundo esse pressuposto, não estão em condições e nem possuem aptidão para denunciar as supostas práticas “habituais” de tortura.
Não bastasse a “Audiência de Custódia” não atenderá à finalidade de inibir aludidos atos de tortura, já que os juízes não possuem graduação em Medicina, ou seja, não possuem formação técnica para detectar lesões internas ou imperceptíveis a olho nu, muito menos para perceber atos de tortura psicológica ou lesões anteriores ou decorrentes de eventual resistência.
Para isso, a legislação já prevê a necessidade de o detido ser submetido a exame médico, logo após a prisão, quando é elaborado laudo médico para ser apresentado ao juiz, permitindo que se afira o estado geral do detido.
Além desse procedimento, após a prisão, o detido é apresentado a profissional graduado em Direito e aprovado em concurso de provas e títulos, o Delegado de Polícia. A situação física do preso também é aferida por ele. Entender o contrário seria considerar que os componentes dessa carreira têm habitualmente praticado e/ou ignorado a prática reiterada de tortura, além de levar a crer que todos os médicos que realizam milhares de laudos diariamente pelo Brasil estão fraudando os exames.
Por esses motivos, entendemos que não há necessidade de apresentação pessoal do preso ao magistrado para que seja assegurada a sua integridade física.
Outro aspecto interessante, é que, com a implantação da indigitada “Audiência de Custódia”, há o risco de serem incentivadas falsas acusações de tortura ou de maus-tratos sem que se possa utilizar a palavra do investigado como prova, nem mesmo para subsidiar possível ação penal por calúnia ou denunciação caluniosa.
5. PREVISÃO DE MECANISMOS INTERNOS MAIS EFICIENTES PARA A PROTEÇÃO DO PRESO
O Pacto de San José da Costa Rica é datado de 1969, período de ampla turbulência política na América Latina, em que a Democracia e, consequentemente, a liberdade de expressão estavam em risco.
Prisões irregulares, presos políticos e desaparecidos eram realidade corrente à época. Tais práticas, porém, ao menos no Brasil, não mais existem há décadas.
Com a redemocratização do Brasil e a promulgação da Constituição Federal de 1988, o País optou, em sua ordem interna, por uma Carta voltada às garantias e aos direitos fundamentais.
Dentre esses direitos, estão os de serem comunicados imediatamente ao juiz competente e à família, ou à pessoa indicada, a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontra (art. 5°, LXII, CF).
Na ordem interna, essa comunicação deve ocorrer no prazo de 24 horas, oportunidade em que, de ofício, o juiz examinará a legalidade do flagrante e a necessidade da manutenção da prisão, conforme os documentos presentes no comunicado respectivo, ou a possibilidade de sua substituição por medidas cautelares alternativas, conforme prevê a recente Lei n.° 12.403/2011.
A Constituição ainda garante ao preso a informação sobre seus direitos, a assistência familiar e de advogado, além do conhecimento dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório (art. 5°, LXIII e LXIV, CF).
Há, portanto, um vasto arcabouço de direitos assegurados à pessoa presa em flagrante delito, desde o aparato policial formado por servidores de carreira, à apresentação em Delegacia de Polícia, perante delegado também aprovado em concurso público, à comunicação de sua prisão à família e o direito a advogado, sem falar do conhecimento pelo juiz, no prazo de 24 horas, da prisão, seus fundamentos e atos.
Como visto, passados mais de quarenta e cinco anos do Pacto de San José da Costa Rica, é perceptível uma severa mudança no cenário político da América Latina, em especial do Brasil, com a consolidação da Democracia, e concomitante aumento exponencial da violência urbana.
A exigência de apresentação da pessoa presa em flagrante perante o juiz no prazo de 24 horas, em nada acrescentará a essa gama de direitos já assegurados, uma vez que o magistrado julga de acordo com o que está nos autos, e não conforme aspectos físicos ou outras características do detido.
Acrescente-se a esses argumentos que o magistrado ainda faz mensalmente visita aos presídios, tendo contato direto com os presos tanto definitivos como provisórios, que podem, mesmo sem advogado, deduzir suas pretensões diretamente ao juiz para apreciação.
Por outro lado, mesmo em nada acrescentando aos direitos do detido, a “Audiência de Custódia” exigirá que magistrados, servidores do Judiciário, promotores de Justiça, defensores Públicos e policiais fiquem à disposição nas dependências das unidades judiciárias respectivas para a realização de uma solenidade cuja finalidade já é atingida de forma mais eficiente no modelo atual, com aumento de gastos a serem repassados ao contribuinte e prejuízo aos inúmeros outros processos criminais em trâmite,
Em um Estado como Goiás, com déficit dos profissionais citados, o que se repete em todo país, resultará, ainda, na submissão de pessoas acusadas a um processo mais longo, o que, por si só, é um prejuízo, com possível prescrição da pretensão punitiva ou executória por crimes praticados, no excesso de prazo nas prisões, na remarcação de audiências pelas pautas já inchadas dos juízes, e demora na análise de processos urgentes até mesmo de natureza cível.
A preocupação do Estado deveria ser diminuir a criminalidade, e não buscar de maneira transversa a diminuição de prisões que, hoje, já são mínimas, e somente ocorrem pelo excessivo número de delitos graves e violentos cometidos diariamente pelo território nacional, como é fato notório.
Passados mais de 25 anos da promulgação da Constituição Federal, até hoje não é garantido ao preso o direito a um advogado de plantão para atendê-lo, ou a implantação nas unidades prisionais das condições previstas na Lei de Execução Penal.
A audiência de custódia, quando cotejada com o sistema brasileiro em voga, não atinge o mesmo grau de eficiência. Por outro lado, o Estado, que pretende a criação dessa audiência na intenção de diminuir as prisões, deixa de atender a direitos básicos da sociedade, criando práticas que são no todo irrazoáveis e incompatíveis com o sistema brasileiro.
6. AUSÊNCIA DE ESTRUTURA MÍNIMA E DE EFICIÊNCIA NA CRIAÇÃO DA “AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA”
6.1 – Sobrecarga de trabalho para as unidades judiciárias criminais,  engessamento da justiça, com prejuízo para as suas inúmeras outras atividades, e retardo na entrega da prestação jurisdicional
Na capital goiana, de acordo com levantamento realizado na Diretoria de  Informática do TJGO, em média, são comunicadas mais de quinhentas prisões cautelares por mês, para um contingente reduzidíssimo de magistrados criminais.
No interior, os problemas são ainda mais graves, tendo em vista que, na quase totalidade das comarcas, há um único juiz com competência criminal, e, nos plantões, um único magistrado fica responsável por toda uma região que abrange diversas comarcas.
A “Audiência de Custódia” fará com que as varas criminais tenham seu funcionamento sobremodo prejudicado. Com essa demora será vulnerado o princípio da razoável duração do processo, além do que implicará excesso de prazo na instrução dos processos de réus presos provisoriamente, com consequente soltura, aumento da prescrição em diversos crimes e outros prejuízos, com o acréscimo da impunidade e fragilização do Estado.
6.2 – Falta de estrutura operacional e de pessoal para viabilizar a sua imediata implementação, mesmo que realizada por videoconferência.
As varas criminais da capital não possuem estrutura operacional nem de pessoal para viabilizarem as “Audiências de Custódia”. Não possuem equipamento de videoconferência e contam com estrutura extremamente defasada de servidores, em média três por escrivania. Além disso, a Polícia Militar responsável pela escolta dos presos, segundo Portaria nº 001 de 13 de maio de 2014, do Comandante da 36ª BPM, estabeleceu que as requisições de escolta fossem realizadas com antecedência de 24 (vinte e quatro) horas, dificultando inclusive a realização das audiências normais, o que se agravará se implementada essa audiência.
Há falta generalizada de policiais para realizarem não só a escolta, como a segurança do local. Há também reduzido número de promotores de Justiça e defensores Públicos.
No interior, como dito, a situação é ainda mais grave. Existe um grande déficit de juízes, além de promotores e defensores. Algumas comarcas possuem apenas dois policiais militares para toda a região, além de quadro igualmente deficitário de policiais civis e delegados de Polícia.
A regra quanto às unidades prisionais nas comarcas do interior é o total descaso por parte do Estado. Muitas ainda estão sob os cuidados da Polícia Militar e outras, mesmo assumidas de forma precária pela Agência Prisional, são mantidas pelos municípios, que possuem baixa arrecadação.
6.3 – Prazo exíguo para realização da “Audiência de Custódia” com necessidade de intimação pessoal do Ministério Público, da Defensoria Pública, e de requisição do preso
A necessidade de instauração de um pseudoprévio contraditório para que o juiz decida se vai manter ou não a prisão cautelar, já que não se pode discutir os fatos, torna a “Audiência de Custódia”  providência de dificílima realização, pois há a necessidade de participação do Ministério Público e da Defensoria Pública, cujos quadros de pessoal em Goiás é exíguo, assim como o de juízes.
6.4 – Possível contaminação do juiz que julgará o caso, pois ouvirá relatos que poderão influenciar a formação de sua convicção/ e ofensa ao sistema acusatório
Conforme previsão na legislação de outros países, a operacionalização da “Audiência de Custódia” prescinde da criação da figura do “Juiz de Garantias” para que não haja a alegação de suspeição do magistrado sentenciante que participou do aludido procedimento, nem ofensa ao sistema acusatório, adotado pelo ordenamento jurídico pátrio.
Considerando o pequeno número de juízes, é evidente que os magistrados que realizarão a citada audiência serão também aqueles que conduzirão a instrução do processo.
6.5 – Não atende ao interesse social, nem individual, no que tange à proteção das garantias fundamentais e da segurança pública e efetividade da justiça criminal.
Por um lado, a “Audiência de Custódia”, na forma em que proposta, não representará avanço de qualquer natureza à proteção das garantias e dos direitos fundamentais, e, por outro, representará prejuízo à sociedade com o uso dos recursos escassos do Estado, conduzindo a uma maior impunidade e lentidão na aplicação da justiça criminal.
ALTERNATIVAS EFICIENTES À AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA
Se o objetivo real das “Audiências de Custódia” for o comprometimento com a eficiência da justiça criminal e a garantia dos direitos fundamentais, existem medidas que podem ser levadas a cabo pelo Estado que apresentariam uma melhora na situação atual, sem necessidade de implementação dessa audiência.
Sinteticamente, sugere-se:
1. A presença obrigatória de um defensor público em regime de plantão nas Delegacias de Polícia responsáveis pela lavratura do auto de prisão em flagrante.
A colocação de um defensor público em regime de plantão, como já ocorre com a Magistratura e a Promotoria de Justiça.
O primeiro local para onde o preso é conduzido é a Delegacia de Polícia. Estando lá um defensor público, ou um advogado plantonista indicado pela OAB, este profissional poderá acompanhar a lavratura do auto de prisão em flagrante e velar pela integridade do detido.
Tal medida resguarda o interesse do preso provisório e, ao mesmo tempo, não onera a sociedade com uma audiência sabidamente ineficiente e inefetiva para o que se propõe. Outrossim, poderá o defensor público ou o advogado particular peticionar noticiando eventuais irregularidades ou requerer  ao juiz que conheça de imediato de qualquer pedido de liberdade.
2. Implantar a gravação do interrogatório policial do preso em flagrante, com o encaminhamento da mídia para ser apreciada pelo magistrado quando da análise do comunicado de prisão em flagrante.
A gravação do interrogatório do preso em flagrante permite a análise pelo juiz inclusive da situação do interrogado, que poderá relatar fatos que entenda relevantes, incluindo possível violação de seus direitos.
3. Possibilitar requerimento pessoal do preso, de advogado constituído ou dativo, da Defensoria Pública ou Ministério Público, em caso de suposta violação de direitos, hipótese em que referida audiência será realizada em prazo não superior a 05 (cinco) dias.
Ao invés da “Audiência de Custódia”, seria melhor aguardar requerimento pessoal do preso, de instituições de proteção ao detento, como, por exemplo, a Pastoral Carcerária, ou da Defensoria Pública ou do Ministério Público, noticiando eventuais violações de direitos, para que supracitada audiência seja designada pelo juiz, em breve espaço de tempo.
Tal medida ocorreria apenas nas hipóteses em que existirem indícios de violação a direitos, havendo um advogado ou defensor plantonista na Delegacia de Polícia.
4. Criação de medidas legais no intuito de desburocratizar o procedimento penal, sem prejuízo ao contraditório e ampla defesa, permitindo o julgamento em prazo razoável, bem como o suprimento das inúmeras vagas de magistrados, promotores, delegados e defensores Públicos no Brasil.
5. Criação da figura do “Juiz de Garantias”.
6. Conhecimento pelo CNJ, pelo Executivo Estadual e Federal, pelo Congresso Nacional e demais envolvidos na proposta de “Audiência de Custódia” da realidade do Judiciário brasileiro, especialmente o Estadual, para que não seja criada uma fase pré-processual irrazoável e burocrática, prejudicial à população e aos direitos e garantias fundamentais.

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quinta-feira, 28 de maio de 2015

O CICLO COMPLETO DE POLÍCIA JUDICIÁRIA

O CICLO COMPLETO DE POLÍCIA JUDICIÁRIA


*Juvenal Marques Ferreira Filho


 O sistema de segurança pública adotado no Brasil é seccionado entre várias polícias com atribuições especificadas no artigo 144 da Constituição Federal. No entanto na prática as ações desenvolvidas pelas instituições e corporações policiais, mormente no âmbito estadual, se confundem. O policiamento ostensivo está definido como atribuição da Polícia Militar, enquanto as ações investigativas para apuração de crime são de atribuição da Polícia Civil. O chamado ciclo incompleto de polícia tem gerado atritos entre as polícias estaduais, uma vez que ambas acabam por desenvolver formas de policiamento com invasão na área de atuação uma das outras. Assim a polícia militar mantém pelotões de investigação para depois efetuar o patrulhamento direcionado para as áreas investigadas para a produção de flagrantes, enquanto a polícia civil mantém equipes uniformizadas também com ações direcionadas a impedir a ocorrência de determinados crimes, como as equipes de combate ao roubo a bancos e os grupos especializados (GOE) para o enfrentamento com o crime organizado, onde o armamento utilizado geralmente é de uso restritivo das forças armadas com alto poder de fogo. Aliás quando a polícia civil realiza o policiamento ostensivo o faz de maneira muito mais dinâmica e efetiva do que a Polícia Militar, onde a cadeia hierárquica truncada faz com que, além dos policiais militares empregados no ostensivo, tenha necessariamente uma supervisão por sargentos, que por sua vez são supervisionados por um oficial. As equipes especializadas da Polícia Civil realizam o policiamento ostensivo especializado com menos homens, menos despesas e a mesma efetividade da PM. Diante desse quadro de atrito, competitividade e falta de identidade das polícias estaduais surgiu à tese do ciclo completo de polícia. No entanto, de maneira equivocada alguns pseudo especialistas em polícia têm pregado a implantação do ciclo completo de polícia com o direcionamento para aumento de atribuições da Polícia Militar, conforme a incidência penal. Na linha doutrinária desses “especialistas”, dependendo da incidência penal, a Polícia Militar atenderia e implementaria as providências até o final da ocorrência, inclusive as providências de natureza judiciária, portanto usurpando as funções da polícia civil, para a qual não tem preparo, sem se reportar a Autoridade Policial. Ora a divisão de atribuições já está prevista na Carta Magna, no entanto, o que temos visto é que na prática isso não funciona. A desorganização do aparelho policial do Estado Brasileiro é patente, enquanto o crime organizado se expande em escalada assustadora, não só pela força do material bélico empregado, logística, ações cada vez mais ousadas, da corrupção diante de polícias mal pagas, mas também pela preparação, inclusive com custeio de curso superior, para a infiltração de agentes dessas organizações criminosas nos três Poderes da República.

O ciclo completo de polícia pressupõe uma única polícia com a atribuição da execução do policiamento urbano e combate as diversas formas de criminalidade com a repressão adequada, quer nos crimes comuns como também no crime organizado. Para o sucesso nessa empreitada a polícia tem que desenvolver ações organizadas no policiamento ostensivo perfeitamente integrada com ações de inteligência, não somente para minimizar a incidência criminal, como também para a efetiva investigação com a colheita de provas para a persecução penal a ser desenvolvida pelo Ministério Público.  O crescimento e o aperfeiçoamento do crime organizado não permitem mais ao Estado Brasileiro o amadorismo em ações de Segurança Pública.

Efetivamente a solução para a crise de Segurança Pública no Brasil passa pelo Ciclo Completo de Polícia Judiciária com o desenvolvimento de ações minimizadoras da incidência criminal, uma vez que supressão total do crime é utopia. Ações de inteligência para o direcionamento do policiamento ostensivo, bem como a efetiva investigação dos crimes perpetrados com a identificação do agente criminoso e colheita de prova para a instrumentalização da persecução penal por parte do Ministério Público fecham o ciclo completo de polícia. Esse mister somente pode ser realizado por uma polícia judiciária atuando com atribuição unificada e integrada no combate ao crime. As polícias civis estaduais têm plenas condições de realizar esse papel, até porque sua formação profissional é exclusivamente para o combate ao crime, sem qualquer doutrina estranha ao ideal de defesa da sociedade civil com respeito ao estado de direito vigente.

A Polícia Militar tem formação e doutrina militar cujo objetivo é por excelência a neutralização e, quando necessário o abate do inimigo, com ações táticas de enfrentamento e destruição da força opositora. Esse tipo de ação é incompatível com o policiamento civil para a proteção de uma sociedade democrática com o respeito aos direitos humanos. Os fatos são incontestáveis, pois que todos os dias eclodem pelo país inteiro denúncias de abuso de força, tortura e por vezes de morte de civis, perpetradas por policiais militares no serviço de policiamento civil.

Na grande maioria dos países desenvolvidos o policiamento diuturno da sociedade é realizado por polícias de natureza civil e com as atribuições do ciclo completo de polícia, reservando-se para os confrontos com criminosos violentos e com armamento pesado a atuação de equipes treinadas com táticas militares e com resposta armada adequada a agressão criminosa, como realiza a S.W.A.T. americana. Para esse tipo de ação a atuação da Polícia Militar é de fundamental importância, pois que se requer nesse tipo de repressão criminosa uma ação policial com tática militar, treinamento, equipamento e armamento de uso restritivo. O policiamento de choque para controle de distúrbios civis e de praças desportivas com grande aglomeração de pessoas, bem como os batalhões especializados em ações de selva e salvamento são, por sua natureza e exigência de treinamento especializado, uma atribuição natural e específica para a Polícia Militar que nessa área realiza uma excelente prestação de serviço para a sociedade.

Nesse diapasão a evolução natural do aparelho policial brasileiro passa pela atribuição do ciclo completo de polícia judiciária com a competência legal para as polícias civis estaduais para o desenvolvimento de ações para a prevenção, com o policiamento ostensivo, a investigação e repressão ao crime de forma unificada, reservando-se para a Polícia Militar o controle de distúrbios civis e as operações especiais táticas. Nesse campo de atuação, com tropa treinada para o policiamento de choque, batalhões de operações especiais para enfrentamento de confronto armado pesado, ações na área de defesa civil, além do salvamento em terra e água, a Polícia Militar está perfeitamente qualificada. Essa tropa com treinamento militar caberá a reserva do Estado Brasileiro para a defesa interna e territorial funcionando como força reserva do Exército e Força Nacional de Segurança Pública com atuação específica em situações que ofereçam risco à segurança nacional.

O modelo proposto é de fácil implantação, pois que as polícias estão relativamente organizadas com paridade salarial de cargos nos estados, bastando-se para tanto a redistribuição de efetivo, equipamento e instalações para a implementação de uma polícia judiciária com atuação no Ciclo Completo de Polícia Judiciária e a estruturação de uma Força Pública para utilização em situações de risco de segurança tanto a nível estadual como nacional.

A implementação legal desse novo sistema de segurança pública poderá ser implantado através de uma PEC que promova a alteração do artigo 144 da C.F., modificando-se as atribuições das polícias estaduais, com previsão nas disposições transitórias para a redistribuição dos efetivos e das instalações das polícias militares utilizados no policiamento ostensivo. Dessa forma caberia a Polícia militar a exclusividade no controle de distúrbios civis, a polícia de operações táticas especiais e as ações de defesa civil e salvatagem na terra e água. A Polícia Civil caberia a prevenção, policiamento ostensivo e a investigação e elucidação de crimes com a competência exclusiva para a formalização dos atos de polícia judiciária nas infrações de natureza civil. Lei Complementar deverá criar e redistribuir os cargos necessários para a polícia judiciária com atuação no ciclo completo.

A proposta é factível e não ensejaria em aumento de gastos pelos Estados, uma vez que se propõe readequar as polícias já existentes, com a redistribuição de funções, efetivos e material, implantando-se um novo modelo de aparelho policial do Estado. A Polícia Estadual com atuação no ciclo completo de polícia judiciária deverá ter uma estrutura moderna para atuar nas diversas áreas de ações de inteligência, prevenção uniformizada ostensiva, investigação e formalização dos atos de polícia judiciária. Para tanto as antigas delegacias agora denominadas Departamentos de Polícia terão nos seus efetivos policiais treinados e equipados para atuar no policiamento uniformizado, além de agentes policiais para atuação específica na área de inteligência e investigação e o corpo de escrivães para a formalização cartorária dos atos de policia judiciária.  As ações de inteligência não se confundem com investigação. As primeiras dizem respeito ao levantamento de informações para fundamentar as decisões estratégicas e direcionamento do policiamento a ser desenvolvido, enquanto o efetivo de investigação atua no caso concreto com a identificação do agente criminoso e colheita de elementos de provas para a instrumentalização do Ministério Público. A profissionalização e especialização de uma única polícia na atuação no ciclo completo de polícia judiciária importarão inevitavelmente numa substancial melhoria do sistema de segurança pública em benefício de toda a sociedade civil.

A direção desses Departamentos de Polícia caberá ao Delegado de Polícia Titular da unidade, a quem incumbirá supervisionar a atuação dos Delegados de Polícia encarregados de cada uma das áreas de atuação do Departamento, a saber, o Delegado de Polícia do Setor de Policiamento Ostensivo; Delegado de Polícia do Setor de Inteligência e Investigação; Delegado de Polícia do Setor de Polícia Judiciária e o Delegado de Polícia do Setor de Plantão Policial. Os Departamentos de Polícia manterão uma equipe diuturna, sob a presidência de um Delegado de Plantão para a lavratura de autos de prisão em flagrante e termos circunstanciados. O registro de boletins de ocorrências com a mera notícia de crime será efetuado por funcionários distribuídos nos Postos de Atendimento e Registro de Ocorrência Policial (PROPOL) localizados em setores estratégicos a serem determinados pela densidade populacional e incidência criminal na cidade.

Tendo em vista a complexidade das atribuições dos Departamentos de Polícia haverá a necessidade de realocação destes nos prédios públicos remanejados da Polícia Militar (batalhões), uma vez que o efetivo de policiais e equipamentos necessitará instalações de maior porte. No entanto, com a realocação dos edifícios ocupados pelos batalhões de área, o Estado não terá aumento de despesas, pelo contrário, as despesas devem diminuir uma vez que as características do efetivo policial civil, sem rancho e barbearia, por exemplo, demandará menos gastos.

O remanejamento do efetivo empregado pela PM no policiamento ostensivo também não oferece dificuldade. Os soldados viriam como guardas civis, nível I – estágio probatório e nível II – efetivados com até 15 anos; os praças graduados cabos, sargentos e subtenentes teriam por designação o cargo de Inspetor de Polícia nível I, II, III e Especial para o final da carreira. A promoção dos Guardas civis de nível II será automática para Inspetor de Polícia nível I, decorridos 15 anos de carreira no bom comportamento. As promoções dos Inspetores de Polícia, de acordo com o número de vagas abertas, serão baseadas na proporção de 50% pelo critério de antiguidade, e, 50% por concurso interno, sendo automática a cada 10 anos de efetivo serviço no cargo sem punição.

Os oficiais da PM, que tenham bacharelado em direito, empregados no policiamento ostensivo e que optem pela transposição para a Polícia Judiciária assumirão os cargos de Delegados de Polícia, com os níveis correspondentes às suas patentes anteriores, com a atuação específica na supervisão do setor de policiamento ostensivo, com as prerrogativas e atribuições do Delegado de Polícia Judiciária.

Isto posto, evidencia-se que com uma reengenharia do atual modelo policial brasileiro há condições de se prestar um serviço de segurança pública com inegável melhoria para a população, sem os atritos e os desvios de função que oneram as polícias estaduais no sistema atual. Para tanto não se faz necessário aumento de efetivo ou de despesas, mas tão somente uma mudança do sistema atual, já ultrapassado e não condizente com o Estado de direito vigente, onde não há mais espaço para o cerceamento de liberdades por instituição militar. A restrição de liberdades civis só é possível dentro da lei e por órgãos civis do Estado. Aos militares cabe tão somente a defesa do Estado brasileiro contra agressão externa, e, excepcionalmente contra ação por agentes internos na forma da lei.

A necessária modernização das polícias brasileiras no combate ao crime comum e organizado, deve se pautar pelos ditames da lei, com respeito aos direitos humanos, como o fazem a grande maioria das instituições policiais de países desenvolvidos, onde não existe a figura militar.

O Ciclo Completo de Polícia Judiciária representa a única saída possível, do atual estado de incompetência das polícias estaduais para enfrentamento do crime e oferecimento de uma segurança pública efetiva. A exposição de motivos esplanada demonstra a viabilidade operacional e financeira na reengenharia do atual modelo do aparelho policial estatal. Basta vontade política e compromisso com a sociedade brasileira para a implantação das mudanças necessárias.


 Julho de 2010.

* O autor é bacharel em direito pela Faculdade Católica de Direito de Santos. Ingressou na carreira policial em 1980 como Soldado da Polícia Militar de São Paulo, onde alcançou a graduação de 2º Sargento. Em 1989 assumiu o cargo de Investigador de Polícia, tendo exercido a função até aprovação no concurso para Delegado de Polícia em 1994. É autor de vários artigos relacionados à Segurança Pública publicados em páginas de diversos sites na Internet. Contato por e-mail: juvenalmarques2010@gmail.com .  



























ANEXO II

EMENDA CONSTITUCIONAL


CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
CONGRESSO NACIONAL
EMENDA CONSTITUCIONAL Nº __


Modifica o Sistema de Segurança Pública nos Estados, estabelece normas e dá outras providências.

As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do art.60 da Constituição Federal, promulgam esta Emenda ao texto constitucional:

Art. 1º - O artigo 144 e seus §§ 4º e 5º da Constituição Federal passam a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 144 - A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos que integram o Sistema Nacional de Segurança Pública:
I -   ...........................................
IV - polícias judiciárias estaduais;
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.


§ 4º - às polícias judiciárias estaduais, dirigidas por delegados de polícia de carreira, exercem com exclusividade, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares, bem como o policiamento ostensivo e as ações necessárias para a prevenção e repressão ao crime.
§ 5º - às polícias militares cabem a preservação da ordem pública no controle de distúrbios civis, policiamento em praças desportivas e as ações de operações especiais em situações de alto risco, além da manutenção dos corpos de bombeiros militares e a execução de atividades de defesa civil, sendo a base da Força Nacional de Segurança com as atribuições definidas em lei.

Art.2º - Insere o § 3º no artigo 89 nas Disposições Transitórias da Constituição Federal com a seguinte redação:

      § 3º - Os Estados disciplinarão em lei complementar as redistribuições dos equipamentos, materiais e imóveis da Polícia Militar para a Polícia Judiciária Estadual, bem como os efetivos policiais necessários para o policiamento ostensivo, garantido o direito de opção para os policiais militares para remanejamento para quadro em extinção, para a reestruturação dos órgãos policiais para o cumprimento do dispostos nos parágrafos 4º e 5º do artigo 144.


Art. 3º -  Esta Emenda Constitucional entra em vigor 45 (quarenta e cinco) dias após sua promulgação.

Brasília,   x  de x  de 2010

Mesa da Câmara dos Deputados

Mesa do Senado Federal