"Eu não recearia muito as más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Não há texto de lei que não deixe campo à interpretação.

A lei é morta. O magistrado vivo. É uma grande vantagem que ele tem sobre ela" - Anatole France

domingo, 29 de setembro de 2019

A lei 13874/19 e as alterações na CLT.

jusbrasil.com.br 29 de Setembro de 2019 

A MP da liberdade econômica se transformou na lei 13874/19. 
Quais mudanças na legislação trabalhista ela trouxe? 


Artigo originalmente publicado em Alexandre Bastos Advocacia.

O que muda para as empresas?

 Introdução à lei 13874/19 A MP 881 também chamada de MP da liberdade econômica, foi sancionada, convertendo-se na lei 13874/19. 
  Dentre as alterações realizadas, algumas delas modificaram novamente os artigos da CLT. Em razão disso a MP ficou conhecida como a "mini reforma trabalhista".
 Apesar de causar certo impacto na dinâmica das empresas, em suma, nenhum direito foi substancialmente alterado. No entanto, é importante que as empresas estejam cientes das mudanças existentes para implantá-las em suas rotinas. 
Segue abaixo algumas delas

 CTPS. 

 As principais mudanças trazidas pela lei 13874/19, em relação a carteira de trabalho do empregado, dizem respeito primeiramente ao seu formato, que agora passa a ser preferencialmente eletrônica.
 Um dos problemas enfrentados e que geravam prejuízos ao empregador era a perda da CTPS dos empregados. 
 Apesar de não ser tão comum, caso fosse comprovado que a perda da CTPS se deu por culpa da empresa, estas eram condenadas em danos morais e materiais, como nesse caso, onde a empresa foi obrigada a compensar o funcionário pelos danos no valor de R$ 15.000,00. 
 Ademais, a CTPS eletrônica facilita a dinâmica das anotações, já que menos tempo será dispendido para efetuar os registros. Entretanto, apesar da CTPS se expedida preferencialmente no formato eletrônico, a carteira física também poderá ser emitida, porém de forma excepcional. Além disso, o número de registro do funcionário será o seu próprio CPF. 
 Na prática, a centralização cada vez maior em apenas um registro, facilita e torna mais efetiva a burocracia em volta das anotações. 
 O Ministério da Economia passa também a determinar os modelos para expedição da nova CTPS, bem como as instruções para seu uso. 
 A nova lei, também revoga alguns artigos da CLT, entre as quais, os antigos arts. 53 e 54 que aplicavam multas as empresas que retinham as carteiras de forma indevida ou não cumpriam determinações judiciais. 
 No entanto, novas penalidades devem ser introduzidas sob pena de incentivar o descumprimento às normas trabalhistas. 

 Jornada de trabalho 

 Provavelmente no âmbito da jornada de trabalho tenha ocorrido as mudanças mais controvertidas da Lei 13874/19. 
 Essas alterações influenciam principalmente os pequenos empreendimentos trazendo menos custos ao negócio. 
 A primeira mudança é a necessidade de registro de jornada apenas para as empresas que possuam mais de 20 empregados. /
 Antes esse limite era menor, sendo obrigatória a anotação nas empresas com mais de 10 empregados.  
 Outra importante mudança é a possibilidade de registro de jornada por exceção mediante acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho. Nessa modalidade é registrado apenas situações que extrapolem a rotina comum, como horas extras, faltas e etc. Essa mudança vem trazer fim aos debates sobre a possibilidade ou não da instituição do ponto por exceção. Isto porque, desde a reforma trabalhista, a lei 13467/17, já era permitido por meio de convenção coletiva de trabalho e acordo coletivo de trabalho, a instituição de outras formas para registro de jornada. Entretanto, o posicionamento do TST sempre foi no sentido de proibir a utilização da marcação de ponto por exceção, já que o instituto não era permitido na antiga legislação. Apesar da possibilidade dessa nova modalidade, nossa orientação continua sendo para que as empresas mantenham a marcação de ponto comum, naquela em que se registra toda a jornada do empregado, pois este documento traz muito mais segurança em eventual ação trabalhista. Caso contrário, adotando o registro de ponto por exceção, a comprovação da efetiva jornada pode se tornar muito mais complicada, trazendo prejuízos a empresa. 

E-SOCIAL / 

 O sistema surgiu inicialmente como uma forma de desburocratizar as empresas, reunindo em uma única plataforma os dados de inúmeros empregados pelo Brasil. Contudo, com o passar do tempo, a sua recepção não foi positiva e atualmente poucos são aqueles que aprovam o seu uso. A lei 13874/19 trouxe novos horizontes para a plataforma do e-social, onde ocorrerá, a nível federal a substituição do sistema para outro mais simplificado para a escrituração digital de obrigações previdenciárias, trabalhistas e fiscais. 
 Esperamos ao menos, que dessa vez, o sistema cumpra com a sua proposta de tornar mais simples a rotina das empresas. 

Desconsideração da personalidade jurídica (bônus) 

  Não se trata de uma alteração específica na CLT, mas que trará impactos para as empresas sobretudo nas ações trabalhistas. Quando uma empresa não consegue arcar com as dívidas trabalhistas em um processo, é normal que a parte lesada solicite a desconsideração da personalidade jurídica, fazendo com que, de forma bem sucinta, a dívida recaia sobre o patrimônio dos sócios. Importante ressaltar que o referido instituto é de extrema importância para evitar fraudes e garantir o efetivo pagamento dos funcionários que ingressam na justiça. 
 Ocorre que, as regras para a sua aplicação dependiam basicamente do entendimento subjetivo dos tribunais para a sua aplicação. / 
 Com isso, muitas reclamações surgiram decorrentes da insegurança jurídica ocasionada pelo uso irrestrito do instituto. Consequentemente, muitos empresários se mantinham receosos quanto ao desenvolvimento de seus empreendimentos. 
 Contudo, a lei 13874/19 trouxe algumas regras objetivas para os casos em que será permitido o uso da desconsideração da personalidade jurídica das empresas. Agora, como regra geral, apenas quando houver o desvio de finalidade ou confusão patrimonial será possível se valer da DPJ, senão vejamos o que determina o novo artigo do Código Civil: “Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. 
 § 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. 
 § 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: 
  I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;  
 II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e / 
 III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. 
 Com isso, provavelmente haverá algumas mudanças na forma como as demandas trabalhistas vão se desenvolver. 

Conclusão 

 Novamente a legislação trabalhista sofreu alterações que modificam a rotina não só das empresas, mas também daqueles que atuam nos tribunais na defesa destas e dos trabalhadores. Entretanto, apesar de trazer mudanças, não acredito que seja uma "mini reforma trabalhista" como tem sido apontado pela mídia, mas um pacote de modificações que visam desburocratizar o tão engessado cenário do direito do trabalho. 
 Independente das mudanças, novamente as empresas vão precisar lidar com a lei sancionada para se adequarem a realidade. Tal tarefa, no entanto, pode ser complicada para os empresários que buscam se adequar às normas sem o conhecimento necessário, pois a aplicação equivocada poderá incorrer em erros que possam trazer prejuízos futuros.
 Assim, contar com uma equipe multidisciplinar para auxiliar nesse novo contexto normativo é fundamental para a continuidade saudável do empreendimento. 

Não esqueça de compartilhar e até a próxima! 

Artigo originalmente publicado em Alexandre Bastos Advocacia.

Acessado e disponível na Internet em 29/09/2019 no endereço eletrônico -

A VENDA DE ASCENDENTE PARA DESCENDENTE E A NECESSIDADE DE CORREÇÃO DO ART. 496 DO CÓDIGO CIVIL

jusbrasil.com.br 29 de Setembro de 2019

A venda de ascendente para descendente e a necessidade de correção do art. 496 do Código Civil Coluna do Migalhas de setembro de 2019. 


Flávio Tartuce [1] [2]

O art. 496 do Código Civil trata da venda de ascendente para descendente, regra que, apesar de estar inserida na seção relativa aos contratos na vigente codificação, interessa diretamente ao Direito de Família e das Sucessões. Conforme a sua dicção atual, “é anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido”. Além disso, na exata expressão do seu parágrafo único, “em ambos os casos, dispensa-se o consentimento do cônjuge se o regime de bens for o da separação obrigatória”. A norma encerrou polêmica anterior – que existia no âmbito da doutrina e da jurisprudência – a respeito de ser a venda de ascendente a descendente, celebrada sem a citada autorização, nula ou anulável. Como bem demonstram Jones Figueirêdo Alves e Mário Luiz Delgado, juristas que participaram do processo final de elaboração do vigente Código Civil, “no que se refere ao contrato de compra e venda feita por ascendente a descendente, torna-se ele suscetível de anulabilidade, não mais se podendo falar de nulidade. Esta, a significativa inovação. O / dispositivo espanca a vacilação então dominante na doutrina, diante do preceituado pelo art. 1.132 do CC/1916, tornando defeso que os ascendentes pudessem vender aos descendentes, sem que os outros descendentes expressamente consentissem. A referência expressa à anulabilidade contida na nova norma encerra, por definitivo, dissenso jurisprudencial acerca das exatas repercussões à validade do negócio jurídico, quando superada por decisões recentes do STJ, a Súmula 494 do STF” (Código Civil anotado. São Paulo: Método, 2005. p. 255). Desse modo, para vender um imóvel para um filho, o pai necessita de autorização dos demais filhos e de sua esposa, sob pena de nulidade relativa da venda, a menos grave das invalidades. O objetivo da norma, entre outros fundamentos, é a proteção da legítima dos herdeiros necessários, como bem salienta Marco Aurélio Bezerra de Melo, em obra da qual sou um dos coautores: “O artigo em comento tem por objetivo resguardar a legítima dos herdeiros necessários, pois com a necessidade de anuência destes há uma fiscalização prévia que poderá evitar demandas futuras que se verificariam após a morte do doador. Para entender o fundamento da anulabilidade necessitamos mergulhar, ainda que na parte rasa desse oceano, nos meandros do Direito das Sucessões, notadamente nos artigos 1.845 e 1.846 do Código Civil, os quais estabelecem, respectivamente, que são herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge e que pertencem a estes, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima, da qual somente podem ser privados pelo instituto da deserdação. Pudesse o ascendente vender ao descendente sem o consentimento dos demais e estaria franqueada e facilitada a possibilidade de simulação de uma doação travestida documentalmente de compra e venda, contemplando determinado herdeiro necessário em detrimento de outro. Isso porque se efetivamente se tratasse de uma doação, esta, em regra, seria considerada adiantamento de legítima (art. 544 do CC) e o herdeiro contemplado estaria obrigado a trazer à colação o que recebeu em vida de seu ascendente para o fim de igualar as legítimas e conferir o valor das doações recebidas, sob pena de responder pelas sanções da sonegação, conforme prescreve o artigo 2.002 do Código Civil. Daí o / interesse do ascendente que pretende fugir da regra da preservação da legítima dos herdeiros necessários de adotar o modelo da compra e venda e não da doação como era de seu real intento” (MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 295). Pelo que está escrito no parágrafo único do dispositivo, dispensa-se a autorização do cônjuge se o regime for o da separação obrigatória de bens, aquele que é imposto pela lei, nos termos do art. 1.641 da codificação e em três hipóteses: a) para as pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento (art. 1.523 do CC); b) casamento da pessoa maior de setenta anos, hipótese que encontra os principais debates no âmbito prático e c) de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial. Como tenho sustentado há tempos, a norma necessita de reparos técnicos, o que é objeto de projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados, de número 4.639/2019, de autoria do Deputado Carlos Bezerra. A proposição visa retirar a expressão “em ambos os casos”, que consta do parágrafo único do art. 496 do Código Civil e que ali permaneceu por erro de tramitação legislativa. Como consta da projeção, “o artigo 496 do novo Código Civil, cujo caput corresponde basicamente ao artigo 1.132 do Código Civil anterior, proíbe a venda de bens de ascendente a descendente, salvo nas condições que especifica. Durante a tramitação do projeto, houve momento em que se proibiu, também, a venda de descendente a ascendente. Nesse período, surgiu o parágrafo único do artigo, que especifica uma exceção à proibição. No curso regular da tramitação legislativa, a proibição da segunda hipótese de venda, de descendente para ascendente, foi derrubada. No entanto, não se atualizou a redação do parágrafo único, o que procuramos fazer agora”. A projeção confirma o teor do Enunciado n. 177, aprovado na III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, que assim preceitua: “por erro de tramitação, que retirou a segunda hipótese de anulação de venda entre parentes (venda de descendente para ascendente), deve ser desconsiderada a expressão ‘em ambos os casos’, / no parágrafo único do art. 496”. O autor da proposta, Professor José Osório de Azevedo Jr., jurista que sempre merece todas as homenagens, pelas suas numerosas contribuições ao Direito Civil Brasileiro, assim fundamentou a sua proposta de enunciado doutrinário: “Na realidade, não existem ambos os casos. O caso é um só: a venda de ascendente para descendente. Houve equívoco no processo legislativo. O artigo correspondente do Anteprojeto do Código Civil, publicado no DOU de 07.08.1972, (art. 490) não previa qualquer parágrafo. A redação era a seguinte: Art. 490 – Os ascendentes não podem vender aos descendentes, sem que os outros descendentes expressamente consintam. A venda não será, porém, anulável, se o adquirente provar que o preço pago não era inferior ao valor da coisa. No Projeto 634/1975, DOU 13.06.1975, houve alteração: Art. 494. É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes expressamente houverem consentido. Em Plenário, foram apresentadas pelo Dep. Henrique Eduardo Alves as Emendas 390, 391 e 392 ao art. 494. A primeira delas para tornar nula a venda e para exigir a anuência do cônjuge do vendedor: Art. 494. É nula a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do vendedor expressamente houverem consentido. A segunda, para acrescentar um parágrafo considerando nula também a venda de descendente para ascendente: Art. 494. § 1.º É nula a venda de descendente para ascendente, salvo se o outro ascendente do mesmo grau, e o cônjuge do vendedor expressamente houverem consentido. A terceira emenda acrescentava mais um parágrafo (2.º), com a redação do atual parágrafo único, com a finalidade de dispensar o consentimento do cônjuge se o regime de bens for o da separação obrigatória: Art. 494. § 2.º Em ambos os casos, dispensa-se o consentimento do cônjuge se o regime de bens for o da separação obrigatória. Pelo que se vê do texto do Código, a primeira emenda (390) foi aprovada em parte, só para exigir a anuência do cônjuge. A segunda emenda (391) foi inteiramente rejeitada. E a terceira (392) foi acolhida e transformada no atual parágrafo único. Esqueceu-se de que a segunda emenda, que previa uma segunda hipótese de nulidade – a venda de descendente para ascendente –, foi rejeitada. Assim, no / contexto das emendas, fazia sentido lógico a presença da expressão em ambos os casos, isto é, nos dois casos de nulidade, venda de ascendente para descendente e venda de descendente para ascendente. Agora não faz sentido, porque, como foi dito no início, a hipótese legal é uma só: ‘a venda de ascendente para descendente’. Houve erro material, s.m.j., e a expressão em ambos os casos deve ser tida como não escrita, dispensáveis maiores esforços do intérprete para achar um significado impossível. A regra de que a lei não contém expressões inúteis não é absoluta. Cumpre, portanto, desconsiderar a expressão em ambos os casos” (destaque nosso). Assim, é louvável a projeção legislativa, a fim de corrigir esse equívoco histórico. Porém, há necessidade de se fazer outro reparo no parágrafo único do art. 496 do Código Civil, o que foi sugerido por emenda propositiva do Deputado Luiz Flávio Gomes, após me consultar. O comando não deveria mencionar como exceção o regime da separação obrigatória, mas a separação convencional de bens, que tem origem em pacto antenupcial. Isso porque, no regime da separação obrigatória de bens, alguns bens se comunicam, por força da antiga Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, que ainda vem sendo aplicada pelos nossos Tribunais, notadamente pelo Superior Tribunal de Justiça. Conforme essa ementa jurisprudencial consolidada, “no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”. E, conforme um dos últimos arestos do STJ a respeito dessa temática, determinante na interpretação da sumular: “nos moldes do art. 1.641, II, do Código Civil de 2002, ao casamento contraído sob causa suspensiva, impõe-se o regime da separação obrigatória de bens. No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento, desde que comprovado o esforço comum para sua aquisição. Releitura da antiga Súmula 377/STF (No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento), editada com o intuito de interpretar o art. 259 do CC/1916, ainda na época em que cabia à Suprema Corte decidir em última instância acerca da interpretação da legislação federal, mister que hoje / cabe ao Superior Tribunal de Justiça” (STJ, EREsp 1.623.858/MG, Segunda Seção, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador convocado do TRF 5ª Região), j. 23/05/2018, DJe 30/05/2018). Ora, percebe-se que, pela sumular e na sua atual interpretação, alguns bens se comunicam no regime da separação legal ou obrigatória de bens – aqueles havidos durante o casamento pelo esforço comum –, sendo imperiosa a autorização do cônjuge para a venda de ascendente para descendente nesse regime, pois ele pode ter algum interesse patrimonial na alienação. Por isso, repise-se, a norma deveria excepcionar o regime da separação convencional de bens – aquele que decorre de pacto antenupcial –, único regime de separação em que nenhum bem se comunica, presente uma verdadeira separação absoluta, e em que a autorização do cônjuge deve ser dispensada. Nesse sentido, cabe transcrever o que pontuo a respeito do dispositivo que se pretende corrigir, confrontando-o com outra regra da própria codificação, o art. 1.647: “Interessante confrontar o parágrafo único do art. 496 CC que excepciona o regime da separação obrigatória (de origem legal), com o art. 1.647, I, também do CC, que trata da necessidade de outorga conjugal para a venda de imóvel a terceiro, sob pena de anulabilidade (art. 1.649). Isso porque o art. 1.647 dispensa a dita autorização se o regime entre os cônjuges for o da separação absoluta. Mas o que seria separação absoluta? Entendemos que a separação absoluta é apenas a separação convencional, pois continua sendo aplicável a Súmula 377 do STF. Por essa súmula, no regime da separação legal ou obrigatória comunicam-se os bens havidos pelos cônjuges durante o casamento pelo esforço comum, afirmação que restou pacificada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça em 2018 (EREsp 1.623.858/MG, 2.ª Seção, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador convocado do TRF 5.ª Região), j. 23.05.2018, DJe 30.05.2018). / 
Em síntese, o regime da separação legal ou obrigatória não constitui um regime de separação absoluta, uma vez que alguns bens se comunicam. Em outras palavras, a outorga conjugal é dispensada apenas se o regime de separação de bens for estipulado de forma convencional, por pacto antenupcial. Na doutrina, essa também é a conclusão de Nelson Nery Jr., Rosa Maria de Andrade Nery, Rolf Madaleno, Zeno Veloso, Rodrigo Toscano de Brito, Pablo Stolze, Rodolfo Pamplona, entre outros” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Volume 3. Teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 317). Não restam dúvidas de que é necessário adaptar o art. 496, parágrafo único, ao art. 1.647 do Código Civil, mencionando-se na primeira regra também o que se considera separação absoluta de bens. E, para que não pairem mais dúvidas do que seja a citada “separação absoluta”, a necessidade de autorização do cônjuge na venda de ascendente para descendente deve ser afastada somente se o regime de casamento entre os cônjuges for o da separação convencional. Espera-se, por tudo isso, que o projeto de lei tenha êxito no Congresso Nacional, fazendo-se esses dois reparos no artigo ora analisado. 
Como palavras finais, uma outra questão poderia ser levantada, a respeito da inclusão do companheiro no art. 496 do Código Civil. Porém, essa inclusão passaria por uma reforma mais ampla de todo o Código Civil, o que será objeto de outro artigo, a ser publicado neste mesmo canal. 



[1] Coluna do Migalhas de setembro de 2019 

[2] Doutor e Pós-Doutorando em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP. Professor Titular permanente do programa de mestrado e doutorado da FADISP. Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu da EPD. / Professor do G7 Jurídico. Diretor do IBDFAM – Nacional e vicepresidente do IBDFAM/SP. Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico. 


quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Efetividade da Justiça criminal exige mudanças pontuais na prescrição penal

OPINIÃO










A discussão sobre a efetividade da Justiça criminal e o combate à impunidade tem catalisado os operadores do Direito e a opinião pública em geral, dando margem a propostas dos mais variados matizes, muitas delas controversas quanto a sua constitucionalidade.
A nosso ver, pontuais modificações nas regras da prescrição penal contribuiriam para esse propósito.
Tarefa árdua é abordar, de maneira sintética, questão complexa como a da prescrição penal.
No intuito de possibilitar sua compreensão até mesmo por um leigo, tentaremos simplificar essa abordagem, assumindo dolosamente os riscos a tanto inerentes.
Prescrição significa a perda do poder de punir do Estado pelo decurso do tempo. Cometido um crime, o Ministério Público, nos crimes de ação penal pública, deve deduzir a pretensão acusatória em juízo a fim de que o Judiciário, observadas todas as garantias constitucionais, possa julgá-la, absolvendo ou condenando o réu.
O Estado tem um prazo para impor a pena (prescrição da pretensão punitiva) e um prazo para executá-la após o trânsito em julgado da condenação (prescrição da pretensão executória), sob pena de perder o poder de punir.
O Código Penal, em seu art. 109, faz um escalonamento dos prazos de prescrição, que variam de 3 a 20 anos, segundo a pena máxima cominada ao crime.
A prescrição da pretensão punitiva, antes do trânsito em julgado, é regulada pela pena máxima cominada ao crime (art. 109, CP).
Há uma razão lógica para isso: como ainda não há uma sentença condenatória individualizando a pena a ser aplicada no caso concreto, o parâmetro abstrato só pode ser a maior pena possível. Assim, a prescrição da pretensão punitiva do crime de corrupção passiva (art. 317, CP), ao qual se comina pena de 2 a 12 anos de reclusão, ocorre em 16 anos (art. 109, II, CP).
Após o trânsito em julgado da condenação, vale dizer, esgotada a possibilidade de recursos, a prescrição não mais se regula pela pena máxima prevista em lei, mas sim pela pena efetivamente aplicada pelo juiz (art. 110, CP).
No referido caso da corrupção passiva, se concretamente vier a ser imposta a pena mínima de 2 anos de reclusão, a prescrição da pretensão executória se verificará em 4 anos (art. 109, V, CP).
Há, portanto, dois marcos bem definidos: a) antes do trânsito em julgado da condenação, a prescrição se regula pela pena máxima abstratamente prevista em lei para o crime; e b) depois do trânsito em julgado da condenação, a prescrição se regula pela pena concretamente aplicada pelo juiz na sentença.
Se a prescrição fosse regulada exclusivamente dessa forma, o sistema seria funcional.
Nele, todavia, há uma jabuticaba.
Em linhas gerais, quando a acusação se conforma com a condenação e só a defesa continua a recorrer, a prescrição da pretensão punitiva passa a ser regulada pela pena efetivamente aplicada na sentença, e não mais pela pena máxima cominada ao crime.
Esse é o verdadeiro estímulo para que infindáveis manobras recursais sejam adotadas, visando alcançar a prescrição.
É certo que, no STF, foi reconhecida a repercussão geral de uma relevante controvérsia sobre essa matéria, qual seja, se o termo inicial para a contagem da prescrição da pretensão executória do Estado é o trânsito em julgado da condenação somente para a acusação ou o trânsito em julgado para todas as partes (Tema 788), que ainda será objeto de análise e pacificação pela Suprema Corte.[1]
De toda sorte, o remédio pode ser mais simples, sem depender de intrincada interpretação sistemática: uma pontual reforma do Código Penal que revogue o §1º do art. 110, para estabelecer que a prescrição da pretensão punitiva seja sempre regulada pela pena máxima abstratamente cominada ao crime.
Poder-se-ia objetar que a pena fixada na sentença, em relação à qual se conformou o Ministério Público ao não recorrer, é a pena justa e, portanto, deveria ser o novo parâmetro para o cálculo da prescrição.
Ocorre que, na legislação de outros países, como Alemanha, Argentina, Chile, Colômbia, Espanha, Itália, México e Portugal, a prescrição da pretensão punitiva (usualmente denominada de prescrição da “ação penal”) regula-se, invariavelmente, pela pena máxima abstratamente prevista, e não pela pena aplicada na sentença, a qual regula, tão somente, a prescrição da pretensão executória (denominada no estrangeiro de prescrição da pena ou da sanção penal).[2]
Em 2010, o Congresso Nacional, com a edição da Lei nº 12.234, deu um significativo e louvável passo no combate à impunidade ao abolir outra reluzente jabuticaba, segundo a qual a prescrição da pretensão punitiva, entre a data do fato e o recebimento da denúncia, regulava-se pela pena aplicada na sentença, e não pela pena máxima abstratamente cominada ao crime.
O Plenário do STF declarou constitucional essa alteração legislativa no HC nº 122.694/SP, Relator o Ministro Dias Toffoli, após submetê-la ao exame da proporcionalidade em antológico julgado, no qual se discorreu sobre o dever estatal de proteção a direitos fundamentais da coletividade e a necessidade de se dar efetividade às normas penais e à prestação jurisdicional.
Como bem destacado no voto condutor desse acórdão, “embora a pena justa para o crime seja aquela imposta na sentença, é uma questão de política criminal, a cargo do legislador, estabelecer-se se a prescrição, enquanto não transitada em julgado a condenação, deve ser regulada pela pena abstrata ou concreta, bem como, nessa última hipótese, definir-se a extensão de seus efeitos ex tunc”.
A adoção de mecanismos legítimos para se impedir que crimes (pretensão punitiva) ou penas (pretensão executória) prescrevam está em consonância com o dever estatal de proteção a direitos fundamentais da coletividade e com a necessidade de se conferir maior efetividade às normas penais que os tutelam.
É preciso, portanto, assegurar a efetividade da execução de uma pena legalmente prevista e regularmente imposta segundo o devido processo legal.
Finalmente, há que se revogar o art. 115 do Código Penal, outra grande causa de impunidade, ao determinar que sejam reduzidos à metade os prazos de prescrição quando o criminoso for, ao tempo do crime, menor de 21 anos, ou, na data da sentença, maior de 70 anos.
Esse artigo deita raízes no Código Penal de 1940, época em que, segundo o IBGE, a expectativa média de vida era de 45,5 anos,[3] e em que, pelo Código Civil de 1916, o imputável entre 18 e 21 anos era considerado relativamente incapaz, questão há muito superada pelo Código Civil de 2002, que fixou a maioridade civil em 18 anos.
Essas pequenas modificações, a cargo exclusivo do legislador, de grande impacto penal, contribuiriam sensivelmente para reduzir a impunidade e tornar mais efetiva a Justiça criminal.

[1] Confira-se a manifestação do Ministro Dias Toffoli no ARE 848.107, reconhecendo a repercussão geral em questão, disponível em  http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verPronunciamento.asp?pronunciamento=5300317
[2] Vide aprofundada análise da legislação comparada no Habeas Corpus nº 122.694/SP, Pleno, Relator o Ministro Dias Toffoli, DJe de 19/2/15.
[3] Confira-se a publicação “Tábua completa de mortalidade para o Brasil – 2017: breve análise da mortalidade no Brasil”, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101628.pdf, mais precisamente pp. 7-8.
 é doutorando e mestre em Direito Processual Penal pela USP; Juiz de Direito titular da 11ª Vara Criminal Central da Comarca de São Paulo e, atualmente, exerce as funções de Juiz Auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça.

Revista Consultor Jurídico, 4 de setembro de 2019, 14h14

Ação de motorista de aplicativo cabe à Justiça comum, determina STJ

SEM VÍNCULO




Motorista de aplicativo é trabalhador autônomo e ação judicial promovida por ele cabe à Justiça comum. Com esse entendimento, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, em conflito de competência, determinou que cabe ao Juizado Especial Cível de Poços de Caldas (MG) julgar o processo de um motorista de aplicativo que teve sua conta suspensa pela empresa. O colegiado entendeu que não há relação de emprego no caso.

STJ reafirmou que motoristas não têm relação hierárquica com a Uber Divulgação 

Na origem, o motorista propôs ação perante ao juízo estadual em que solicitava a reativação da sua conta no aplicativo e o ressarcimento de danos materiais e morais.
Segundo ele, a suspensão da conta –decidida pela Uber sob alegação de comportamento irregular e mau uso do aplicativo– o impediu de exercer sua profissão e gerou prejuízos materiais, pois havia alugado um carro para fazer as corridas.
Ao analisar o processo, o juízo estadual entendeu que não era competente para julgar o caso, por se tratar de relação trabalhista, e remeteu os autos para a Justiça do Trabalho, a qual também se declarou impedida de julgar a matéria e suscitou o conflito de competência no STJ, sob a alegação de que não ficou caracterizado o vínculo empregatício.
Trabalho autônomo
Em seu voto, o relator, ministro Moura Ribeiro, destacou que a competência ratione materiae (em razão da matéria), em regra, é questão anterior a qualquer juízo sobre outras espécies de competência e, sendo determinada em função da natureza jurídica da pretensão, decorre diretamente do pedido e da causa de pedir deduzidos em juízo.
Moura Ribeiro ressaltou que os fundamentos de fato e de direito da causa analisada não dizem respeito a eventual relação de emprego havida entre as partes, e sim a contrato firmado com empresa detentora de aplicativo de celular, de cunho eminentemente civil.
"A relação de emprego exige os pressupostos da pessoalidade, habitualidade, subordinação e onerosidade. Inexistente algum desses pressupostos, o trabalho caracteriza-se como autônomo ou eventual", lembrou o magistrado.
Sem hierarquia
O relatou acrescentou que a empresa de transporte que atua no mercado por meio de aplicativo de celular é responsável por fazer a aproximação entre os motoristas parceiros e seus clientes, os passageiros, não havendo relação hierárquica entre as pessoas dessa relação.
"Os motoristas de aplicativo não mantêm relação hierárquica com a empresa Uber porque seus serviços são prestados de forma eventual, sem horários pré-estabelecidos, e não recebem salário fixo, o que descaracteriza o vínculo empregatício entre as partes."
Por fim, o magistrado salientou que as ferramentas tecnológicas disponíveis atualmente permitiram criar uma nova modalidade de interação econômica, fazendo surgir a economia compartilhada (sharing economy), em que a prestação de serviços por detentores de veículos particulares é intermediada por aplicativos geridos por empresas de tecnologia.
"O sistema de transporte privado individual, a partir de provedores de rede de compartilhamento, detém natureza de cunho civil. Nesse processo, os motoristas, executores da atividade, atuam como empreendedores individuais, sem vínculo de emprego com a empresa proprietária da plataforma", afirmou. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ. 
CC 164544
Revista Consultor Jurídico, 4 de setembro de 2019, 15h38

STF forma maioria para declarar responsabilidade objetiva por danos





O Plenário do Supremo Tribunal Federal formou maioria, nesta quarta-feira (4/9), para declarar constitucional a responsabilização objetiva de empresas por danos a trabalhadores decorrentes de relações de trabalho. A sessão foi encerrada, e retornará nesta quinta-feira (5/9) para conclusão do julgamento.
STF forma maioria para declarar responsabilidade objetiva por danos
Rosinei Coutinho/SCO/STF
O julgamento foi suspenso após o ministro Gilmar Mendes afirmar que o voto era longo e complexo e iria divergir do relator.
Até o momento, prevalece o entendimento do relator, ministro Alexandre de Moraes. Para ele, as leis se desenvolveram para que empresas sejam responsabilizadas pelas injustiças do trabalho. 
Ao desprover o recurso, o ministro propôs a seguinte tese: "o artigo 927, parágrafo único do Código Civil, é compatível com o artigo 7º, XVIII, da Constituição, sendo constitucional a responsabilização objetiva do empregador por danos decorrentes de acidentes de trabalho nos casos especificados em lei ou quando a atividade normalmente desenvolvida por sua natureza apresentar risco especial com potencialidade lesiva e implicar ao trabalhador ônus maior do que aos demais membros da coletividade".
O entendimento do relator foi seguido pelos ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber. O único a divergir foi o ministro Marco Aurélio. 
Alexandre afirmou que o dispositivo do Código Civil é "plenamente" compatível com a Constituição. "O disposto no CC prevê obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem", disse, no Plenário. 
Recurso
O recurso foi interposto contra decisão do Tribunal Superior do Trabalho que reconheceu a responsabilidade objetiva da empresa em um caso em que um segurança que, num tiroteio, matou uma pessoa que passava pelo local.
Portanto, a empresa responde mesmo sem prova de culpa ou dolo, já que se aplica ao caso o artigo 927 do Código Civil, conforme decidiu o TST, por se tratar de atividade de risco.
A empresa condenada contestou a decisão, alegando ofensa ao artigo 7º, inciso XVIII, da Constituição, já que o acidente aconteceu fora do ambiente de trabalho, em ambiente público.
RE 828.040
 é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 4 de setembro de 2019, 18h27