"Eu não recearia muito as más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Não há texto de lei que não deixe campo à interpretação.

A lei é morta. O magistrado vivo. É uma grande vantagem que ele tem sobre ela" - Anatole France

terça-feira, 31 de maio de 2022

A desprofissionalização das polícias do Brasil

 


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As cenas de horror protagonizadas por agentes da Polícia Rodoviária Federal, no último dia 25, correram o mundo e, novamente, estamparam o despreparo das forças de segurança do Brasil.

Reprodução

As imagens chocantes, gravadas por um transeunte com um celular, mostram os policiais prensando, com a porta traseira da viatura, as pernas de um homem, que se encontravam do lado de fora, enquanto o restante do corpo no interior do compartimento traseiro, se contorcia em razão do asfixiamento por gás lançado propositalmente pelos próprios policiais.

As fotos que registram as cenas dantescas trouxeram a recordação das câmaras de gás engendradas pela Alemanha nazista.

Evidentemente que os órgãos de segurança e suas corporações não compactuam com esses procedimentos e, quando ocorre eventos dessa natureza, se apressam a se desculpar com a sociedade, reputando se tratar de um caso pontual.

Mas, infelizmente essas barbáries não se tratam de casos isolados.

A revolução em nível global das comunicações, por meio da internet e das mídias sociais, permite a difusão de notícias instantaneamente para o mundo.

Basta uma pesquisa pelo Google, ou qualquer outra ferramenta similar, com o tema violência policial no Brasil, para se verificar centenas de milhares de resultados correlacionados.

No entanto, a culpa não pode ser simplesmente imputada aos órgãos de segurança, pois estes são apenas instrumentos institucionais que aplicam as políticas de segurança equivocadas implantadas neste país há décadas.

As causas dessas ações desastrosas são as mais variadas possíveis, em todas as esferas políticas da nação.

Decorrem de fatores como descaso, investimentos insuficientes, gestões temerárias, uso ideológico, e, em alguns casos até criminoso, dos órgãos policiais.

A desprofissionalização dos órgãos de segurança é uma realidade e remonta há décadas sob o olhar complacente da sociedade.

Enquanto a população brasileira, nos últimos 40 anos, passou de 120 milhões, em 1980, para 214 milhões em 2022, segundo o IBGE, as polícias simplesmente encolheram.

A falácia de que os efetivos diminuíram em razão da aplicação de novas tecnologias e otimização do policiamento é quase criminosa e se presta apenas a enganar a sociedade.

A verdade é que vivemos uma guerra urbana com mais de 60 mil mortes violentas/ano em decorrência da ineficácia das políticas de segurança vigentes.

Efetivos reduzidos, baixos salários, falta de estrutura, recrutamento e formação inadequados, aliados ao crescimento do crime de forma exponencial, inclusive com ataques orquestrados com resultado de morte de centenas de policiais, levaram parte dos agentes das forças de segurança a enxergarem qualquer um que apresente comportamento fora do padrão como um inimigo em potencial, que deve ser neutralizado a todo custo.

A situação piora quando o agente possui desvio de personalidade, com inclinação ao sadismo.

O resultado é a morte de centenas de Genivaldos pelo país a fora.

Repisando o que já escrevemos em 2012, em artigo titulado "Insegurança pública — Descaso ou crime" - "infelizmente o nosso sistema normativo não prevê responsabilização de governantes por gestão medíocre nas áreas de educação, saúde e segurança pública".

"Um absurdo que ocorre nesse país, pois, a gestão temerária nessas áreas constitui verdadeiros crimes de lesa pátria, com milhares de vítimas sem voz todos os dias. A sociedade está desamparada. Quem tem recursos investe em segurança particular; e quem não tem?"

O resultado está aí nas manchetes diárias por todo o país.

Nesse contexto, os comandos das forças de segurança, pressionados pelos políticos governantes, que exigem a redução dos níveis de violência sem prover o necessário, passaram a dispor de seus efetivos de forma abrangente, sem levar em consideração a formação e especialização dos policiais.

Diversamente do que ocorre na Europa e nos Estado Unidos, onde os futuros agentes são recrutados e treinados para integrar as forças de segurança, com formação específica para atuação nas diversas formas de policiamento, no Brasil as polícias atuam de maneira geral e se digladiam, umas com as outras, com invasão de atribuições e resultados profissionais medíocres.

A polícia fardada que deveria apenas patrulhar, também quer investigar com unidades especiais criadas para isso. 

E a polícia paisana que deveria somente investigar, também dispõe de equipes uniformizadas para patrulhamento dito "especializado".

A verdade é que o policial tipo "faz tudo", nada faz direito com primazia.

A função policial exige recrutamento de pessoas vocacionadas e, acima de tudo, com a formação profissional adequada para o exercício da atividade de segurança pública.

O caso da vítima de Umbaúba, em Sergipe, demonstra claramente o despreparo dos agentes, que não souberam conduzir a ocorrência com pessoa portadora de transtornos mentais.

Mas a incompetência vai além, uma vez que deveriam saber que não existe munição ou instrumento de dissuasão que seja 100% não letal.

Gás lacrimogênio, gás pimenta, balas de borracha, taser ou quaisquer outro equipamento de controle de distúrbios exige qualificação para seu manejo e utilização estrita de acordo com as especificações do fabricante, uma vez que o uso inadequado pode causar a morte.

No caso dos gases incapacitantes, jamais devem ser utilizados em ambientes confinados ou que impeçam o escape da pessoa atingida para uma área ventilada.

Deve-se ter em mente que há pessoas, que em razão de condição fisiológica pessoal, podem ter reação alérgica anafilática com o fechamento das vias respiratórias e, em consequência, a morte.

Na década de 1980 era comum nas escolas de formação da PM de São Paulo o ensino de instruções para lidar com pessoas com transtornos mentais. As guarnições das denominadas radiopatrulhas dispunham de camisas de força, como parte do equipamento da viatura, para o atendimento desse tipo de ocorrência. Infelizmente esse equipamento foi recolhido anos depois.

Temos a impressão, se é que é apenas impressão, que a segurança pública regrediu muito, enquanto a violência evoluiu assustadoramente para o morticínio da população indefesa.

Já passou da hora do Brasil repensar e, efetivamente, implementar a mudança da estrutura do modelo de segurança pública.

O paradoxo da segurança pública brasileira somente será revertido com estudo, planejamento e investimento maciço para implantação de um projeto sério, cujo objetivo transcenda ideologias políticas e seja focado na segurança para o bem estar de todos.

A sociedade somos todos nós. Hoje, ninguém está seguro.




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 é bacharel pela Faculdade Católica de Direito de Santos. Ingressou na carreira policial em 1980 como soldado da Polícia Militar de São Paulo, onde alcançou a graduação de 2º sargento. Em 1989 assumiu o cargo de investigador de polícia, tendo exercido a função até 1994. Aprovado no concurso para delegado de polícia, exerceu o cargo até se aposentar, em 2020. É sócio proprietário do escritório MF Advocacia Marques Ferreira.

Revista Consultor Jurídico, 31 de maio de 2022, 10h04

Após 1999, cálculo da aposentadoria pode somar contribuições concomitantes

 

PRECEDENTE QUALIFICADO


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Após o advento da Lei 9.876/1999, e para fins de cálculo do benefício de aposentadoria, no caso do exercício de atividades concomitantes pelo segurado, o salário-de-contribuição deverá ser composto da soma de todas as contribuições previdenciárias por ele vertidas ao sistema, respeitado o teto previdenciário.

Ministro Sergio Kukina é o relator da tese fixada sob o rito dos recurso repetitivos
Emerson Leal

Essa foi a tese fixada pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar três recursos especiais afetados ao rito dos repetitivos, em 11 de maio. O enunciado, aprovado por unanimidade, terá observância obrigatória pelas instâncias ordinárias.

A cumulação das contribuições previdenciárias por atividades concomitantes era vetada com base no artigo 32 da Lei 8.213/1991 porque, até então, o benefício previdenciário era calculado a partir dos últimos 48 meses de contribuição do seguro, considerando os 36 maiores salários por ele recebidos.

Assim, a norma visava evitar que, às vésperas de se aposentar, o segurado passasse a exercer outras atividades simultâneas apenas com o objetivo de manipular a renda mensal inicial à qual teria direito.

Esse cenário mudou drasticamente com a entrada em vigor da Lei 9.876/1999, que passou a considerar para o cálculo do benefício os valores recebidos em 80% do período contributivo.

Relator, o ministro Sergio Kukina concluiu que, com a alteração legislativa, não existe mais espaço para aplicar o artigo 32 da Lei 8.213/1991, pois acabou com a possibilidade de manipulação pelo breve exercício de atividades concomitantes.

“Lícito concluir que a substancial ampliação do período básico de cálculo, como promovida pela Lei 9.876/99, passou a possibilitar a compreensão de que, respeitado o teto previdenciário, as contribuições vertidas no exercício de atividades concomitantes podem, sim, ser somadas para se estabelecer o efetivo e correto salário-de-benefício”, afirmou.

Destacou ainda que a Lei 13.846/2019, inclusive, revogou os incisos I, II e III o artigo 32 da Lei 8.213/1991, “espancando qualquer dúvida acerca da forma de cálculo do benefício, na hipótese de exercício de atividades laborativas concomitantes”.

Clique aqui para ler o acórdão
REsp 1.870.793




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 é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 31 de maio de 2022, 8h40