"Eu não recearia muito as más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Não há texto de lei que não deixe campo à interpretação.

A lei é morta. O magistrado vivo. É uma grande vantagem que ele tem sobre ela" - Anatole France

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Legalidade x reserva legal. ICMS não é IPI, exceto em São Paulo

 

JUSTIÇA TRIBUTÁRIA


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Uma das formas através das quais se garante aos cidadãos alguma segurança jurídica contra os arbítrios no exercício do poder é através de um sistema pelo qual o poder controla o próprio poder, denominado separação de poderes.

O princípio da legalidade geral está previsto na Constituição Federal em seu artigo 5°, II, ao prever que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei".

Ocorre que esse sistema não foi suficiente para regular as liberdades no mundo contemporâneo, pois a singela legalidade não dava conta das especificidades técnicas havidas na sociedade. Um sem número de questões que envolvem o quotidiano dos cidadãos não podem ser resolvidas na base naquilo que se convencionou chamar nos dias que correm de legalidade geral ou ampla.

Por outras palavras, o princípio da legalidade, em seu sentido geral, admite delegação de competência normativa  ou seja, admite que outra norma de âmbito infralegal, usualmente administrativa, complemente o conceito amplo estabelecido, e implemente a diretriz pretendida.

Nesse passo é que surge uma diferença no ordenamento jurídico, que é o estabelecimento do princípio da "reserva legal", através da qual só através de lei  reservado à lei  é que se pode adotar determinada conduta.

No Direito Penal é conhecido o adágio: "sem prévia lei, é nulo o crime e nula a pena" (CF, artigo5º, XXXIX.). Essa norma, que vai reger diretamente a liberdade da pessoa, não admite delegação de competência normativa  só a lei, entendida como ato do Poder Legislativo, é que poderá estabelecer o que seja um crime. Portanto, todos os detalhes descrevendo a conduta considerada criminosa devem estar contidos na lei, sem os quais não haverá a possibilidade de incriminação penal.

O mesmo ocorre no direito tributário, no qual algumas condutas só são permitidas ao Estado através de lei em sentido restrito, tal como a de criar e a de aumentar tributos. Só através de atos do Poder Legislativo descrevendo integralmente a conduta estabelecida como geratriz do pagamento, ou do aumento de tributos, é que estes poderão como tal serem considerados e cobrados. Sem lei em sentido estrito, não poderá haver tributação. O princípio da reserva legal tributária está previsto no artigo 150, I, CF.

O cerne da norma é claro: apenas a lei pode criar tributo, exercendo a competência tributária. Mas não é só. Apenas a lei pode estabelecer as características da exação tributária, fixando integralmente a hipótese de incidência em todos os seus aspectos.

Observe-se ainda que o princípio da reserva legal não se circunscreve à Constituição, podendo ser exigido por outras normas, como ocorre com o CTN no artigo 97, que cria um rol de condutas que só podem ser veiculadas através de lei em sentido formal, ou seja, aquelas que obedecem ao princípio da reserva legal tributária.

Assim, a diferença entre ambas as situações é flagrante. No princípio amplo da legalidade admite-se a delegação de competência normativa para outros órgãos diversos ao Poder Legislativo. Na reserva legal, ou princípio restrito da legalidade  princípio da reserva legal tributária , essa delegação de competência normativa é vedada, devendo constar na própria lei (ato do Poder Legislativo) todos os requisitos para que tenha eficácia jurídica a conduta regrada.

Um exemplo pode muito bem demonstrar a diferença entre o que estabelece nossa Constituição, no princípio da legalidade (artigo 5º, II) em contraposição com o que determina o princípio da reserva legal tributária (artigo 150, I).

Não existe uma lei que determine os locais em que os automóveis sejam proibidos de estacionar. Isso é estabelecido usualmente através de placas de trânsito, disponibilizadas pelos departamentos de trânsito de cada município, consoante delegação de competência normativa constante do Código Nacional de Trânsito (Lei 9.503/97). Aqui se está defronte ao princípio (amplo) da legalidade (artigo 150, II, CF), que admite delegação de competência normativa ao Poder Executivo para regrar aquela conduta através de normas infralegais  ou até mesmo por sinais de trânsito.

A situação é completamente distinta da instituição ou majoração de tributos, cuja imposição deve ser veiculada na própria lei, isto é, no próprio ato do Poder Legislativo, sendo absolutamente inconstitucional haver delegação de competência normativa, a teor do princípio da reserva legal tributária (artigo 150, I, CF). Assim, todos os elementos que impliquem em criação ou aumento de tributos devem ser veiculados na própria lei  ato do Poder Legislativo.

A jurisprudência do STF é pacífica e uníssona nesse sentido, ao reafirmar a reserva legal tributária, como se vê, entre muitas: ministro Celso de Mello (ADI 1296), ministro Marco Aurélio (RE 632.265) e ministro Roberto Barroso (RE 628848 ED).

Alguns tributos possuem um diferente perfil dentro dessa reserva legal, pois suas alíquotas são móveis, no limite de uma faixa criada por lei, que se constitui em um teto de tributação dentro do qual as alíquotas podem variar através de atos infralegais. São eles, de acordo com o artigo 153, §1º, CF: Importação (inciso I), Exportação (inciso II), IPI (inciso III) e IOF (inciso IV)  todos de competência privativa da União.

Ocorre que a Lei paulista 17.293/20, no artigo 22, §1º, sem amparo na Constituição Federal, e muito menos na Constituição Estadual, criou uma espécie de alíquota-teto para o ICMS em 18%, travestindo-o em um imposto tal qual IPI, IOF, IImp e IExp. Veja-se o texto:

"Artigo 22  Fica o Poder Executivo autorizado a:
II - Reduzir os benefícios fiscais e financeiros-fiscais relacionados ao Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS, na forma do Convênio nº 42, de 3 de maio de 2016, do Conselho Nacional de Política Fazendária – CONFAZ, e alterações posteriores.
§1º. Para efeito desta lei, equipara-se a benefício fiscal a alíquota fixada em patamar inferior a 18% (dezoito por cento)".

O Estado de São Paulo, através do artigo 22 da Lei nº 17.293/20, completamente à margem das normas constitucionais, criou para o ICMS uma metodologia própria de cálculo, que só existe para a União, e especificamente para alguns tributos, que é o da alíquota-teto, que pode variar para cima e para baixo dentro do percentual de 18% estabelecido. Ou seja, em razão dessa norma, o governador passou a ter tinta na caneta para aumentar e reduzir as alíquotas do ICMS até o teto de 18%, sem necessidade de ato específico do Poder Legislativo para aumentá-lo.

Pode? Não, não pode. Esta norma infringe o princípio da reserva legal tributária ao criar essa alíquota-teto, espécie de escala móvel tributária para o ICMS paulista, ao arrepio de qualquer norma constitucional.

É tão disparatado o procedimento em face do ordenamento jurídico que lembra o conhecido confisco da poupança realizado pelo governo Collor, em março de 1990, quando todos os valores depositados em bancos acima de cinquenta mil cruzados novos (cerca de R$ 8 mil em valores atuais) foram congelados para devolução de forma parcelada, iniciando-se 18 meses após. Existe uma decisão do TRF-3, na Arguição de Inconstitucionalidade na Apelação em Mandado de Segurança nº 36325, cujo impetrante foi Fábio Konder Comparato, na qual o relator, desembargador federal Américo Masset Lacombe, discorreu sobre as várias figuras jurídicas para configuração daquele bloqueio, tais como requisição, confisco, confisco temporário, servidão de uso ou empréstimo compulsório, chegando à conclusão de que nenhum desses institutos estava adequado ao figurino constitucional. É significativo o voto-desabafo do desembargador Márcio Moraes naquele caso:

"Convenci-me, Sr. Juiz Presidente, de que o bloqueio não é nada!
E não é nada porque não pertence ao mundo do Direito.
É um ato de força, tout court, que costumeiramente – e a história do Brasil que o diga – é veiculada pela espada.
Este veio, mais sofisticadamente, montado numa norma jurídica.
Daí porque não pode ter qualquer natureza jurídica, não se coaduna com quaisquer dos institutos do Direito.
Pertence a outro mundo, antinômico ao Direito, que é o mundo da força.
É uma violência, simplesmente".

Este voto-desabafo é exemplar porque bem define o artigo 22 da Lei estadual paulista nº 17.293, de 15 de outubro de 2020, considerando-o como um ato de força, montado em uma norma jurídica, que não se coaduna com quaisquer dos institutos do Direito. É uma violência, simplesmente.




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 é professor titular de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e atualmente no exercício da presidência da Comissão de pós-graduação da faculdade.

Revista Consultor Jurídico, 16 de novembro de 2020, 9h45

HC no STF reacende discussão de litigância de má-fé no processo penal.

 

ABUSO DE RECORRER


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A possibilidade de fixar ou não multa por litigância de má-fé por supostos usos indevidos dos recursos ainda não está pacificada nos tribunais superiores. Enquanto o Superior Tribunal de Justiça entende não ser possível, o Supremo Tribunal Federal tem precedentes pela imposição de multa sobre o valor da condenação. 

Em novembro, o tema voltou à discussão com julgamento de um agravo em Habeas Corpus na 2ª Turma do STF. Nele, a defesa reiterou sofrer constrangimento ilegal pela 2ª Câmara Criminal do Rio de Janeiro, que aplicou multa "de altíssimo valor ao colaborador da Justiça". 

O relator do caso, ministro Ricardo Lewandowski, já havia entendido antes que o HC não deveria seguir, por supressão de instância. O ministro apontou que os argumentos não haviam sido enfrentados pelo Superior Tribunal de Justiça, "que se limitou a não conhecer do habeas corpus, por inadequação da via eleita".

O ministro negou o agravo, no que foi seguido de forma unânime pelo colegiado. Em seu voto, Lewandowski registra "para afastar qualquer possibilidade de concessão da ordem, de ofício" que a jurisprudência do STF já firmou que o uso indevido "das espécies recursais no processo penal desvirtua o postulado da ampla defesa e configura abuso do direito de recorrer, sendo permitido, em tais casos, a fixação de multa por litigância de má-fé".  

Depois, Lewandowski aponta precedentes de julgamentos neste sentido de relatoria dos ministros Dias Toffoli e Marco Aurélio — integrantes da 1ª Turma. O relator também afirmou ser inviável a discussão acerca da viabilidade dos embargos de declaração opostos no TJ, "para chegar-se a conclusão diversa da que chegou aquele Tribunal e afastar a litigância de má-fé".

O julgamento aconteceu em Plenário virtual, com acórdão publicado nesta segunda-feira (30/11). E o resultado está longe de ser unanimidade na comunidade jurídica. 

De acordo com o ministro Rogerio Schietti Cruz, do Superior Tribunal de Justiça, o precedente é instigante, pois "denota uma reação legítima do Judiciário ante iniciativas que desbordam do justo e necessário direito ao recurso". Para ele, a decisão também "adentra o terreno de certas estratégias defensivas, nem sempre compatíveis com a ideia de devido processo legal".

Os criminalistas Alberto Zacharias ToronBruno Salles Pereira Ribeiro e Marina Chaves Alves não veem da mesma forma. Toron diz ser "assustador que se comprometa o direito de recorrer no processo penal com a ameaça de multa e, mais grave, sob o duvidoso, fluido e vago, argumento do desvirtuamento da ampla defesa". 

"Preocupa-me como isso será lido pelos juízes de primeiro grau e pelos tribunais em geral. Já tive antigo caso no TRF-3 em que, por conta de uma única oposição de embargos declaratórios, os çabios de então decidiram ter havido abuso e impuseram multa. O STJ, em memorável acórdão relatado pela Min. Maria Thereza de Assis Moura (HC 184.050; DJe 03/09/2013) afastou a multa e mandou o TRF-3 julgar os declaratórios. Temo abusos e incompreensões dos muitos çabios que estão à solta por aí", afirma.

Já para Alves, apesar de a multa estar devidamente prevista no Código de Processo Civil, deve ser vista com reservas no campo penal, no qual a defesa deve ser ampla e irrestrita. "O defensor não pode ser tolhido no alcance da defesa da liberdade de seu constituinte e, para tal, deve ser livre para manejar todos os recursos cabíveis, sem medo de arcar com prejuízos pela sua combatividade — atributo fundamental para um bom advogado. Em tempos nos quais a arbitrariedade ganha força, é ainda mais importante contar com o judiciário alinhado na defesa das garantias individuais e atento à liberdade do cidadão de acionar irrestritamente o judiciário em busca de justiça."

Salles também relembra do entendimento pacificado no Superior Tribunal de Justiça, de que não cabe a aplicação de litigância de má-fé no processo penal. Em 2018, o STJ definiu não ser possível impor a multa porque não há previsão expressa no Código de Processo Penal, sua aplicação constituiria analogia in malam partem (em prejuízo do réu).

"A um, porque mencionado instituto é previsto no CPC e sua transposição para o processo penal seria uma analogia in malam partem. A dois, porque mencionado dispositivo representa claro gravame ao direito de defesa, que deve ser amplo no processo penal", explica Salles.

O ministro Jorge Mussi, do STJ, já havia destacado que, mesmo não havendo na esfera penal a fixação de multa por litigância de má-fé, a insistência na apresentação de sucessivos embargos contra acórdão proferido por colegiado revela exagerado inconformismo e desrespeito ao Poder  Judiciário (AREsp 651.581).

Segundo Salles, vale ressaltar que é o STJ e não o Supremo que deve determinar o encaminhamento da matéria infraconstitucional. "A aplicação de mencionado instituto enfrentaria graves problemas no sistema de justiça criminal, já que poderia incidir em aplicação de multa aos defensores públicos pelo exercício regular de suas funções."

Clique aqui para ler o acórdão
Agr HC 192.814




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 é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 1 de dezembro de 2020, 13h48

STF permite averbação e proíbe a indisponibilidade de bens pela Fazenda

 

EXECUÇÃO ADMINISTRATIVA


Por 

A Fazenda Pública pode averbar, mas não pode decretar a indisponibilidade de bens sem decisão judicial ou direito ao contraditório. O entendimento foi firmado pela maioria do Supremo Tribunal Federal, nesta quarta-feira (9/12), ao declarar inconstitucional trecho da Lei 13.606/2018, que permite a medida. 

Supremo afasta trecho que permitia Fazenda Pública declarar indisponibilidade de bens
Rosinei Coutinho/STF

Ao todo, seis ações questionaram a constitucionalidade do artigo 25 da Lei 13.606/2018, que inseriu na Lei do Cadin (Lei 10.522/02) o artigo 20-B. Nele, é previsto que a Fazenda poderá, em caso de não pagamento do crédito inscrito em dívida ativa, "averbar, inclusive por meio eletrônico, a certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora, tornando-os indisponíveis".   

Relator, Marco Aurélio votou para determinar a inconstitucionalidade dos dispositivos. Para ele, a lei promoveu um desvirtuamento do sistema de cobrança da dívida ativa da União e está "em desarmonia com as balizas constitucionais no sentido de obstar ao máximo o exercício da autotutela pelo Estado".

Marco Aurélio citou artigo do professor Fernando Facury Scaff em coluna na ConJur, no qual o tributarista explica que o dispositivo "cria uma espécie de 'execução fiscal administrativa', que se iniciará com a constrição dos bens, para posterior análise judicial — se isso ocorrer".  

"O sistema não fecha, revelando-se o desrespeito aos princípios da segurança jurídica, da igualdade de chances e da efetividade da prestação jurisdicional, os quais devem ser observados por determinação constitucional, em contraposição à ideia da 'primazia do crédito público'", afirmou o relator. Seu voto foi seguido por Nunes Marques e Luiz Edson Fachin.

Barroso sugeriu caminho médio adotado pela maioria; será redator do acórdão
Nelson Jr./STF

Luís Roberto Barroso inaugurou a linha de entendimento de que a averbação é legítima e prevista em lei, mas a indisponibilidade não pode ser automática e exige reserva de jurisdição. "A intervenção drástica sobre o direito de propriedade exige a atuação do poder Judiciário."

Votaram da mesma forma os ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Luiz Fux. Gilmar também validou a averbação e apontou que a indisponibilidade de bens poderá ser eventualmente alcançável, mas precisa contar com a atuação do Judiciário. Ele votou pela inconstitucionalidade somente do trecho "tornando-os indisponíveis" da lei.

Constitucionalidade da norma
Inaugurando a divergência, o ministro Dias Toffoli entendeu que o dispositivo não ofende a cláusula de reserva de jurisdição, ao contraditório e à ampla defesa.

Também afastou a alegada ofensa ao artigo 5º, XXXV, porque “inexiste necessidade de acionar o Judiciário para averbação pré-executória, já que ela consiste em mero ato de registro''. A averbação não afasta a possibilidade do devedor ir à Justiça, segundo Toffoli.

Votando pela constitucionalidade da indisponibilidade de bens pela Fazenda, Toffoli também entendeu que não há ofensa ao princípio da livre iniciativa, porque sendo o devedor pessoa jurídica, “a averbação recairá sobre bens e direitos de sua propriedade”.

Toffoli afastou alegações de que a lei ofende a livre iniciativa, a cláusula de reserva de jurisdição, o contraditório e a ampla defesa.

Para Toffoli, a lei impugnada buscou aprimorar a eficiência da cobrança do crédito inscrito em dívida ativa. Alexandre de Moraes concordou com Toffoli e explicou seu entendimento de que a norma não representa expropriação de bens, mas apenas a indisponibilidade temporária. 

Também compuseram essa corrente as ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia.

As ações
A primeira ADI questionando a norma foi protocolada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), que alegou afronta aos princípios constitucionais do devido processo legal, da reserva de jurisdição, do direito de propriedade e da isonomia.

De acordo com o PSB, a medida institui o Programa de Regularização Tributária Rural, o Refis do Funrural, e não ajuda o Fisco a combater devedores que se valem de subterfúgios para esconder seus bens, afetando apenas aqueles que têm dívidas, mas agem legalmente.

Outra ação foi protocolada pelo Conselho Federal da OAB, que sustenta que a lei contém duas previsões inconstitucionais. A primeira trata da possibilidade de a Fazenda Pública comunicar o nome dos contribuintes inscritos em dívida ativa aos órgãos que operam bancos de dados e cadastros específicos relativos a consumidores e aos serviços de restrição ao crédito.

A segunda permite que o Fisco torne indisponíveis bens particulares à revelia do Poder Judiciário, fazendo o bloqueio com o pretexto de não frustrar a satisfação dos débitos tributários. 

A Procuradoria-Geral da República manifestou pela declaração de inconstitucionalidade do trecho da lei. As outras ações foram ajuizadas pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, pela Associação Brasileira de Atacadistas e Distribuidores de Produtos Industrializados (Abad), pela Confederação Nacional do Transporte e pela Confederação Nacional da Indústria.

Clique aqui para ler o voto do relator
Clique aqui para ler o voto de Fachin
ADIs 5.881, 5.932, 5.886, 5.890, 5.925 e 5.931




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 é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 9 de dezembro de 2020, 19h03

Os novos elementos do tipo penal de denunciação caluniosa.

 


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A Lei 14.110, de 18/12/2020, alterou a redação do artigo 339 do Código Penal, que tipifica o crime de denunciação caluniosa.

Algumas alterações realizadas corrigiram deficiências técnicas que existiam na redação anterior. Assim é que o novo dispositivo substituiu o elemento objetivo investigação policial por inquérito policial e procedimento de investigação criminal; investigação administrativa por processo administrativo disciplinar. Além disso, incluiu infração ético-disciplinar e ato ímprobo como elementos objetivos do tipo.

O dispositivo, com sua nova redação, diz que:

"Dar causa à instauração de inquérito policial, de procedimento investigatório criminal, de processo judicial, de processo administrativo disciplinar, de inquérito civil ou de ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime, infração ético-disciplinar ou ato ímprobo de que o sabe inocente: Pena. Reclusão, de dois a oito anos, e multa."

Com essas alterações foram supridas omissões e contradições existentes no tipo, que geravam confusão e dúvidas na interpretação da norma penal.

O bem jurídico tutelado é a administração da justiça no seu sentido mais amplo. Condutas como as retratadas no dispositivo atrapalham o normal desenvolvimento de investigações e processos, na área cível, criminal e administrativa.

À primeira vista pareceria que o delito não poderia ser cometido por agentes públicos, o que não é verdade. O crime é comum. Por isso, pode ser praticado por qualquer pessoa, inclusive por delegado de polícia e promotor de Justiça, desde que saibam que a pessoa a quem imputam o cometimento da infração é inocente (dolo direto).

Aliás, o artigo 27 da Lei 13.869/2019, que trata dos crimes de abuso de autoridade, traz norma especial sobre o tema. Cometerá abuso de autoridade o agente público competente que: "Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Parágrafo único. Não há crime quando se tratar de sindicância ou investigação preliminar sumária, devidamente justificada".

Também comete abuso de autoridade, de acordo com o artigo 30 da Lei 13.869/2019, o agente público competente que: "Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente: Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa".

As duas normas previstas na Lei de Abuso de Autoridade são especiais e, no caso de conflito com a norma geral prevista no Código Penal, serão aplicadas, não obstante cominem pena mais amena.

Cuidando-se de ação penal pelo delito falsamente imputado pública condicionada ou privada, só os titulares deste direito (representação, requisição ou queixa) é que poderão ser o sujeito ativo do delito em apreço, porque somente com a iniciativa dessas pessoas é que poderá haver a instauração de investigação criminal ou ação penal.

Não apenas o Estado será a vítima deste delito. Também é sujeito passivo secundário a pessoa atingida pela falsa imputação.

A conduta típica consiste em dar causa à instauração de inquérito policial, de procedimento investigatório criminal, de processo judicial, de processo administrativo disciplinar, de inquérito civil ou de ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime, contravenção penal, infração ético-disciplinar ou ato de improbidade administrativa, de que o sabe inocente.

O agente, sabedor de que uma pessoa é inocente (dolo direto), imputa a ela a prática de crime, contravenção penal, infração ético-disciplinar ou ato ímprobo que não cometeu ou que sequer existiu, provocando a instauração de procedimento investigativo (inquérito policial, procedimento investigatório criminal ou inquérito civil), processo administrativo disciplinar, processo judicial criminal ou por ato de improbidade administrativa.

Inquérito policial é o procedimento inquisitivo instaurado pela polícia Judiciária para apuração de infrações penais. Não há necessidade da instauração formal do procedimento, bastando que ocorra o início de uma investigação, como quando são ordenadas diligências para apuração preliminar sobre a existência de determinado fato.

Procedimento investigatório criminal, mais conhecido como PIC, é a investigação criminal realizada no âmbito do Ministério Público para a apuração de infração penal de natureza pública [1].

Antes do advento da Lei 10.028/2000, que inseriu no tipo a investigação administrativa, o inquérito civil e a ação por ato de improbidade administrativa, pacífico se mostrava o entendimento de que o processo judicial a que alude a norma era apenas o de natureza penal. Atualmente, também está abrangido o processo civil decorrente da propositura de ação civil pela prática de ato de improbidade administrativa. Como a simples instauração do inquérito civil já é ato configurador do delito, com muito mais razão também deve ser o processo decorrente da propositura de uma ação de improbidade administrativa.

Processo administrativo é aquele que tramita perante a administração pública para apuração de uma infração ético-disciplinar. A nova redação do dispositivo não mais contempla a mera sindicância administrativa ou procedimento similar, que normalmente antecedem a instauração do processo administrativo disciplinar e servem para angariar indícios da prática da infração administrativa.

Inquérito civil é o procedimento administrativo e inquisitivo instaurado no âmbito do Ministério Público para apuração de fatos que importem violação a interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos. Geralmente, ele antecede a propositura de uma ação civil pública que é movida para a tutela desses interesses. No caso, o inquérito civil deve ter sido instaurado para a apuração da prática de ato de improbidade administrativa, como deixa claro a parte final do tipo penal.

Ação de improbidade administrativa é a movida para o reconhecimento de infração de natureza civil descrita na Lei 8.429/1992, que pode ensejar ao funcionário público a perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao seu patrimônio, reparação integral do dano, quando houver, a perda da função pública, a suspensão dos direitos políticos, a proibição de contratar com o Poder Público por determinado tempo e o pagamento de multa. Também pode atingir o particular, inclusive empresa, que age em concurso com o funcionário público ou do ato ímprobo se beneficie direta ou indiretamente.

A nova redação dada ao tipo penal supriu a lacuna normativa existente. Pela redação anterior, o processo ou o procedimento a que alude o tipo devia ter sido instaurado em decorrência da falsa imputação de crime ou de contravenção. Se houvesse a instauração para a apuração da prática de infração disciplinar ou de ato de improbidade administrativa, que não correspondessem a uma infração penal, não haveria o delito.

Pela atual redação, o ato de improbidade administrativa e a infração ético-disciplinar passaram a ser elementos objetivos do tipo, cessando a celeuma existente.

A imputação pode ser de fato que realmente existiu ou fictício, mas feita a pessoa determinada. A imputação pode dar-se por qualquer meio (oral, escrito, notícia anônima, por interposta pessoa etc.).

Não haverá o crime se a imputação for parcialmente verdadeira, sendo que o erro exclui o dolo e o crime.

Também não haverá a denunciação caluniosa se em decorrência do fato imputado houver a absolvição ou o arquivamento do inquérito policial ou do procedimento investigatório criminal em virtude da extinção da punibilidade (prescrição, anistia etc.), ou se for reconhecida alguma causa excludente da ilicitude ou da culpabilidade. Isso porque havia fato típico sujeito a investigação da autoridade policial ou do membro do Ministério Público, ou, ainda, de ação da autoridade Judiciária.

Não é porque o inquérito policial ou procedimento investigatório criminal foram arquivados ou adveio a absolvição que ocorrerá a denunciação caluniosa. Para a caracterização do delito é exigida a falsa imputação dolosa da infração penal (dolo direto).

Advindo a absolvição por estar provada a inexistência material do fato ou que o acusado não foi o seu autor ou partícipe, o crime em estudo poderá estar configurado, desde que tenha havido a falsa imputação dolosa da infração (crime ou contravenção).

Do mesmo modo que ocorre com a infração penal, advindo o arquivamento do inquérito civil ou do processo administrativo, ou a improcedência da ação de improbidade administrativa por insuficiência de provas, não ocorrerá denunciação caluniosa, que pressupõe dolo direto de imputar falsamente a prática do ato ilícito.

Também ocorrerá o delito se o sujeito aumentar a gravidade do crime originalmente praticado. Como exemplo, se o sujeito sabe que Fulano praticou fato definido na lei penal como furto, mas leva ao conhecimento da autoridade policial a ocorrência de fato caracterizador do delito de roubo, dando causa à instauração do inquérito policial, ocorrerá denunciação caluniosa.

A denunciação caluniosa absorve a calúnia, que é sua elementar, mas não a difamação e a injúria, que são com ela compatíveis.

Há sensível diferença entre este delito e a calúnia. Nesta última, há somente a falsa imputação de crime. Na denunciação caluniosa, o agente imputa o fato ilícito falsamente e dá causa à instauração de procedimento investigativo (inquérito policial, procedimento investigatório criminal ou inquérito civil), processo administrativo disciplinar, processo judicial criminal ou por ato de improbidade administrativa.

Por outro lado, se a imputação for à pessoa indeterminada de crime ou contravenção que não ocorreu, o delito será o de falsa comunicação de crime ou contravenção, desde que tenha havido provocação da ação da autoridade (Código Penal, artigo 340).

Na teoria, para que seja proposta a ação penal por este delito, não há necessidade do arquivamento ou julgamento do feito cuja imputação falsa o deflagrou, haja vista não haver questão prejudicial. Todavia, na prática é recomendável, isso para que não ocorram decisões conflitantes. De tal forma, antes de ser proposta a ação penal por este delito, deve-se aguardar o arquivamento do procedimento investigativo, processo administrativo disciplinar ou a sentença da ação judicial oriundas da falsa imputação do crime, contravenção, infração ético-disciplinar ou ato de improbidade administrativa.

Ocorre a consumação do delito com a instauração do inquérito policial, do procedimento investigatório criminal, do inquérito civil, do processo judicial ou do processo administrativo disciplinar (crime material). Inclusive, basta que a autoridade (delegado, promotor etc.) inicie as investigações sem a necessidade de instauração formal do procedimento. Admite-se a tentativa, quando, embora tenha havido a falsa imputação, o crime não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.

A norma possui uma causa de aumento e outra de diminuição de pena previstas nos parágrafos 1º e 2º.

Se o agente se servir de anonimato ou de nome suposto para a prática do delito, a pena será aumentada de sexta parte (parágrafo 1º). Cuida-se de conduta mais severa porque é mais difícil apurar a autoria do delito e a culpabilidade do agente é mais acentuada.

A imputação pode ser da prática de crime ou contravenção. No caso de contravenção, a pena é diminuída da metade (parágrafo 2º). Como contravenção é infração penal mais amena, haverá a redução da reprimenda obrigatoriamente.

As alterações trazidas são muito bem-vindas porque solucionaram dúvidas doutrinárias a respeito do tema.

Ademais, esta modalidade de delito traz inegável prejuízo aos órgãos de investigação e à Justiça, posto que são instaurados procedimentos para a apuração de fatos praticados por outra pessoa ou que não ocorreram, além de causar sérios transtornos e gravames àquele que é investigado ou processado indevidamente.


[1] O Ministério Público possui poder de investigação criminal decorrente de suas próprias atribuições constitucionais, dentre elas a titularidade da ação penal pública (artigo 129 da Constituição). Não é preciso muita divagação para entender que se o Ministério Público pode o mais, que é propor a ação penal pública, também pode o menos, que é investigar para trazer melhores subsídios para o processo a fim de obter a procedência de seu pedido (teoria dos poderes implícitos). O poder de investigação criminal do Ministério Público foi reconhecido por praticamente todos os tribunais brasileiros, inclusive pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal ao julgar o Recurso Extraordinário 593.727 em 14.05.2015, que teve reconhecida repercussão geral. Nesse julgamento ficou assentado que o Ministério Público dispõe de atribuição para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias de que assistem a qualquer indiciado ou pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos os advogados (Lei 8.906/94, artigo 7º, notadamente os incs. I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX), sem prejuízo da possibilidade – sempre presente no Estado Democrático de Direito – do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (Súmula Vinculante 14), praticados pelos membros dessa instituição.




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 é procurador de Justiça do MP-SP.

Revista Consultor Jurídico, 25 de dezembro de 2020, 18h31

Fazer pagamento de funcionário fantasma não é crime, diz STJ

 

SANÇÃO CIVIL OU ADMINISTRATIVA


Por 

O funcionário público que recebe remuneração e, supostamente, não exerce a atividade laborativa que dele se espera não pratica crime. Da mesma forma, pagar salário não constitui desvio ou apropriação da renda pública, pois é obrigação legal. Eventuais fraudes podem ser alvo de sanções administrativas ou civis, mas não de sanção penal.

Eventuais fraudes no caso de funcionário público que recebe, mas não trabalha, podem ser alvo de sanções administrativas ou civis, mas não de sanção penal
123RF

Com esse entendimento, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça trancou ação penal contra o prefeito de Ilha das Flores (SE), Christiano Rogério Rego Cavalcante, e contra um funcionário fantasma que teria sido contratado por ele, mas, segundo o Ministério Público, jamais desempenhou qualquer serviço público para o Município.

Ambos foram denunciados por pela prática do crime previsto no artigo 1º, inciso I, do Decreto-Lei 201/1967. A norma diz que comete crime de responsabilidade o prefeito que apropria-se de bens ou rendas públicas, ou desvia-os em proveito próprio ou alheio.

Primeiro, o STJ concedeu a ordem em Habeas Corpus para trancar a ação penal em relação ao servidor, por considerar que a não prestação de serviços não configura o crime indicado pelo MP.

Segundo o relator, ministro Sebastião Reis Júnior, a conduta descrita sequer poderia ser enquadrada no artigo 312 do Código Penal, que tipifica o ato de “apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio”.

Configuração, em tese, de falta disciplinar ou de ato de improbidade administrativa, disse o ministro Sebastião Reis Júnior
Rafael Luz/STJ

“Afinal, está pacificado o entendimento de que servidor público que se apropria dos salários que lhe foram pagos e não presta os serviços atinentes ao cargo que ocupa não comete peculato. Configuração, em tese, de falta disciplinar ou de ato de improbidade administrativa”, entendeu.

Posteriormente, Christiano Rogério Rêgo Cavalcante pediu extensão da decisão de HC com base no artigo 580 do Código de Processo Penal. A norma diz que, no caso de concurso de agentes, a decisão do recurso interposto por um dos réus, se fundado em motivos que não sejam de caráter exclusivamente pessoal, será aproveitada aos outros.

O pedido foi negado porque os corréus estão em situação distinta na ação. Um foi denunciado na condição de nomeado para exercício de função pública. O outro, na condição de gestor público, prefeito, responsável pela nomeação.

“Nessas condições, a denúncia até poderia descrever conduta do requerente no intuito contratar, às expensas do erário, funcionário privado, isto é, para utilizar o servidor público nomeado para a realização de serviços privados ao prefeito, mas isso não ocorreu. Assim, na minha visão, é caso de concessão da ordem de Habeas Corpus, de ofício”, concluiu.

A concessão cita jurisprudência da turma segundo a qual “pagar ao servidor público não constitui desvio ou apropriação da renda pública, tratando-se, pois, de obrigação legal. A forma de provimento, direcionada ou não, em fraude ou não, é questão diversa, passível inclusive de sanções administrativas ou civis, mas não de sanção penal”.

HC 466.378




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 é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 26 de dezembro de 2020, 14h26

Para advogados, decisão do STF reforça função constitucional do Ministério Público.

 

ÓRGÃO SUI GENERIS


O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, negou arguição de descumprimento de preceito fundamental — ADPF 758 — da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), que questionava Habeas Corpus coletivos concedidos pelo Superior Tribunal de Justiça.

Decisão do ministro Gilmar Mendes foi dada no bojo da ADPF 758
Dorivan Marinho/SCO/STF

Em decisões recentes, o STJ, por causa da epidemia da Covid-19, permitiu a transferência para prisão domiciliar de presos que cumprem pena nos regimes aberto e semiaberto.

Ao indeferir a petição, Gilmar destacou que o Ministério Público é uma instituição que deve proteger a ordem jurídica e os direitos fundamentais, e não um órgão exclusivamente voltado para a acusação e obtenção da condenação do réu.

A decisão do ministro foi avaliada por advogados especialistas em Direito Penal como uma volta aos princípios constitucionais que deram origem ao Ministério Público.

Conrado Gontijo, advogado criminalista, doutor em Direito Penal e Econômico pela USP, diz que Gilmar mostrou compromisso com a Constituição Federal e com os direitos fundamentais. "Embora na ação penal o MP assuma a função de acusador, ele não deve desempenhar tal função a qualquer custo, em qualquer circunstância. Cumpre ao MP, antes de tudo, o papel de atuar para ver atendidos, nos casos concretos, os direitos e garantias fundamentais e a justiça, e de zelar por essas garantias. Portanto, é irretocável a decisão do ministro e é essencial que se faça uma reflexão mais profunda sobre essa questão essencial", analisa. 

Bruno Salles, advogado criminalista e sócio do Cavalcanti, Sion e Salles Advogados, destaca que a Constituição de 1988 "conferiu poderes extremamente alargados para o Ministério Público". "Ao contrário de outros países em que há uma divisão entre o órgão acusador (a 'fiscalía' de países latinos) e o órgão de assessoramento (o próprio Ministério Público), no Brasil, concentraram-se todas as funções em um órgão só. O Ministério Público, assim, tem um desenho institucional que, além de competências em matérias difusas — como meio ambiente, urbanismo, educação, saúde e cidadania —, reúne a titularidade da ação penal, ou seja, a prerrogativa da acusação criminal, e também o papel de custus legis, o fiscal da lei. Assim, enquanto perdurar essa arquitetura que faz do nosso Ministério Público uma instituição sui generis, ele tem, sim, o dever de resguardar os direitos dos acusados, inclusive atuando na persecução penal para produção de provas absolutórias. Infelizmente, como emerge do voto do ministro Gilmar Mendes, isso raramente ocorre na prática", avalia.

Já o advogado Daniel Gerber, criminalista com foco em gestão de crises e compliance política e empresarial, destaca a dificuldade do papel dos procuradores em casos específicos. E diz que o perfil híbrido do MP muitas vezes atrapalha a própria defesa.

"Não obstante a posição constitucional do MP ser a de fiscal da lei e, consequentemente, ter a obrigação de defender o réu diante de inconsistências legais, exigir de uma pessoa física que em processos penais acuse e defenda ao mesmo tempo é não apenas inviável como também improdutivo e falacioso, gerando ao órgão acusador uma falsa impressão de imparcialidade que acaba por prejudicar a defesa. Dessa forma, apesar da boa intenção constitucional, o MP deve ser visto como parte acusatória no processo penal, longe de ter para si a aura de fiscal da lei que lhe acompanha nas demais áreas do Direito. É acusador, comprometido com a condenação, motivo pelo qual em nada ultrapassa ou se diferencia da parcialidade e compromisso que caracteriza o defensor técnico", opina.

Já Almino Afonso Fernandes, advogado constitucionalista e sócio do Almino Afonso & Lisboa Advogados Associados, entende que a decisão é um olhar externo saudável para dentro do MP, hoje sob a mira da sociedade e da imprensa. "O sistema de Justiça é sustentado no tripé 'juiz, Ministério Público e advogados'. Porém, incumbe a esses atores velar pelo cumprimento das leis e promover as garantias dos direitos fundamentais, assegurados pela Constituição da República. Imaginar que órgãos da Justiça possam se submeter a projetos não republicanos que visem projeção pessoal ou corporativa através do aparelhamento do Estado é, no mínimo, subestimar a inteligência média do cidadão brasileiro. Por isso, há que se prestigiar o MP, para que não se estabeleça nas instituições uma terra sem lei, em que autoridades possam ser imunes ao sistema de controle social, tão natural numa democracia. Portanto, no Estado Democrático a Defesa de direitos não é monopólio dos advogados, mas de todos que estão ali a representar por delegação os interesses da sociedade", enfatiza. 

Cecilia Mello, titular do Cecilia Mello Advogados e que atuou por 14 anos como juíza federal no TRF-3, acredita que a decisão de Gilmar Mendes reforça a necessidade de uma constante reflexão sobre as funções constitucionais e essenciais à Justiça atribuídas ao Ministério Público, "que não pode extrapolar o contexto fático e probatório em nítida atuação persecutória desprovida de fundamentos". 

No entender do advogado Diego Henrique, criminalista associado ao Damiani Sociedade de Advogados, a decisão do ministro do STF "é 'cirúrgica', contrariamente à constante tentativa reducionista de transformar a instituição em mero acusador, e faz prevalecer a dignidade constitucional do Ministério Público como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, exatamente como descreve o artigo 127 da Constituição Federal".

Claudio Bidino, sócio do Bidino & Tórtima Advogados, mestre em Criminologia e Justiça Criminal pela Universidade de Oxford, recorda o papel principal do Ministério Público: "O Ministério Público não pode deixar que os inúmeros poderes investigativos e acusatórios adquiridos nos últimos anos se sobreponham à principal função que lhe foi atribuída pela Constituição Federal: a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis", afirma.

No escritório Fidalgo Advogados, a equipe de Direito Penal comemorou a decisão do ministro, que, segundo seus integrantes, deve aliviar a pressão sobre procuradores e promotores de denunciar em qualquer situação. Os advogados Alexandre FidalgoJessica Thais de LimaMaria Carolina Dantas e Giovanna Sousa contam ter trabalhado em raros casos em que o próprio Ministério Público reconheceu a inocência de réus, seja em pareceres, seja como parte acusadora.  

Bruno Borragine, advogado criminalista e sócio do Bialski Advogados, também enalteceu a decisão de Gilmar Mendes. "Está correta a interpretação do ministro sobre o papel e funções do Ministério Público. O MP não é órgão de acusação, mas sim uma instituição legitimada a propor acusações nas ações penais públicas. Ou seja, esta sutil, mas importantíssima distinção de funções é essencial para deixar claro que o representante do Ministério Público, também quando atuante em campo penal, deve buscar sempre a defesa da ordem jurídica, dos interesses sociais e individuais indisponíveis, no exercício de suas atribuições de maneira imparcial, despido de interesses pessoais voltados para a acusação a qualquer custo". 




Revista Consultor Jurídico, 10 de dezembro de 2020, 21h57