"Eu não recearia muito as más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Não há texto de lei que não deixe campo à interpretação.

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quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

As 10 principais decisões da pauta "qualitativa" do Supremo Tribunal Federal


RETROSPECTIVA 2015

As 10 principais decisões da pauta "qualitativa" do Supremo Tribunal Federal

Parte II
*(Clique aqui para ler a primeira parte deste texto)

Após o conjunto de reflexões sobre o ano do Supremo Tribunal Federal e as questões que dominaram a sua pauta, vale analisar o conteúdo de dez das decisões mais importantes do STF em 2015 e de outros 3 casos relevantes cujo julgamento foi iniciado neste ano, mais ainda não concluído. Sem a pretensão de sumariar todas as (muitas) decisões proeminentes da Corte no período, a seleção busca evidenciar o papel de destaque assumido pelo STF, ao catalisar as discussões mais candentes do ponto de vista jurídico, moral, político, econômico e social do país.
II.1) O STF e interações com os demais Poderes
  1. O rito do processo de Impeachment (ADPF 378 MC, Rel. Min. Edson Fachin, Rel. p/ acórdão Min. Luís Roberto Barroso, julgamento concluído em 18.12.2015)
A ADPF 378 foi ajuizada pelo PCdoB, objetivando a realização de umafiltragem constitucional da Lei n. 1.079/1950, que define crimes de responsabilidade e disciplina o processo de julgamento de tais delitos, de modo a tornar claro e estreme de dúvida o rito aplicável ao processo deimpeachment do Presidente da República. A ação pede a adoção de várias providências, sob o argumento de que seriam necessárias para sanar as lesões a preceitos fundamentais da Constituição Federal, decorrentes da manutenção na ordem jurídica de textos normativos e interpretações relativos ao processo de impedimento incompatíveis com o texto constitucional vigente.
No julgamento dos 13 pedidos de medida cautelar, 4 foram os principais pontos debatidos pela Corte: (i) a existência de um direito à apresentação de defesa prévia pelo acusado, (ii) a possibilidade de candidaturas avulsas para a formação da comissão especial da Câmara dos Deputados, responsável por analisar o processo, (iii) a possibilidade de votação secreta para formação da comissão especial instaurada para examinar a denúncia, e (iv) a definição dos papeis da Câmara e do Senado Federal no processo de impeachment, em especial se o Senado poderia decidir pela não instauração do processo e, em caso positivo, qual seria o quórum aplicável a esta deliberação. Em relação a esses temas, vale apontar que no caso do Presidente Fernando Collor (i) não houve defesa prévia, (ii) os membros da comissão especial foram eleitos por chapa única, formada a partir de indicações dos líderes partidários, (iii) a eleição dos membros da comissão foi aberta (simbólica), e (iv) o Senado realizou uma análise prévia sobre o recebimento (ou não) da denúncia, de modo que o afastamento do Presidente se deu apenas após votação nominal do Plenário pela instauração do processo, por quórum de maioria simples[1].
Iniciado o julgamento, o ministro Edson Fachin, relator originário, votou no sentido de (i) negar a existência de um direito à defesa prévia, (ii) validar a possibilidade de apresentação de candidaturas avulsas para a eleição da comissão especial, (iii) declarar a constitucionalidade de eleição secreta dos membros da comissão, e (iv) assentar que, após a autorização pela Câmara, o Senado é obrigado a instaurar o processo de impeachment. Em relação aos três últimos pontos, porém, a maioria do Plenário discordou do relator. Prevaleceu o voto do ministro Luís Roberto Barroso, no sentido de (i) impedir a apresentação de candidaturas ou chapas avulsas para a formação da comissão especial (por 7 votos a 4), (ii) definir que a votação para a formação de tal comissão somente pode se dar por voto aberto (por 6 votos a 5), e (iii) afirmar a competência do Senado para deliberar sobre a instauração ou não do processo, em votação do Plenário (por 8 votos a 3), por maioria simples de votos (vencidos os ministros Marco Aurélio e Edson Fachin, que acolhiam o pedido do autor de definir quórum de 2/3). O STF manteve, assim, o mesmo rito seguido em 1992 no caso Collor.
  1. Contrabando legislativo em medida provisória (ADI 5.127, Rel. Min. Rosa Weber, Rel. p/ acórdão Min. Edson Fachin, julgamento concluído em 15.10.2015)
Neste julgamento, mais uma vez, a Corte apreciou procedimentos internos ao parlamento. A ADI 5.127 discutiu a constitucionalidade da prática consolidada no Congresso Nacional de introduzir, nos projetos de leis de conversão, emendas sobre matérias estranhas às medidas provisórias (os chamados “contrabandos legislativos” ou “jabutis”). No caso, questionava-se dispositivo da Lei no 12.249/2010 que definia novas condições para o exercício da profissão contábil, mas que teria sido incluído por emenda parlamentar em MP com a qual não guardava pertinência temática.
No julgamento, o STF entendeu, por maioria (vencido apenas o Min. Dias Toffoli), que tal prática é inconstitucional, por ensejar violação: (i) à atribuição do Chefe do Executivo para avaliar a relevância e a urgência das matérias que serão objeto de medida provisória; (ii) ao devido processo legislativo; e (iii) ao princípio democrático, por frustrar um debate amplo e informado sobre a matéria e restringir o exercício da função representativa pelo parlamentar. Houve, porém, divergência em relação à solução a ser aplicada ao caso concreto. A ministra Rosa Weber votou pela procedência da ação, com a declaração de inconstitucionalidade da norma impugnada. Já o ministro Edson Fachin, por reconhecer que inúmeras leis de conversão atualmente em vigor apresentam o mesmo vício legislativo, votou por manter hígidas até a data do julgamento (i.e., 15 de outubro), as leis fruto de emendas em projetos de conversão de medida provisória em lei, inclusive aquela impugnada na ação. Este entendimento foi seguido pela maioria da Corte (ministros Luís Roberto Barroso, Teori Zavascki, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Celso de Mello).
  1. Prisão do senador Delcídio do Amaral (AC 4.039, Rel. Min. Teori Zavascki, julgamento concluído em 25.11.2015)
O julgamento da AC 4.039 representou um momento histórico no país: pela primeira vez, sob a égide da Constituição de 1988, um senador foi preso no exercício do mandato. O requerimento de prisão, formulado pelo PGR, apontava que o Senador Delcídio do Amaral estaria atuando concretamente para fraudar investigação em curso no âmbito da operação Lava Jato e atentar contra a jurisdição do Supremo Tribunal Federal, entre outros, por meio de promessa de influência junto a ministros do STF, do planejamento da fuga de preso para dissuadi-lo da celebração de acordo de colaboração premiada, e da obtenção ilegal de documentos sigilosos.
Ao apreciar o pedido na noite do dia 24 de novembro de 2015, o ministro Teori Zavascki decretou a prisão cautelar do senador Delcídio do Amaral, ad referendum da Segunda Turma do STF. Para o relator, estavam presentes situação de flagrância de crime inafiançável (pela caracterização do delito de organização criminosa, reconhecido como crime permanente) e os requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal (prova da existência do crime, indício suficiente de autoria, assim como a necessidade de garantir a instrução criminal e resguardar a ordem pública). Na manhã do dia seguinte, em sessão extraordinária, a Segunda Turma referendou a decisão por unanimidade. Na sequência, os autos foram remetidos ao Senado Federal, que deliberou pela manutenção da prisão, conforme exigido pelo artigo 53, § 2º, da Constituição.
II.2) O STF e os Direitos Fundamentais
  1. Estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário (ADPF 347 MC, relator ministro Marco Aurélio, julgamento da medida cautelar concluído em 09.09.2015)
A ADPF 347, ajuizada pelo PSOL a partir de representação da Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ, representou outro importante capítulo da atuação do Supremo no ano, em favor dos direitos fundamentais de minorias. Na ação, requereu-se ao STF o reconhecimento do sistema prisional brasileiro como um “estado de coisas inconstitucional” e a adoção de diversas providências para sanar as gravíssimas lesões a direitos básicos dos detentos. Tal técnica decisória, “importada” da Corte Constitucional Colombiana, permite ao Tribunal impor aos poderes estatais um conjunto de medidas tendentes à superação de um quadro de violações massivas de direitos fundamentais e a monitorar a implementação da decisão. A ideia já havia aparecido – ainda que de forma embrionária – na jurisprudência do STF no julgamento da Questão de Ordem nas ADI 4.357 e 4.425, relativa à modulação temporal da decisão sobre pagamento de precatórios[2].

Apreciando os pedidos de medida cautelar formulados, a Corte entendeu, de forma unânime e na linha do voto do ministro Marco Aurélio, pelo cabimento da ADPF e pela caracterização do sistema penitenciário nacional como um estado de coisas inconstitucional, uma vez presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais dos presos, decorrente de falhas estruturais de políticas públicas, cuja superação depende de medidas abrangentes a serem levadas a cabo por diversos órgãos e poderes estatais. Justificou-se a intervenção mais ativa do STF no fato de que os presos constituem uma minoria que, além de impopular e estigmatizada, não tem voto, de modo que faltam incentivos para que as instâncias representativas promovam a melhoria das condições carcerárias.

Na sequência, o STF decidiu, por maioria e nos termos do voto do Relator, deferir parcialmente a cautelar pleiteada para (i) determinar aos juízes e tribunais que realizem, em até 90 dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contados do momento da prisão, nos termos do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana de Direitos Humanos, e (ii) determinar à União que libere o saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional, abstendo-se de realizar novos contingenciamentos. O Tribunal, por maioria, também deferiu a proposta do ministro Luís Roberto Barroso de concessão de cautelar de ofício para que se determine à União e aos Estados, e especificamente ao Estado de São Paulo, que encaminhem ao STF informações sobre a situação prisional. Aguarda-se, ainda, o julgamento dos pedidos principais da ADPF.
  1. Obras emergenciais em presídios (RE 592.581, com repercussão geral reconhecida, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento concluído em 13.08.2015)
O recurso extraordinário discutiu se o Poder Judiciário pode impor aos governos estaduais a realização de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais. O caso concreto subjacente envolvia ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, pleiteando a condenação do Estado a realizar obras de reforma geral no Albergue Estadual de Uruguaiana, cujas condições estruturais atingiram um grau elevado de risco à saúde e à vida dos apenados e já havia ocasionado a morte de um detento por choque elétrico. No julgamento, o Plenário do STF decidiu, por unanimidade, que o Poder Judiciário pode determinar que a Administração Pública realize obras emergenciais em estabelecimentos prisionais, de modo a assegurar a supremacia da dignidade da pessoa humana e o respeito à integridade física e moral dos presos. Reconheceu, assim, a impossibilidade de opor-se o argumento da reserva do possível e o princípio da separação dos poderes para afastar a responsabilidade estatal na hipótese.
  1. Biografias não-autorizadas (ADI 4.815, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento concluído em 10.06.2015)
Em julgamento de grande repercussão, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, julgou procedente a ação direta ajuizada pela Associação Nacional dos Editores de Livros, para declarar inexigível autorização dos biografados e de seus familiares para a divulgação de obras biográficas literárias ou audiovisuais. Ao conferir interpretação conforme a Constituição aos artigos 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, a Corte, na linha do voto da ministra Cármen Lúcia, reconheceu que a exigência de autorização prévia para a publicação de biografias, com a possibilidade de proibição judicial da sua divulgação, constitui censura prévia particular incompatível com a Constituição, em violação aos direitos fundamentais à liberdade de expressão e informação.
  1. Porte de drogas para consumo pessoal (RE 635.659, com repercussão geral reconhecida, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento ainda não concluído).
Neste ano, o STF também iniciou o julgamento do polêmico tema da descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal, atualmente tipificado no artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006). O caso concreto em discussão, que recebeu repercussão geral, envolvia o porte de 3 gramas de maconha. O ministro Gilmar Mendes, relator do RE 635.659, votou pela inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, sem redução de texto, de forma a preservar a aplicação na esfera administrativa e cível das sanções previstas para o usuário, como advertência, prestação de serviços à comunidade e comparecimento em curso educativo. Segundo o relator, os efeitos não penais do artigo 28 deveriam continuar em vigor, na medida do possível, como medida de transição, enquanto não forem estabelecidas novas regras para prevenir e combater o uso de drogas. Ainda, buscando evitar que usuários sejam presos preventivamente, o ministro estabeleceu que, nos casos de flagrante por tráfico de drogas, o autor seja apresentado imediatamente à presença do juiz, de modo que este possa avaliar se a hipótese é de uso ou de tráfico. A votação foi, então, suspensa por pedido de vista do ministro Edson Fachin.
No prazo regimental, o ministro Fachin devolveu o pedido de vista e, com a retomada do julgamento, votou pela declaração de inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006, sem redução de texto, para definir atípico o porte exclusivamente de maconha. Adicionalmente, Fachin propôs que o STF (i) declare como atribuição legislativa a fixação de quantidades mínimas que sirvam de parâmetro para diferenciar usuário e traficante, (ii) determine aos órgãos do Poder Executivo responsáveis pela elaboração e a execução de políticas públicas sobre drogas que emitam, em até 90 dias, parâmetros provisórios de quantidade para diferenciar uso e tráfico, que teriam validade até a promulgação de lei, e (iii) crie no âmbito do STF, um Observatório Judicial sobre Drogas na forma de comissão temporária, para o fim de acompanhar os efeitos da deliberação do Tribunal neste caso.
Na sequência, votou o ministro Luís Roberto Barroso. Em seu voto, foram elencados 3 fundamentos jurídicos (violação ao direito de privacidade, à autonomia individual e ao princípio da proporcionalidade) e 3 razões pragmáticas (o fracasso da política atual de criminalização, o alto custo desta política para a sociedade e para o Estado, e os prejuízos para a proteção da saúde pública) para a descriminalização do porte para consumo pessoal. Porém, o voto também se limitou à descriminalização em relação à maconha, sem se pronunciar sobre outras drogas. Embora muitos dos argumentos que valem para a descriminalização do porte da maconha pudessem valer para outras substâncias, o entendimento adotado foi o de que os avanços devem ser feitos passo a passo, em interlocução com especialistas e com a sociedade, sem impedir que, mais à frente, em um caso específico, o STF discuta, por exemplo, a questão do crack. Avançando em relação ao voto do ministros Gilmar Mendes e Edson Fachin, o ministro propôs, ainda, que o Tribunal fixe, desde logo, critérios objetivos para distinguir o consumo pessoal de tráfico, adotando-se a presunção de que quem esteja portando até 25 gramas de maconha ou possua até 6 plantas fêmeas de Cannabis é usuário, e não traficante. O julgamento foi, porém, interrompido por pedido de vista do ministro Teori Zavascki.
  1. Tratamento social de transexuais (RE 845.779, com repercussão geral reconhecida, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgamento ainda não concluído)
Outro relevante caso ainda não concluído é o RE 845.779, que discute o direito de transexuais – uma das minorias mais marginalizadas da sociedade – serem tratados socialmente de forma condizente com sua identidade de gênero. Na origem, uma transexual ajuizou ação de indenização por danos morais em face de shopping center, que a impediu de utilizar o banheiro feminino do estabelecimento, em abordagem grosseira e vexatória.
O relator, ministro Luís Roberto Barroso, votou pelo provimento do recurso, a fim de que seja restabelecida a sentença que condenou o shopping a pagar uma indenização de R$15 mil à transexual e propôs a afirmação da seguinte tese: “Os transexuais têm direito a serem tratados socialmente de acordo com a sua identidade de gênero, inclusive na utilização de banheiros de acesso público”. Os fundamentos centrais do voto foram (i) a dignidade como valor intrínseco, que impõe o direito dos transexuais a serem tratados de maneira digna e compatível com a forma pela qual se reconhecem, (ii) a dignidade como autonomia, que exige que o Estado proteja as escolhas existenciais das pessoas, adotando uma postura ativa contra o preconceito, e (iii) o princípio democrático, que requer, para a legitimidade do governo pela maioria, a observância aos direitos fundamentais das minorias.

Na sequência, o ministro Edson Fachin acompanhou o voto do relator, mas entendeu que a indenização por danos morais deveria ser majorada para R$50 mil e que o processo deveria ser reautuado, a fim de incluir o nome social da requerente. O julgamento foi interrompido por pedido de vista do ministro Luiz Fux.

  1. Danos morais a presos (RE 580.252, com repercussão geral reconhecida, Rel. Min. Teori Zavascki, julgamento ainda não concluído)
O processo discute o direito de presos submetidos a condições desumanas de encarceramento à obtenção de indenização do Poder Público a título de danos morais. O caso concreto subjacente envolve detento que permaneceu por cerca de 5 anos em presídio estadual superlotado com condições degradantes. Em sede de apelação, definiu-se que o recorrente fazia jus à quantia de R$ 2 mil, mas a decisão foi reformada, afastando-se o dever de reparação pela aplicação da cláusula da reserva do possível.
                Iniciado o julgamento, ainda em 2014, o ministro Teori Zavascki, relator do caso, proferiu voto no sentido do provimento do RE, de modo a restabelecer a condenação do Estado a indenizar o preso em R$ 2 mil. O ministro Luís Roberto Barroso apresentou voto vista, em que adotou integralmente as premissas fixadas no voto do relator,  assentando que não é legítima a invocação da reserva do possível para negar a uma minoria estigmatizada o direito à indenização por lesões evidentes aos seus direitos fundamentais. Porém, diante do caráter estrutural e sistêmico das graves disfunções verificadas no sistema prisional brasileiro, entendeu que a entrega de uma indenização em dinheiro confere uma resposta pouco efetiva aos danos morais suportados pelos detentos, além de drenar recursos escassos que poderiam ser empregados na melhoria das condições de encarceramento. Como consequência, votou pela adoção de mecanismo de reparação alternativo, que confira primazia ao ressarcimento in naturados danos, por meio da remição de parte do tempo de execução da pena. Após o voto do ministro Barroso, o julgamento foi interrompido por um pedido de vista da ministra Rosa Weber.
II.3) O STF e o Sistema Político-Eleitoral
  1. Financiamento empresarial de campanhas (ADI 4.650, Rel. Min. Luiz Fux, julgamento concluído em 17.09.2015)
Neste ano, em uma de suas decisões mais emblemáticas, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento, iniciado em dezembro de 2013, da ADI 4.650, que questionou a constitucionalidade das normas que regulam o financiamento de campanhas. Por maioria e nos termos do voto do ministro Luiz Fux, a Corte declarou inconstitucional a participação de empresas no financiamento eleitoral, com aplicação inclusive às eleições de 2016. Porém, a maioria formada adotou fundamentos diversos para a decisão. Alguns ministros, como o ministro Luiz Fux, entenderam que o direito de participação política só se aplica a cidadãos, e não a empresas. Outros, como o ministro Luís Roberto Barroso, entenderam que empresas podem participar do financiamento eleitoral se o Congresso assim decidisse, mas que a lei impugnada era inconstitucional por não impor certas restrições mínimas que seriam exigíveis, como: (i) a impossibilidade de doar a candidatos rivais, (ii) a impossibilidade de que a empresa financiadora seja contratada pelo poder público após as eleições, e (iii) a imposição de limites máximos às doações, em valores absolutos. A ADI também impugnava dispositivo legal que previa limite percentual (10% dos rendimentos auferidos no ano anterior) para doações por pessoas físicas. Porém, não se formou maioria para a declaração de sua inconstitucionalidade.
Ficaram vencidos os ministros Teori Zavascki, Celso de Mello e Gilmar Mendes, que davam interpretação conforme aos dispositivos impugnados, para, nos termos do voto reajustado do ministro Teori Zavascki (inicialmente, o ministro havia votado pela improcedência dos pedidos formulados), acrescer a dispositivos das leis eleitorais a vedação de contribuições (i) de pessoas jurídicas ou de suas controladas e coligadas que mantenham contratos onerosos celebrados com a Administração Pública, e (ii) de pessoas jurídicas a partidos e candidatos diferentes que competirem entre si.
  1. Fidelidade partidária para cargos majoritários  (ADI 5.081, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgamento concluído em 27.05.2015)
Em decisão unânime, o Plenário do STF concluiu que a perda do mandato por infidelidade partidária não se aplica aos candidatos eleitos pelo sistema majoritário. Conforme consignou o relator, Min. Luís Roberto Barroso, o sistema majoritário, adotado para a eleição de presidente, governador, prefeito e senador, tem lógica e dinâmica diversas da do sistema proporcional. As características do sistema majoritário, com sua ênfase na figura do candidato, fazem com que a perda do mandato, no caso de mudança de partido, frustre a vontade do eleitor e vulnere a soberania popular.
II.4) Outras Decisões Relevantes
  1. Validade de cláusula de renúncia em plano de dispensa incentivada (RE 590.415, co, repercussão geral reconhecida, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgamento concluído em 30.04.2015)
Em relevante decisão no âmbito do direito do trabalho, o Plenário do STF reconheceu, em votação unânime, a validade de cláusula de quitação ampla de todas as parcelas decorrentes do contrato de emprego nos Planos de Dispensa Incentivada (PDIs), desde que este item conste de Acordo Coletivo de Trabalho e demais instrumentos assinados pelo empregado. Segundo o ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso, os PDIs constituem uma alternativa social relevante para atenuar o impacto de demissões em massa, pois permitem ao empregado condições de rescisão mais benéficas do que teria no caso de uma simples dispensa. Para ele, no âmbito do direito coletivo do trabalho não se verifica a mesma situação de assimetria de poder presente nas relações individuais de trabalho. Como resultado, a Corte entendeu que, no caso da quitação nos PDIs, justifica-se a atenuação da proteção ao trabalhador para assegurar a credibilidade de tais planos e não desestimular o seu uso. Em época de crise econômica, a decisão do STF tem o mérito de permitir uma alternativa às empresas, mitigando, tanto quanto possível, os efeitos da dispensa para o trabalhador.
  1. Poderes investigatórios do Ministério Público (RE 593.727, Rel. original Min. Cezar Peluso, Rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, julgamento concluído em 18.05.2015)
 No ano, a Corte também concluiu o aguardado julgamento do RE que discutia os poderes investigatórios do Ministério Público, que havia se iniciado em junho de 2012. O Plenário, por maioria, afirmou a tese de que o MP dispõe de competência para promover investigações de natureza penal, por autoridade própria e em prazo razoável. O voto do Min. Gilmar Mendes, redator do acórdão, fixou, ainda, parâmetros da atuação do MP, tais como a exigência de observância dos direitos e garantias fundamentais dos investigados, e o respeito às hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e às prerrogativas garantidas aos advogados. Acompanharam o redator os ministros Celso de Melo, Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Rosa Weber e Cármen Lúcia. Ficaram vencidos os ministros Cezar Peluso (relator original, aposentado), Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, que votaram pelo provimento parcial do RE, reconhecendo a legitimidade da atuação do MP em hipóteses excepcionais. Também ficou vencido o ministro Marco Aurélio, que considerou que o MP não possui legitimidade para promover investigações, mas apenas para acompanhá-las, exercendo o controle externo da polícia.
 

[1] Uma curiosidade: no caso Collor, como decorrência do ambiente político da época, a instauração do processo de impeachment pelo Senado foi muito célere: em 2 dias a comissão especial daquela Casa foi formada, emitiu parecer e este foi aprovado pelo Plenário, com o consequente afastamento do Presidente.
[2] Na ocasião, o Ministro Luís Roberto Barroso entendeu que pagamento de condenações judiciais contra a Fazenda Pública constituía um “estado de inconstitucionalidade grave e permanente” e, ao final, a Corte atribuiu ao CNJ a função de supervisionar o cumprimento da decisão do STF.
 é ministro do Supremo Tribunal Federal, professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professor visitante do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).
Aline Osorio é mestre em Direito Público pela UERJ e assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal.
Revista Consultor Jurídico, 28 de dezembro de 2015, 13h20

Notificação judicial também é uma forma de denunciar o contrato, aponta TJ-RJ


AÇÃO DE DESPEJO

Notificação judicial também é uma forma de denunciar o contrato, aponta TJ-RJ

Por considerar que a notificação judicial pode servir como um meio de denunciar o contrato de locação, a 47ª Vara do Rio de Janeiro determinou o despejo de pelo menos 40 famílias de um imóvel de cinco andares na Avenida Rio Branco, uma das principais vias do centro da cidade.
O advogado André Bonan, que defende os donos do imóvel, conta que o contrato de locação, pelo período de cinco anos, foi firmado com o proprietário de uma empresa de materiais de construção, que queria transformar o local em um hotel. O locatário se comprometeu a fazer obras no imóvel, e os locadores acertaram que em razão disso ele não precisaria pagar o aluguel de R$ 5 mil mensais, por um prazo de dois anos.
O tempo passou e os proprietários verificaram que as obras não apenas deixaram de ser feitas como o inquilino havia sublocado os 47 apartamentos do imóvel para cerca de 40 famílias, sem a permissão deles. O local tem problemas na parte elétrica e hidráulica e não conta com licença do corpo de bombeiros.
Os locadores avisaram o locatário sobre a falta de interesse de continuar com a locação. Porém, a notificação chegou 11 dias antes do término do contrato (que foi em 30 de abril de 2013) e o contrato foi automaticamente renovado, nos termos da Lei do Inquilinato (Lei 8.245/91). No dia 5 de novembro de 2013, os proprietários entraram com a ação de despejo. 
Entre as diversas irregularidades apontadas pelos autores para justificar o despejo, o prazo de 30 dias previsto no inciso VIII do artigo 59 da Lei do Inquilinato para que os proprietários ajuizassem a ação de despejo foi o que contou para a juíza Cristina de Araujo Goes Lajchter a emitir a ordem.
Na interpretação da juíza, a notificação judicial do autor, em fevereiro do ano seguinte, funcionou como forma de denunciar o contrato, previsto no artigo 57 da Lei do Inquilinato. “Até o ajuizamento desta [ação], em 5/11/2013, decorreu muito mais que os 30 dias previstos no artigo 59, VIII, da Lei 8.245/1991. Na verdade, mesmo após a citação, ocorrida em 17/2/2014, teve o réu tempo suficiente para desocupar o imóvel, não cabendo, a esta altura, a concessão de qualquer prazo adicional”, escreveu.
 “A juíza considerou que a notificação cumpriu o objetivo dela, que era demonstrar o desinteresse do locador em continuar com o contrato. Ele [o inquilino] tinha que ter saído por livre e espontânea vontade”, explicou André Bonan. 
 é correspondente da ConJur no Rio de Janeiro.
Revista Consultor Jurídico, 28 de dezembro de 2015, 9h08

Novo Código de Ética da OAB e salário de juízes foram destaques em agosto


RETROSPECTIVA 2015

Novo Código de Ética da OAB e salário de juízes foram destaques em agosto

No último mês de agosto, 1.847.286 pessoas (segundo o Google Analytics) acessaram a revista eletrônicaConsultor Jurídico , representando um aumento de 16% em relação ao mesmo período de 2015. O site contabilizou mais de 3 milhões de visitas, tendo como notícia mais lida do mês uma reportagem exclusiva que antecipou o que estaria no novo Código de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil. Pelo texto aprovado pelo Conselho Federal da OAB, os profissionais do Direito estão proibidos de fazer menção a cargos, empregos ou funções exercidas no passado ou presente, e de colocar foto nos cartões de visita. A norma permite patrocinar eventos ou publicações de caráter jurídico — regra que vale para boletins, por meio físico ou eletrônico, sobre matéria de interesses dos advogados, desde que seja restrita a clientes e interessados do meio profissional. Clique aqui para ler a notícia.

Audiências de custódia
Foi em agosto de 2015 que um dos temas mais comentados nos tribunais de Justiça do país, o projeto que cria audiências de custódia ganhou sinal verde do Supremo Tribunal Federal. A proposta obriga que juízes tenham contato pessoal com presos em flagrante em até 24 horas, para avaliar se a medida é realmente necessária. Para a Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol/Brasil), havia um problema na forma como a experiência começou em São Paulo – por meio de norma administrativa do TJ-SP, sem lei específica. Já o ministro relator Luiz Fux considerou que o provimento do tribunal apenas disciplinou direitos fundamentais do preso já citados no Código de Processo Penal e no Pacto de San José da Costa Rica, que entrou no ordenamento jurídico brasileiro em 1992. Clique aqui para ler a notícia.

Depósitos judiciais
A sanção da Lei Complementar 151/2015 pela presidente Dilma Rousseff movimentou a comunidade jurídica em agosto. A lei transforma o dinheiro dos depósitos judiciais, feitos em juízo em meio a litígios judiciais, em receita do Executivo. O texto prevê a transferência de 70% desse dinheiro para os cofres da União, estados e municípios para pagar precatórios e inflar seus superávit primários. A lei foi escrita pelo senador José Serra (PSDB-SP) para atender a demanda de governadores, especialmente o de São Paulo, Geraldo Alckmin. Para os tribunais de Justiça, é uma notícia ruim, já que os bancos públicos pagam uma taxa às cortes em troca de administrar os depósitos. Procuradoria-Geral da República e Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) são contra a medida. Clique aqui e aqui para ler sobre o assunto.

Salários acima do teto
Também foi destaque da ConJur um levantamento apontando que alguns juízes federais e procuradores da República chegam a receber mais de R$ 60 mil por mês, levando-se em conta benefícios além do salário, como auxílio-saúde, auxílio-educação e auxílio-transporte. A análise foi feita pelo procurador federal Carlos André Studart Pereira, a pedido da Associação Nacional dos Procuradores Federais (Anpaf), e enviada a parlamentares. Segundo o levantamento, as verbas têm sido pagas de maneira disfarçada, como se fossem indenizações, e acabam ficando de fora do limite legal. Pela Constituição, o teto é o salário de ministro do Supremo Tribunal Federal (hoje em R$ 37,4 mil). Clique aqui para ler a notícia.
Revista Consultor Jurídico, 28 de dezembro de 2015, 16h24

Novo CPC e decisão por equidade: a canibalização do Direito



Equidade é expressão amorfa, com significância multifacetada, o que é verificável pelas divergências que a envolvem em sede doutrinária e jurisprudencial. Antes de qualquer coisa, é necessário dizer e lembrar que equidade (equity) vem da Inglaterra, quando o Lord Chancellor davaequitable remedies ad misericordium (ou non misericordiam). O Lord Chancellor era a instância última, “resolvendo” as pendengas a partir da equity... Mas isso não mais existe por lá. Só que aqui, o Código de Processo Civil insiste em manter essa coisa serôdia. Os ingleses evoluíram! E nós, não.
A doutrina tem dito que equidade pode menosprezar o direito positivo, sendo possível decidir contra legem.[1] Parte da doutrina remete o conceito a Recaséns Siches: a equidade seria superior ao justo legal porque expressão do justo natural, ou seja, seria o justo, mas não o justo legal tal e como se desprenderia das palavras da lei, senão o autenticamente justo em relação ao caso concreto.[2] O juiz então poderia decidir segundo seu prudente arbítrioquando ele próprio entendesse inaceitável a aplicação do texto legal, isto é, quando considerar que o resultado daí advindo seja disparatado. Haja paciência para esses conceitos em pleno Estado Democrático de Direito.
Existem outras posições “mais avançadas”, que dizem que a equidade seria um recurso às insuficiências da legislação, utilizável no suprimento de lacunas normativas, ou mesmo para aclarar enunciados abertos. Outras posições dizem respeito à equidade como a propriedade dos enunciados legais abstratos de se adaptarem, segundo certos critérios, às circunstâncias ou exigências fáticas do caso concreto. Algo inerente ao mecanismo de interpretação jurídica, que sempre impeliria o intérprete a adotar exegeses razoáveis, afinadas com o bom senso e toleradas, sem repugnância, pela razão humana. Nessa ótica, não se tem propriamente decisão por equidade e sim decisão proferida segundo a equidade. O julgador estaria obstado de arredar-se do direito positivo, tampouco poderia corrigir ou retificar a lei, pois seus propósitos, ainda que nobres, não seriam suficientes para autorizá-lo, a partir de seu próprio voluntarismo, a amoldar o resultado de suas decisões a sua própria ideia de justiça. Esta última posição parece um pouco melhor, embora não se saiba o que seriam as tais exegeses razoáveis.
As legislações brasileiras em algum momento já albergaram (e algumas ainda albergam) exemplos de todos esses significados, fazendo a equidadevariar de sentido a depender do contexto em que está inserida. Alguns exemplos: i) tanto o CPC-1973 (artigos 127 e 1.109), como a Lei de Arbitragem (artigo 2º), são legislações que autorizam decisões proferidascontra legem; ii) o uso do equitativo como forma de clarificar enunciados legais elásticos está bem representado pelo artigo 1.694, § 1º, do Código Civil; iii) o artigo 113, inciso 37, da Constituição de 1934 foi um permissivo legal elaborado para a superação de lacunas legislativas via equidade; e iv) elucida a equidade, como mecanismo de interpretação jurídica, aquilo que preceitua o Decreto Federal 24.150/1934 (Lei de Luvas), em seu artigo 73.
O novo CPC não foge à tradição e estabelece que “[o] juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico” e “só decidirá por equidade nos casos previstos em lei” (art. 140, parágrafo único). Ao tratar dos procedimentos de jurisdição voluntária, reza que o “juiz não é obrigado a observar critério de legalidade estrita, podendo adotar em cada caso a solução que considerar mais conveniente ou oportuna” (artigo 723, parágrafo único).[3] Ora, é manifesta a abertura decisionista oriunda dos referidos dispositivos, cujo contrassenso fere significativamente as bases do Estado Democrático de Direito. É bem verdade que a doutrina até se esforça, às vezes mediante malabarismos hermenêuticos, em sugerir interpretações menos traumáticas e aceitáveis, mas ao fazê-lo abandona por completo o próprio texto positivado que, infelizmente, não tolera percepção mais branda. Se é verdade que o texto legal traz limites semânticos cujo respeito se impõe a qualquer intérprete, parece certo afirmar que a equidade, nos moldes especificados pelo CPC-2015, foi mesmo delineada para funcionar como expediente de retificação da lei supostamente injusta para a solução do caso concreto suscitado em juízo. Parece que o fantasma de Büllow não dá folga aos instrumentalistas brasileiros. Els adoram um voluntarismo.
O que se tem aí, de um lado, é uma licença para o legislador infraconstitucional criar exceções à legalidade (artigo 140, parágrafo único) e, de outro, a autorização expressa para que o juiz se afaste dela em procedimentos de jurisdição voluntária (artigo 723, parágrafo único). Em suma, desdenha-se um direito fundamental que compõe a identidade da Constituição e que, só por isso, está blindado a manobras legislativas tendentes a eliminá-lo ou a minimizar sua importância (CFRB, artigo 60, § 4º, IV).
Não se pode esquecer que a supremacia normativa — em suas perspectivas formal e material — confiada atualmente à Constituição Federal representa o maior ganho que se obteve com a inauguração do Estado Democrático de Direito. Tal importe, todavia, não implica desgaste ao princípio da legalidade. Naquilo que é relevante aqui, a legitimidade democrática das decisões judiciais assenta-se na exclusiva sujeição do Judiciário aos enunciados normativos constitucionalmente válidos que integram o sistema legal, emanados da vontade do povo, porque discutidos, votados e aprovados por seus representantes eleitos.[4] O princípio da legalidade permanece, portanto, sendo um dos pilares do Estado Democrático de Direito, como o próprio texto constitucional, aliás, faz questão de ressaltar com ofuscante clareza (CFRB, artigos 5º, II, e 37, caput). Apenas sofreu transformações de sentido, razão pela qual se fala hoje, na esteira de Eliaz Dias, em legalidade constitucionalizada: a lei não é mais aceita per se, como algo cuja supremacia esteja nela própria, isoladamente considerada, pois apenas se legitima, é validada, se conforme a Constituição, isto é, caso esteja ajustada às cargas axiológica e deontológica das normas constitucionais.
Frente à previsão constitucional da legalidade, o constituinte afirmou a incoerência, no atual regime republicano, de um “governo dos homens”, aquele cujas decisões cedem ao sabor dos caprichos do governante; quis realçar que hoje se vivencia um “governo das leis”, fruto da vontade geral, avesso a arbitrariedades e voluntarismos praticados pelo Estado. A respeito disso, dessa sua importância axial, pontuem-se duas obviedades: i) a Carta Magna prescreve, de maneira categórica, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (CRFB, artigo 5º, II) — ou seja, o princípio da legalidade está positivado expressamente no âmbito constitucional; e ii) em todo o texto constitucional não há enunciado algum, nenhuma cláusula de exceção que legitime uma fissura no princípio da legalidade. Em outras palavras: inexiste base normativa legítima (=constitucional) que sirva de fundamento para decisões proferidas em desacordo com o ordenamento jurídico, e assim porque é impossível justificar uma exceção ao princípio da legalidade que esteja prevista em legislação infraconstitucional, como fez o CPC-1973 e faz também o CPC-2015.
Mais preocupantes, porém, são as consequências práticas fomentadas por um sistema normativo que traz dentro de si possibilidades concretas para a construção de provimentos judiciais afetos a critérios não normatizados, alinhavados a uma série de fórmulas ou expressões capazes de integrar o amplíssimo campo da conceituação incerta de equidade (direito natural, princípios de justiça, princípios gerais do direito, realidade social subjacente, consciência social, espírito da lei, vontade do legislador). É como se no ordenamento jurídico houvesse uma válvula de tolerância, liberando o ingresso e a livre circulação em seu domínio de toda sorte de elementos exógenos, calcados naquilo que, para o juiz, em seu particular subjetivismo, se apresenta justo[5] para a solução do caso concreto. Ainda em linguagem metafórica: a aquiescência legal no que tange às decisões por equidadeimporta reconhecer, no seio do sistema normativo, a presença de portal encantado cujo ingresso transporta o julgador para uma realidade alternativa que o liberta das amarras da lei, permitindo-o fazer uso de práticas concernentes a espécie de realismo jurídico à brasileira.
A alusão feita acima pretende estabelecer um contraponto com o chamadoRealismo Jurídico Americano, postura epistêmica que eclodiu como uma reposta à jurisprudência analítica, versão commowliana do positivismo do século XIX. Seus defensores, que podem ser considerados como “positivistas fáticos”. A base está no enunciado “the judge made law”. Há várias correntes realistas. Nelas, há um deslocamento dos discursos de validade em direção à decisão e, consequentemente, aos fatores ideológicos, subjetivos, psicológicos, etc que conformam a vontade do juiz. Mais não precisa ser dito sobre isso.
Daí não ser exagero afirmar que as licenças legislativas autorizando o juiz a decidir por equidade conduzem ao pensamento defendido pelos realistas jurídicos. Não só por eles, como também por adeptos das diversas concepções que incorporam a possibilidade de corrigir o direito a partir de concepções morais etc.. À evidência, isso leva a fomentação de jurídico dedecisionismos, concentrando o ideal de justiça no subjetivismo do julgador e não nas leis democraticamente elaboradas pelos representantes do povo. Em boa medida, aliás, é possível constatar, mais e mais, dia a dia, as consequências de uma prática apegada a tal pensamento libertário, vale dizer, uma forma de refletir e praticar o direito caracterizada pelo desapego a compromissos com a legalidade. É perceptível na realidade forense uma prática judiciária que corrói dia a dia a legalidade, o que é verificável, por exemplo, em decisões judiciais: 
i) oriundas de um ativismo judicial muitas vezes desregrado que politiza e corrói o Judiciário;
ii) proferidas em atentado às legislações processual e/ou material sem que haja justificativa para tanto, a não ser a vontade do juiz;
iii) fruto exclusivo do que os magistrados entendem como justiça, com base em critérios de conveniência, cujas premissas jurídicas são buscadas só depois que a solução é intuída;
iv) fundadas em princípios constitucionais que desconsideram regras infraconstitucionais hábeis para a solução fácil das questões postas em juízo, ausente qualquer motivação analítica que demonstre aos jurisdicionados a incompatibilidade entre a regra positivada e a Constituição (controle difuso de constitucionalidade);
v) sedimentadas em pseudoprincípios, carentes de normatividade, dotados de papel retórico e retificativo, elaborados acriticamente pela dogmática (pamprincipiologismo ou caos principiológico);
vi) adulteradoras dos limites hermenêuticos dos enunciados normativos, inclusive aqueles de calibre constitucional.

Esse fenômeno, que é experimentado amiúde por aqueles que fazem da praxe jurídica seu ofício, denota uma versão pós-moderna das decisões por equidade. E o que é pior: trata-se de uma variante que supera aquela positivada no CPC, não concernente a circunstâncias excepcionais afetas a dispositivos ali previstos de maneira isolada. É algo maior, decorrente de um inconsciente coletivo que aposta suas fichas no Judiciário, que valoriza paradoxalmente a discricionariedade judicial num modelo constitucional cujo núcleo preza pela segurança e previsibilidade.
Não se está a tratar de um problema de menor relevo, cuja motivação se situe unicamente no desejo de imprimir adequada sistematização ao ordenamento jurídico. Com o Novo CPC perdeu-se a oportunidade de extirpar esses resquícios legiferantes de uma ideologia que, se no passado já encontrou asilo noutros regimes, hoje contudo carece de respaldo teórico-filosófico, nada justificando sua subsistência em legislações produzidas por uma democracia como a brasileira. Os dois dispositivos criticados aqui, transplantados do CPC-1973 para o Novo CPC, promovem o resgate de métodos “tipo direito livre” (para dizer o mínimo), cujos adeptos mais radicais se apegam a um tipo de niilismo legislativo. Tais preceitos desdenham o papel das leis elaboradas por representantes legitimamente eleitos para cercarem-se de um ideário cujo astro maior é o juiz, aquele a quem cumpre julgar com excelência o caso concreto, se necessário até em desprezo ao próprio sistema normativo.
E mais: o sistema processual brasileiro, ao autorizar, mesmo que excepcionalmente, a jurisdição por equidade, torna-se de certa maneiraautofágico e passa a nutrir-se à custa de sua própria substância. Decisões proferidas sem apoio normativo, desapegadas a construções legítimas nascidas do devido processo legislativo, não só atentam contra o princípio da legalidade, como também, e por consequência, consomem alguns dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, a exemplo da segurança jurídica. É o Estado Democrático de Direito canibalizando-se.
Quem perde com essa libertinagem normativa são sempre os brasileiros, a cada dia mais sufocados por uma atmosfera jurisprudencial esquizofrênica, com teses para todos os gostos, cuja característica manifesta é a imprevisibilidade.

[1] SILVEIRA, Alípio. Hermenêutica Jurídica: seus princípios fundamentais no Direito Brasileiro. Vol. 4. São Paulo: Brasiliense Coleções, 1985. p. 83.
[2] SINCHES, Luis Recasens. Nueva filosofía de la interpretación del derecho.México: Editorial Porrúa S.A., 1973. p. 261.
[3] Ronaldo Brêtas faz um apanhado de todas as sugestões que apresentou ao Congresso Nacional, inclusive aquela na qual sugeriu a supressão dos artigos que autorizam as decisões por equidade. Conferir em: CARVALHO DIAS, Ronaldo Brêtas de. Projeto do novo Código de Processo Civil aprovado pelo Senado – exame técnico e constitucional. InO futuro do processo civil – uma análise crítica ao Projeto do novo CPC. Organização: ROSSI, Fernando et al. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 551-566.
[4] CARVALHO DIAS, Ronaldo Brêtas. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 134.
[5] O livro de Michael J. Sandel exemplifica a dificuldade de se compreender o justo. Numa perspectiva filosófica, o autor trabalha o conceito de justiçasob várias facetas (utilitarismo, ideologia libertária, ótica do mercado, conceitos morais, etc), passando pela visão de vários filósofos como Aristóteles, Kant, John Rawls, Robert Nozicks entre outros. (SANDEL, M. J.Justiça. O que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012).
 é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.
 é advogado, pós-doutor em Direito (UNISINOS) e doutor em Direito (PUC-SP).
Revista Consultor Jurídico, 29 de dezembro de 2015, 7h49