"Eu não recearia muito as más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Não há texto de lei que não deixe campo à interpretação.

A lei é morta. O magistrado vivo. É uma grande vantagem que ele tem sobre ela" - Anatole France

sábado, 22 de agosto de 2015

Juíza declara nula a entrada sem mandado na casa onde é encontrada droga e relaxa prisão

Juíza declara nula a entrada sem mandado na casa onde é encontrada droga e relaxa prisão



A juíza Andrea Ferreira Bispo, de Santa Izabel do Pará, reconhecendo que a entrada na casa do conduzido se deu ao arrepio das garantias constitucionais, especialmente por ausência de mandado, reconheceu a ilegalidade da ação policial e, por via de consequência, relaxou a prisão. A decisão desenha como deve ser a atuação do Estado, por seus agentes, não tolerando a violação do asilo inviolável em nome da eficiência. Mesmo em plantão a decisão é substancialmente fundamentada.
Confira abaixo:

AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE
Vistos etc.
Cuida-se de AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE LAVRADO contra D. P. dos S., qualificado nos autos.
O fato imputado ao flagrado é o crime previsto no art. 33 da Lei n.º 11.343/2006 (tráfico de drogas).
O condutor da prisão, o Policial Militar W. M. do R., fez o seguinte relato:
 Que o declarante encontrava-se de serviço no comando da guarnição da Vila de Axxxx, juntamente com os soldados Exxxxx e Axxxxxx, quando apresentou nesta data o nacional D. P. dos S., 34 anos (DN xx/xx/1980) pelo crime de TRÁFICO DE ENTORPECENTES. Que refere o declarante que há algum tempo vinham recebendo denúncias de que na residência situada na Rua José X X, bairro Americano, estaria funcionando um ponto de tráfico de drogas e que haviam armas de fogo no local. Que por volta das 00hs30min desta data, 15/08/2015, diligenciaram até o endereço, quando saiu do local um rapaz que aparentava ser viciado, mas com o qual nada foi encontrado. Que o declarante adentrou no local, momento em que o flagrantado ao perceber a presença dos policiais, saiu correndo para o fundo do quintal, indo em direção a um sanitário ali existente onde desfez-se de um pequeno embrulho, jogando-o dentro do sanitário. Que indagado o que teria jogado no sanitário, o flagrantado alegou que estava só fumando, e por ordem sua foi até o local e pegou o embrulho, quando foi constatado que no interior do mesmo haviam 18 (dezoito) petecas contendo uma substância úmida e pastosa assemelhada a pasta base de cocaína. Que na sequencia foi realizada uma revista minunciosa no interior do imóvel a fim de localizarem as armas proferidas na denúncia, porém nenhum armamento foi encontrado. Que apresenta também a importância de R$ 15,00 (quinze reais), quatro aparelhos celulares (três marca LG e um nokia), sacos plásticos e uma tesoura, possivelmente utilizados para a embalagem e confecção do entorpecente para revenda. Que ressalta que no momento da abordagem três elementos se aproximaram da residência, possivelmente para compra drogas, mas ao avistarem a presença da viatura e da polícia logo disfarçaram e saíram do local”.
Tendo em vista o quadro relatado, o flagrado foi levado à presença da autoridade policial, sendo lavrado o presente auto de prisão em flagrante, que a mim vieram para apreciação da regularidade formal e material.
 RELATEI. DECIDO.
Conforme relatado, a apreensão da droga ocorreu em flagrante desrespeito às normas relativas à inviolabilidade do domicílio, direito este previsto no art. 5º, X da Constituição Federal.
Aliás, é importante consignar que sabe-se que se vive de fato em uma democracia quando o lar dos cidadãos é de fato um asilo inviolável.
Presentemente, o que se observa é que com base em inúmeras presunções, a polícia militar adentrou a casa de D. P. dos S. durante o período noturno, sem ordem judicial (que aliás também não poderia ser cumprida àquelas horas) para “investigar” se ali se vendia drogas.
Interessante que as denúncias não tem nome nem rosto, ao mesmo tempo que os próprios policiais relataram que abordaram uma pessoa e a revistaram, pura e simplesmente, porque saía da casa de D., o que a tornou suspeita aos olhos dos mesmos e ainda que nada tenham encontrado em poder de tal pessoa, prosseguiram na investigação em busca de drogas e armas, sendo que destas últimas nem vestígios foram encontrados.
E é aí que reside o perigo de se agir com base em presunções sobre os significantes do que se vê.
Para que se possa colher provas com um mínimo de segurança é preciso refrear a imaginação para que ela não nos leve a deduções inconsistentes, pois não se admite infrações a direitos fundamentais, por mais importantes que sejam os motivos que o Estado julga ter para infringi-los.
No caso em análise, cumpre registrar, tanto em homenagem a garantia da presunção de inocência quanto porque não é dado ao julgador nem optar pela conclusão que mais lhe contente e tampouco adotar acriticamente as conclusões alheias, que os fatos devem ser enxergados assim como o são, no melhor estilo da vida como ela é: D. não foi visto vendendo drogas. A tal pessoa abordada (indevidamente, consigno) não portava droga. Em minha casa, assim como em todos os lares brasileiros, não faltam sacolas e sacos plásticos, que são usados para inúmeros fins, não necessariamente ligados ao tráfico.
E nesse ponto entra a droga apreendida.
Não que não se possa vender 3, 105 gramas de cocaína, mas essa quantidade é muito pequena. Usando um parâmetro para possibilitar a correlação e facilitar a compreensão, trata-se de quantidade equivalente a seis comprimidos de qualquer remédio de 500 miligramas.
E ainda que fosse relevante a quantidade de droga apreendida, no crime de tráfico a suposição do estado de flagrância não autoriza que a polícia adentre o domicílio de qualquer cidadão sem mandado judicial, constituindo violação do disposto no art. 5º, X, da CF, o agir contrário, cumprindo registrar que esse entendimento foi sufragado pelo Superior Tribunal de Justiça.
Ainda que seja indiscutível que as decisões proferidas pelos tribunais superiores trazem em si o peso de criar jurisprudência e da jurisprudência estar se tornando quase que a única motivação de muitas decisões judiciais, deixo de transcrever tais precedentes.
Porém, passo a transcrever trechos de pedido de arquivamento de inquérito, sentenças e artigo publicado na Revista Conjur, tendo em vista que tais documentos, ao meu ver, contém fundamentos mais afinados com as regras do devido processo legal substancial.
  1. Pedido de arquivamento do Inquérito Policial n.º 0019633-40.2013.8.14.0401, formulado pela Dr.ª ANA CLÁUDIA BASTOS DE PINHO, Promotora de Justiça do Estado do Pará.
 ARQUIVAMENTO: PROVA OBTIDA POR MEIO ILÍCITO
Tenho que os autos devem ser arquivados, posto que a “prova material” da conduta ora em apreço foi obtida por meio ilícito, o que vicia por completo o flagrante, bem como a existência mesma do crime que se pretende imputar ao indiciado. Vejamos.
A Constituição Federal, em seu art. 5º, LVI, determina que:
“são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.
Pois bem, no caso vertente, a “prova” material do suposto crime, qual seja, a substância entorpecente, foi obtida ilicitamente, através de uma verdadeira invasão na residência do indiciado… Os policiais, sem dispor de mandado judicial de busca e apreensão, entraram na casa do indiciado, onde teriam encontrado os 9,672 gramas de cocaína, dentro de um saco plástico (laudo fl. 31).
Oportuno frisar que não consta dos autos o consentimento do proprietário do imóvel para o ingresso da equipe policial, concluindo-se, portanto, que não houve tal consentimento. Pelo contrário, o próprio condutor afirma que “conforme denúncia o entorpecente e o dinheiro encontrava-se escondido no forro da casa” e que “subiram no forro da casa e lá encontraram…” (palavras do condutor – fl. 02), levando a crer que chegaram na residência e, de imediato, adentraram no imóvel, fazendo a busca domiciliar à revelia do morador.
Ou seja, a polícia, sem mandado judicial, nem autorização do proprietário/ocupante do imóvel, entrou na residência e lá apreendeu as petecas de droga que não estava em poder de ninguém (supostamente escondida no forro), imputando ao indiciado a prática de tráfico de entorpecentes.
Não é demais lembrar a garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio, prevista no art. 5º, XI, da Carta Magna, in verbis:
“a casa e asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.
Sobre o tema, vejamos os julgados abaixo (TJSP – HC – 175.784-3 – Rel. Segurado Braz – JTJ 171/350, TJSP – AC – Rel. Acácio Rebouças – RT 442/386, TACRIM-SP – AC 154.737 – Rel. Francis Davis).
Vê-se, assim, que o ingresso dos policiais na residência mencionada, sem o consentimento de quem de direito e sem a apresentação de mandado judicial, desrespeitou a norma constitucional relativa à inviolabilidade domiciliar e, destarte, a apreensão da substância entorpecente foi, igualmente, ilegal.
O Professor ANTÔNIO SCARANCE FERNANDES, em sua obra Processo Penal Constitucional, … tratando expressamente da hipótese de prova obtida por meio ilícito na fase inquisitorial, fazendo referência específica à apreensão de substância entorpecente. É ler-se:
“(…) Isso pode suceder, por exemplo, quando a apreensão de substância entorpecente foi feita por meio ilícito, pois, sem essa apreensão, considerada ilícita, não haveria como demonstrar a materialidade do crime. Se o juiz negar o habeas corpus, cabe recurso em sentido estrito ou outro habeas corpus ao Tribunal. Se não for impetrado o writ, o caso é de arquivamento do inquérito policial. A prova será desentranhada e, em seguida, requerido o arquivamento” (In op. cit. página 85).
  1. Sentença proferida nos autos da ACP nº 0000562-25.2010.8.20.0002, pelo Dr. Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior, Juiz de Direito do Estado do Rio Grande do Norte
Analisando os autos do auto de prisão em flagrante, vê-se que ele se originou de denúncia anônima…
Atuando como juiz em uma das Varas Criminais da Zona Norte da Comarca de Natal, comecei a me deparar com uma série de prisões em flagrante por tráfico de drogas, todas seguindo um mesmo padrão, isto é, em que não há uma situação de flagrância até que os agentes das forças policiais ingressam na casa do acusado. Até que dois fatos me chamaram atenção.
O primeiro foi o fato de que houve uma prisão para averiguação do acusado.
O segundo foi a busca sem mandado e sem autorização do acusado.
Aliás, mesmo na versão dos policiais, estes  não citaram que o acusado tivesse os autorizado a fazer uma busca em sua casa, mas apenas a nela entrar. Cabe ressaltar que os testemunhos afirmaram que tanto a arma quanto as drogas estavam escondidas e não à vista.
Infelizmente, a prática, na Justiça estadual, tem sido a de ter pouca atenção para essa situação. A lógica do eficienticismo, que pisoteia a normatividade (leia-se, a Constituição e os tratados internacionais aqui) não pode ser aceita.
Não em um Estado Democrático de Direito. É um sintoma de que nós do Judiciário, ainda precisamos conhecer e reconhecer direitos fundamentais mais básicos como o da inviolabilidade do lar.
Há uma permissividade que contamina e estimula abusos. Criamos áreas em que não existe o Estado de Direito. Existe o estado de exceção – no qual tudo se pode contra os lúmpens. Não para menos, o crime em que mais se atribui excessos é o de tortura (nem vamos nos referir ao abuso de autoridade, pois a lei lhe deu penas tão pequeninas que, na verdade, o chancelou como método de atuação ordinária das forças policiais). E as estatísticas carcerárias do Rio Grande do Norte (incluindo a Justiça Federal), existentes no INFOPEN, do Ministério da Justiça, em dezembro de 2012, são as seguintes:
População carcerária: 7.141
Homicídio Simples e Qualificado: 797
Roubo Simples e Majorado: 1.019
Furto: 813
Peculato: 3
Corrupção Passiva: 0
Corrupção ativa: 0
Tráfico: 1.087
Tortura: 0
Essa plena impunidade só pode gerar tranquilidade no agir abusivo. De outro tanto, atribuo os excessos à permissividade do senso comum teórico em não investigar e nem punir os infratores, uma vez que os alvos são pessoas das camadas mais pobres da população, os chamados subcidadãos, como explicarei mais abaixo. E o que é o senso comum teórico?
O Direito não pode aceitar e nem permitir que agentes das forças policiais, a pretexto de investigarem a ocorrência de crimes, a pretexto de cumprir a lei, violem-na.
São tantas as denúncias de ilegalidades nos flagrantes denunciadas nos meios de comunicação, corroboradas pelos testemunhos que colhemos, que comecei a me questionar acerca da (i)legalidade, para não dizer (in)constitucionalidade das inúmeras prisões e apreensões em virtude de denúncias anônimas.
E passei a observar que o script era, quase que invariavelmente, o mesmo:
1º. Dizia a polícia que recebeu denúncia anônima de que determinada pessoa estava praticando algum crime, geralmente tráfico de drogas; ou encontravam um “elemento” com “trajes” ou “jeito” suspeito e tentavam abordá-lo;
2º. Dirigiam-se ao local e visualizavam o cidadão entrar ou sair de casa, geralmente correndo; ou pediam gentilmente para entrar na casa do suspeito;
3º. Numa situação de suspeita, entravam na casa à força, pois desconfiavam da movimentação do suspeito. E lá eram encontradas armas ou drogas. Com isso, prendiam o pretenso suspeito e o encaminhavam à delegacia.
Diz a Constituição Federal, em relação à questão:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…)
XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial; (…)
LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; (…)
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; (…)
LVI – são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.
Nesse momento, para mim urge identificar qual tipo de processo penal quero aplicar, e quais direitos estarei  eu – enquanto agente do Poder encarregado da guarda da Constituição – garantindo.
Com efeito, o trabalho de um juiz não em muito diferencia do executado pelo historiador. Como não presenciamos os fatos, reproduzimos em momento posterior, numa cadeia dos significantes que elegemos como os mais importantes para produzir uma imagem mental do ocorrido, a historicidade dos fatos, para concluirmos qual a repercussão jurídico-penal que a eles devemos atribuir.
Para isso, precisamo-nos valer das provas colhidas nos autos, provas essas que devem repercutir um juízo de convencimento, após a filtragem hermenêutico-constitucional (significa dizer respeito pelo devido processo legal, pelo contraditório e ampla defesa, presunção de inocência, licitude das provas, etc.).
O que me intriga, por ora, é o comum fato de que bens ilícitos, como uma arma ou drogas, nesse caso, são apreendidos com base em denúncia anônima.
Num Estado verdadeiramente Democrático, o juiz aplica o direito e o processo penais, garantindo ao acusado o respeito aos seus direitos fundamentais. Um deles é o de não sofrer coação com base em denúncias anônimas ou sofrer violações em sua intimidade sem a devida reserva de Jurisdição. A relevância disso é grande, pois impede que haja abusos ou manipulações.
E alguém pode perguntar como é que a polícia vai trabalhar? Ora, é fácil para uma boa parcela da população cobrar maior eficiência da polícia, pois usualmente estão imunizados de possíveis abusos cometidos sob o pálio do denuncismo sem rosto.
Nesse país, aliás, tem sido tônica a existência de três classes de pessoas, tal qual alertado por Roberto Damatta: o cidadão, o sobrecidadão e o subcidadão.
Não basta que o agente estatal afirme que recebeu uma ligação anônima ou informes anônimos, sem que indique quem fez a denúncia, nem mesmo o número de telefone, dizendo que havia chegado à materialidade de uma infração penal na casa do acusado. É preciso que haja evidências ex ante da expedição do mandado de busca e apreensão. Assim é que a atuação policial será abusiva e inconstitucional por violação do domicílio do acusado.
Por isso me preocupa esse efienciencitismo, essa visão utilitarista. Não devemos esquecer que a inquisição seguia um roteiro de delatores sem rosto, envoltos em sobras, e foram essas sombras responsáveis pela morte de centenas de milhares de pessoas (estima-se que somente na Alemanha, durante esse período do terror religioso, cem mil foram queimadas na fogueira).
Há muito que a Constituição exige uma postura diferente dos atores jurídicos. E essa só vai acontecer quando houve uma quebra da prática judiciária acrítica e chanceladora da violência.
DOS EFEITOS DA PROVA ILEGAL
Vige em nosso ordenamento jurídico o princípio do livre convencimento motiva. Significa dizer que o juiz é livre para apreciar e avaliar a prova produzida. Porém, necessita fundamentar sua decisão. Assim, a corporificação desse princípio no direito positivado se encontra no art. 155 do CPP, que diz:
Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.
Outrossim, o princípio do ônus da prova é expresso no artigo posterior do Código processual, a saber:
Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: (…)
Vou logo tomar a parte em que me convenci: as munições e os documentos falsificados foram, efetivamente encontrados e apreendidos, e acredito que eram da parte acusada, como ela mesma confessou.
Mas nada disso tem mais significado algum no presente processo. Não havia suporte mínimo para a obtenção da busca a apreensão. Ora, se diz a Constituição que a casa é asilo inviolável, ninguém nela podendo entrar sem o consentimento do morador ou, durante o dia, na esfera criminal, em flagrante delito. E para entender  melhor meu raciocínio, diz o CPP a respeito do flagrante delito:
Art. 301. Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.
Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem:
I – está cometendo a infração penal;
II – acaba de cometê-la;
III – é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;
IV – é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.
Art. 303. Nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência.
E poderia eu argumentar que o crime de porte ilegal de munições é permanente. Acontece o seguinte: mesmo se eu aceitasse a tese inverossímil de que os policiais invadiram a casa com base num informe anônimo, não havia suporte legítimo que permitisse a violação do domicílio, ainda que judicialmente chancelada.
É por isso que o princípio do devido processo legal existe, para evitar abusos. Resultado: graças ao deferimento de uma busca e apreensão sem exigência de investigação realmente feita, toda a prova foi posta a perder, gerando a absolvição da parte acusada. Até acredito que a parte acusada tenha praticado os atos. Mas não posso julgar fora das regras do jogo democrático, como diz o colega Alexandre Morais da Rosa em seu Crítica à Metástase do Processo Penal.
Não fosse assim, daqui a pouco estaria eu admitindo igualmente a prática da tortura para obtenção de meio de prova. Trata-se de meio apto a obter uma prova? Claro. Mas não convém isso em um Estado Democrático de Direito. Existem uma Constituição. E ainda há juízes nesse país.
FECHANDO A QUESTÃO
Fechando a questão, diz o CPP:
Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.
  • 1º São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.
  • 2º Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova.
  • 3º Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente.
Desta forma, declaro ilícitas as provas apreendidas no termo de exibição e apreensão de fls. 187-195. Nem vou determinar que sejam desentranhadas porque já estou a julgar o feito e a elas me reportei como inidôneas a firmar a fundamentação do caso. Sem elas, não subsiste prova suficiente para a condenação, em relação à parte acusada.
     E nulo quer dizer o mesmo que inexistente nos autos, para qualquer feito. E diz a lei de drogas:
Art. 50. Ocorrendo prisão em flagrante, a autoridade de polícia judiciária fará, imediatamente, comunicação ao juiz competente, remetendo-lhe cópia do auto lavrado, do qual será dada vista ao órgão do Ministério Público, em 24 (vinte e quatro) horas.
  • 1º Para efeito da lavratura do auto de prisão em flagrante e estabelecimento da materialidade do delito, é suficiente o laudo de constatação da natureza e quantidade da droga, firmado por perito oficial ou, na falta deste, por pessoa idônea.
     Se não há provas válidas no momento do julgamento, não há suporte para a condenação, pois não se admite a materialidade por meras ilações ou conclusões de experiência, nos mesmo termos em que a legislação processual penal não admite, nos crimes que deixam vestígios, que se ignore a prova pericial.
     E faltando o sustentáculo probatório mínimo, o lastro para a persecução penal, também chamado de justa causa, passo ao dispositivo, cabendo destacar que sem esse lastro, dá-se a hipótese do art. 386, II, do CPP:
Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça:
II – não haver prova da existência do fato;
  1. Voto proferido pelo Dr. Fernando de Castro Faria, Relator do processo: 2013.501448-2, de Joinville – SC. Julgado em 09/09/2013
Analisando detidamente as provas carreadas aos autos observo que, na espécie, as circunstâncias da abordagem não evidenciavam situação de flagrância a autorizar o ingresso dos policiais na residência do acusado, sem permissão do proprietário ou, ainda, sem ordem judicial.
Dos depoimentos dos policiais militares colhidos durante a instrução constata-se que o ingresso na propriedade do acusado se deu sem autorização, sendo irrelevante o argumento de que se tratava de um rancho anexo à residência.
E a respeito do “flagrante” das armas, observa-se que houve promoção de arquivamento pelo próprio Ministério Público, pelo que não havia legalidade na conduta dos policiais. E mesmo que houvesse a denúncia por eventual crime previsto no Estatuto do Desarmamento, a solução seria a mesma, dada a ilicitude na obtenção das provas.
Isso porque a casa é asilo inviolável, assim protegida pela Constituição da República (art. 5º, inciso XI), não sendo possível a sua violação com fundamento em denúncias anônimas, na medida em que isso certamente acarretaria a possibilidade de se ingressar em domicílios de pessoas inocentes por mera vingança ou revanchismo de eventual desafeto do “alvo”. Eventuais denúncias/suspeitas devem ser submetidas à investigação e apreciação judicial.
No mesmo sentido: … (TJRS, Ap. Crim. n. 70052709334, Terceira Câmara Criminal, rel. Des. Diógenes V. Hassan Ribeiro).
Da doutrina de Alexandre Morais da Rosa, para quem o Garantismo não é religião, mas limitação do poder estatal, extrai-se:
“Denúncia anônima: para se investigar alguém, numa democracia, não se pode denunciar com o “denuncismo anônimo” contemporâneo em que a polícia recebe a denúncia e se dá por satisfeita. Tanto assim que agora se fomentam programas ilegais como o do “Informante Cidadão”. É preciso que as investigações aconteçam no limite da legalidade. O processo de Inquisição acontecia com testemunhas sem rosto, sem face, sem nome, num denuncismo sem limites. Para isso a Constituição da República, em vigor há mais de vinte anos, estabeleceu claramente no art. 5.º, IV: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.” Paulo Rangel, sem aceitar investigar a qualquer preço, pontua: “Pensamos que a autoridade que determinar a instauração do procedimento criminal ou administrativo, tendo como base a denúncia anônima, ficaria sujeita, em tese, à responsabilidade criminal, nos exatos limites do art. 339 do CP. O denunciante anônimo se esconde atrás das vestes da impunidade, pois, se sua denúncia for falsa, ele não será responsabilizado. (?) O ‘denunciado’ tem o direito de demonstrar os motivos pelos quais quem o denuncia o faz: vingança, perseguição política, inveja, despeito, falta do que fazer, etc. Sendo anônima a denúncia, não há como reagir contra o denunciante. Ele fica refém.” Tourinho Filho sustenta: “se o nosso CP erigiu à categoria de crime a conduta de todo aquele que dá causa à instauração de investigação policial ou de processo judicial contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente, como poderiam os ‘denunciados’ chamar à responsabilidade o autor da delatio criminis, se esta pudesse ser anônima? A vingar entendimento diverso, será muito cômodo para os salteadores da honra alheia, vomitarem, na calada da noite, à porta das Delegacias, seus informes pérfidos e ignominiosos, de maneira atrevida, seguros, absolutamente seguros da impunidade. Se se admitisse a delatio anônima, à semelhança do que ocorreria em Veneza, ao tempo da inquisitio extraordinem, quando se permitia ao povo jogasse nas famosas ‘Bocas dos Leões’ suas denúncias anônimas, seus escritos apócrifos, a sociedade viveria em constante sobressalto, uma vez que qualquer do povo poderia sofrer o vexame de uma injusta, absurda e inverídica delação, por mero capricho, ódio, vingança ou qualquer outro sentimento subalterno.” Assim é que a denúncia anônima não pode ser tida, a priori, com fundamento suficiente, nem justifica qualquer medida direta pela autoridade policial que não a investigação preliminar e o requerimento ao Judiciário das medidas cautelares que fizerem necessárias, apresentando as investigações realizadas.”
No caso em análise, não há qualquer informação da existência de prévia investigação acerca das supostas denúncias anônimas recebidas em desfavor do acusado. Os policiais, após receberem ditas denúncias, realizaram a abordagem na residência sem qualquer autorização do proprietário ou, ainda, ordem judicial.
Dessa forma, reputo ilícitas as provas obtidas no presente feito e, por essa razão, inexistentes/nulas (art. 157, do Código de Processo Penal).
  1. Artigo MANTRA DO CRIME PERMANENTE ENTOADO PARA LEGITIMAR ILEGALIDADES NOS FLAGRANTES. Por Alexandre Morais da Rosa. Publicado na Revista Consultor Jurídico, 1 de agosto de 2014, 8h00 em http://www.conjur.com.br/2014-ago-01/limite-penal-mantra-crime-permanente-entoado-legitimar-ilegalidades-flagrantes. Pesquisa realizada no dia 23/11/2014.
O mantra jurisdicional de que em se tratando de crime permanente é desnecessário mandado para entrar na casa do suspeito é um paralogismo, a saber, um erro lógico, na sua grande maioria, de boa-fé. Manuel Atienza o define como sendo uma falácia formal, dado que aparentemente se usou uma regra de inferência válida, porém baseada em premissas equivocadas. Mas a boa-fé, no caso, não pode violar normas constitucionais. O crime acontece no espaço e tempo. Se no tempo em que houve a entrada na casa não havia crime visualizado, por dedução lógica, foi irregular. E, se foi irregular, o que se apreendeu, também o é (CF, artigo 5º, e CPP, artigo 157).
Dito de outro modo: se antes de se entrar na casa (asilo inviolável) o flagrante estava posto (manifesto), desnecessária a discussão da legalidade do crime permanente, enquanto a entrada sem flagrante torna a materialidade maculada. O deslocamento para o crime permanente é uma falácia, ainda que acolhida pela jurisprudência majoritária (STF, RHC 86.082).
Isso porque nos crimes permanentes há confusão lógica na interpretação prevalente. De fato, o art. 303 do CPP autoriza a prisão em flagrante nos crimes permanentes enquanto não cessada a permanência. Entretanto, a permanência deve ser anterior à violação de direitos. Dito diretamente: deve ser posta e não pressuposta/imaginada. Não basta, por exemplo, que o agente estatal afirme ter recebido uma ligação anônima, sem que indique quem fez a denúncia, nem mesmo o número de telefone, dizendo que havia chegado droga, na casa “x”, bem como que “acharam” que havia droga porque era um traficante conhecido, muito menos que pelo comportamento do agente “parecia” que havia droga. É preciso que o flagrante esteja visualizado ex ante. Inexiste flagrante permanente imaginado. Assim é que a atuação policial será abusiva e inconstitucional, por violação do domicílio do agente, quando movida pelo imaginário, mesmo confirmado posteriormente. A materialidade estará contaminada pelos frutos da árvore envenenada.
Embora seja uma prática rotineira a violação da casa de pessoas pobres, porque a polícia não entra assim em moradores das classes ditas altas, não se pode continuar tolerando a arbitrariedade.
Desde há muito se sabe — e os policiais não podem desconhecer a lei — que não se pode entrar na casa de ninguém (CPP, art. 293), pobre ou rico – sem mandado judicial, salvo na hipótese de flagrante próprio. Nem se diga que depois se verificou o flagrante porque quando ele se deu já havia contaminação pela entrada inconstitucional no domicílio. Castanho de Carvalho aponta:
“Em conclusão, só é possível o ingresso em domicílio alheio nas circunstâncias seguintes: à noite ou de dia, sem mandado judicial, em caso de flagrante próprio (CPP, art. 302, I e II), desastre ou prestação de socorro; e durante o dia, com mandado judicial, em todas as outras hipóteses de flagrante (CPP, art. 302, III e IV). Reconheço que a falta de estrutura do sistema investigatório brasileiro, tornando inviável o contato próximo e a tempo com a autoridade judiciária, possa fazer com que o entendimento exposto se transforme em mais um entrave burocrático à persecução penal. Não é essa a intenção, mas não se pode aceitar que a doutrina fique à mercê da boa-vontade dos governantes para dotarem a polícia dos recursos técnicos e humanos necessários para o desempenho da função”.
Cabe destacar julgado relatado pelo desembargador Geraldo Prado, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (Apelação Criminal 2009.050.07372), verdadeira aula de como se deve proceder na garantia de Direitos Fundamentais:
“PROVA ILÍCITA. INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO, INTIMIDADE, VIDA PRIVADA E DIREITO AO SILÊNCIO. CONSEQUENTE ABSOLVIÇÃO. Apelantes condenadas pela prática dos crimes definidos nos artigos 171, § 2.º, inciso V, na forma do artigo 14, inciso II, 299 e 340, todos do Código Penal. Prova ilícita. Ingresso indevido no quarto de hospedagem das acusadas. Inviolabilidade de domicílio, da intimidade e da vida privada (artigo 5.º, incisos X e XI, da Constituição da República). Rés que não foram informadas de seu direito ao silêncio (artigo 5.º, inciso LXIII, da Constituição da República). Apreensão dos bens falsamente furtados, portanto, ilícita. Prova oral que, decorrente exclusivamente dessa apreensão, também se revela ilícita. Desaparecimento da materialidade do crime. Absolvição.”
Consta do voto:
“O ingresso não pode decorrer de um estado de ânimo do agente estatal no exercício do poder de polícia. Ao revés, é necessário que fique demonstrada a fundada – e não simplesmente íntima – suspeita de que um crime esteja sendo praticado no interior da casa em que se pretende ingressar e que o ingresso tenha justamente o propósito de evitar que esse crime se consume. Se assim não fosse, seria permitido ingressar nas casas alheias, de forma aleatória, até encontrar substrato fático, consistente em flagrante delito, capaz de ensejar a formal instauração de procedimento investigatório criminal. Mais que isso, seria incentivar que a autoridade policial assim fizesse e, com a intenção de se livrar de uma eventual imputação de abuso de autoridade, encontrasse à força o estado de flagrância no domicílio indevidamente violado.”
Assim é que não se podem tolerar violações de Direitos Fundamentais em nome do resultado, pois pelo mesmo argumento seria legítima a tortura, a qual, no fundo não é tão diferente da ação iniciada exclusivamente por denúncia anônima, à margem da legalidade, e com franca violação dos Direitos Fundamentais.
Respeito às regras do jogo processual. Nem mais, nem menos.
Por tais razões, diante das condições em que a materialidade continua sendo apreendida neste país, em franca violação dos direitos fundamentais, a prova deve ser declarada ilícita, especialmente nos casos de ilegal denúncia anônima, bem assim quando a atuação dos agentes do Estado acontece sem mandado judicial, salvo no caso de fragrante posto, implicando, pois, na ilegalidade da apreensão e, por via de consequência, da ausência de materialidade na maioria dos casos em que se tiver coragem. Também é ilegal, após a prisão em flagrante, conduzir-se o sujeito até sua residência, sem manifestação do defensor, dada a intimidação ambiental e constrangimento que a prisão proporciona. Não se pode acovardar em nome do resultado, uma das faces do populismo penal e do mantra do crime permanente. A função do Judiciário é de garantia das regras do jogo, saindo do transe que o mantra proporciona.
DISPOSITIVO
            Pelos fundamentos expostos, deixo de homologar o auto de prisão.
            Sirva uma via desta decisão como ALVARÁ DE SOLTURA.
            Considerando que porte de telefone celular e de R$ 15,00 (quinze reais) não é crime e que a apreensão desses bens não foi justificada, não houve requerimento da autoridade policial ou Ministério Público que a eles digam respeito, nem qualquer mandado judicial foi expedido determinando tais apreensões, determino a devolução ao seus proprietários.
            Apresentem-se os autos conclusos ao Juiz de Direito titular da Vara Penal.
            Dê-se ciência do Ministério Público.
             Paragominas, 15 de agosto de 2015.
Andrea Ferreira Bispo
Juíza de Direito
Plantão de 15 e 16/08/2015

Acessado e disponível na Internet em 22/08/2015 no endereço -
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