"Eu não recearia muito as más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Não há texto de lei que não deixe campo à interpretação.

A lei é morta. O magistrado vivo. É uma grande vantagem que ele tem sobre ela" - Anatole France

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Legalidade em xeque: a discussão no STF sobre a prescrição penal

DIREITO DE DEFESA

Legalidade em xeque: a discussão no STF sobre a prescrição penal





Ontem foi aberto o Ano Judiciário no Supremo Tribunal Federal. Ano que promete interessantes debates na corte sobre questões polêmicas e sensíveis em matéria penal, como a possibilidade do principio da insignificância ser aplicado a crimes patrimoniais qualificados[1] e a constitucionalidade da criminalização do porte de entorpecentes para uso próprio[2].
Dentre esses, um chama a atenção: a discussão sobre os contornos da prescrição da pretensão executória no direito penal[3]. A questão pode parecer árida, e excessivamente abstrata, mas sua repercussão para o princípio da legalidade é por demais importante para que deixe de ser compreendida e acompanhada com apreensão.
Antes, alguns esclarecimentos.
A prescrição é a perda do direito do Estado de julgar alguém ou de aplicar uma pena pelo decurso do tempo. O Poder Público, diante da suspeita da prática de um delito, tem um prazo para exercer seu poder punitivo. Não pode manter a ameaça de um processo ou de uma sanção sobre um indivíduo pela eternidade, perenizando a angústia do réu ou investigado. Ou bem julga e executa, ou perde o direito de punir. Como afirmava Aliomar Baleeiro: “não há fomento de utilidade social em punir-se o crime já esquecido”[4]. Em um sentido normativo, Machado aponta que a prescrição decorre da reconhecida ineficácia da pena, nesses casos, para atender ao fim estipulado pela ordem democrática, e “não deve ser aplicada por constituir um violação da dignidade da pessoa humana”[5]
Nosso direito prevê duas hipóteses de prescrição. A primeira, a prescrição da pretensão punitiva, é a perda do direito de julgar alguém pela morosidade do processo. Passado o prazo legal sem que o processo termine[6], extingue-se a punibilidade e os autos são arquivados, preservando-se a primariedade do réu.
A segunda é a prescrição da pretensão executória. Ocorre quando o réu já foi julgado, sentenciado, mas o Estado deixa de iniciar a execução da pena, seja pela fuga do réu, ou seja por qualquer outro motivo similar. Assim, uma vez foragido o réu, e decorrido o período legal, perde-se o direito de aplicar a pena, de sancionar o condenado.
A discussão no STF gira em torno desta última espécie de prescrição, da pretensão executória.
O Código Penal regula esta prescrição em seus artigos 110 e 112. Como dito: uma vez condenado o réu, o Estado tem um prazo para iniciar a execução da pena. Passado o prazo, a punibilidade é extinta.
A questão controversa: a partir de quando se conta tal prazo? A partir de que momento o Estado tem o dever de executar a pena, sob pena de prescrição, da perda do direito de punir?
A lei fixa dois momentos: (i) a partir do “transito em julgado para a acusação” e (ii) do dia em que se “interrompe a execução[7]. O que importa, no presente caso, é a primeira hipótese: o prazo de prescrição começa a correr a partir da data em que o réu é condenado e a acusação se conforma com a pena fixada, deixando de questionar sua extensão.  A partir desse momento, a pena transitou em julgado para a acusação, que dela não pode mais recorrer. Nesse instante, ou o Estado inicia a execução da pena, ou começa a correr o prazo prescricional.
O problema concreto surge nos casos em que a defesa recorre desta condenação. Nesse caso, a pena transita em julgado para a acusação, mas não para a defesa. A pena não pode mais ser aumentada, mas pode ser reduzida ou extinta, caso o réu ganhe seu recurso.
Nessa situação, segundo decisão conhecida do STF (HC 84.078, Rel. Min. Eros Grau), o Estado não pode iniciar a execução da pena em homenagem ao principio da presunção da inocência. Se existe um recurso da defesa, a condenação não é definitiva, e enquanto ela não for definitiva, a sanção não pode ser aplicada. No entanto, segundo a lei, começa a correr o prazo de prescrição da pretensão executória. Assim, a partir do trânsito em julgado para a acusação o Poder Público deveria executar a sanção, sob pena de perder seu direito de punir. Por outro lado, não pode iniciar esta execução antes do julgamento final  do recurso da defesa e da condenação irrecorrível.
Diante disso, alguns tribunais tem entendido que a prescrição da pretensão executória não tem início no momento do trânsito em julgado para a acusação, mas apenas quando a decisão é definitiva para ambas as partes, quando se torna irrecorrível para todos. Como apenas a partir desse momento o Estado pode executar a pena, seria legítimo que o prazo de prescrição começasse a correr somente nesse instante. Não seria possível penalizar o Estado por inércia se a ele não é conferido o poder de agir.
A construção parece correta sob a perspectiva lógica. Mas esbarra em um obstáculo intransponível: a lei. Como dito, o Código Penal é claro ao fixar o inicio do prazo da prescrição: o trânsito em julgado para a acusação. Não há lacuna, dúvida, zona cinzenta onde exista um espaço de interpretação. É o teor literal, claro expresso.
Em direito penal, a legalidade é a âncora do sistema, da segurança jurídica. É o antídoto contra o arbítrio. Von Lizst, no século XIX, já apontava que o Código Penal é a carta magna do criminoso, pois fixa os limites da atuação estatal[8]. Por mais grave e intolerável que seja uma conduta, os contornos de sua punição serão sempre aqueles previstos na lei. Para Hassemer, o princípio da legalidade se converteu em um dos símbolos mais característicos do Estado de Direito, no qual se concentram as esperanças de que tanto o sistema penal seja transparente, controlável e sincero[9].
Sob esse prisma deve ser analisada a questão posta. A norma sobre prescrição é de direito penal material,  sobre a qual incide, com toda a força, o limite da legalidade. Em tal campo, inadmissível a analogia, a extensão dos efeitos legais para além dos contornos literais, muito menos a interpretação contrária ao sentido expresso dos dispositivos.
Assim, por mais que as regras legais da prescrição executória estejam equivocadas e mal redigidas — e ao nosso ver estão — ainda assim, é a lei. Mais: é a lei penal. Se ela é falha, que o legislador seja instado a modifica-la, aprimorá-la. A desconsideração de seu texto, ainda mais em prejuízo do réu, não parece a melhor saída para corrigir seus defeitos.
Não se sustente que a redação legal sobre a prescrição executória contraria o direito de punir, previsto na Constituição. Os dispositivos que tratam do tema, ainda que sejam problemáticos, não impedem a punição, mas apenas a postergam ou a tornam mais difícil em certos casos, quando a morosidade do próprio Estado em julgar o recurso da defesa acaba por extinguir a punibilidade.
Mais uma vez, não se trata aqui de defender o texto legal ,que apresenta problemas claros. Se trata, antes de tudo, de evitar um perigoso precedente de relativização da legalidade penal contra o réu. Um precedente, sem dúvida, bem intencionado, de boa fé, voltado para um objetivo correto. Mas um precedente que enfraquece a ideia de legalidade, que pode ser citado no futuro, para justificar decisões arbitrárias de um tribunal talvez menos comprometido com os valores democráticos do que o atual. Admitir a interpretação contra legem, em desfavor do acusado, é abrir uma porta talvez sensível demais em um Estado de Direito jovem demais.
Como dizia Beccaria, “a crueldade dos tiranos é proporcional, não às suas forças, mas aos obstáculos que se lhes opõe”. E o maior deles é a legalidade. Deixá-la em pé é a maior defesa institucional contra riscos aventureiros e totalitários, que, se não estranhos ao nosso passado, deveriam ser inadmissíveis em nosso futuro.  

[1] Discussão nos autos do HC 123734, com julgamento suspenso, de relatoria do e.Ministro Roberto Barroso, cujo voto em favor da necessidade da observância da razoabilidade e da proporcionalidade da incidência do direito penal nestes casos é digno de nota, proferido em 10.12.2014.
[2] Recurso Extraordinário 635.659, com repercussão geral, de relatoria do e. Min. Gilmar Mendes
[3] AI 794.971, em trâmite no STF
[4] AMARAL JR., José Levi Mello do . Memoria jurisprudencial: Ministro Aliomar Baleeiro. Brasilia: STF, 2006, p.119
[5] MACHADO, Fábio Guedes de Paula. Prescrição penal. São Paulo: RT, 2000, p.205.
[6] Ou sem que ocorra alguma causa suspensiva ou interruptiva
[7] Salvo quando o tempo da interrupção deva computar-se na pena
[8] VON LISZT, Franz. Tratado de direito penal alemão. Briguiet: Rio de Janeiro, 1899, p.7.
[9] HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y responsabilidad. Temis: Bogotá, 1999, p.5.


 é advogado e professor de Direito Penal na USP. Foi membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e secretário de Reforma do Judiciário, ambos do Ministério da Justiça.

Revista Consultor Jurídico, 3 de fevereiro de 2015, 8h05

Advogado que criticou juiz no Twitter é absolvido do crime de injúria

FATO INVERÍDICO

Advogado que criticou juiz no Twitter é absolvido do crime de injúria




A tipificação do delito de injúria diz respeito à chamada honra subjetiva; ou seja, ao conceito, em sentido amplo, que o ofendido tem de si mesmo, com a imputação de atributos pejorativos. O fundamento levou a Turma Recursal Criminal dos Juizados Especiais Criminais do Rio Grande do Sul a absolverum advogado que criticou, via Twitter, a postura de um juiz durante palestra para estudantes no interior gaúcho.
No primeiro grau, ele foi condenado pelo delito de injúria, por afirmar que o juiz teria praticado "tremendo abuso de autoridade" ao mandar apreender duas menores que faziam bagunça no local da palestra. Ficou provado, no entanto, que o juiz apenas pedira ao guarda que "tomasse as medidas cabíveis" exigidas naquela situação, tanto que não aconteceu a apreensão.
Para o relator do recurso-crime no colegiado, juiz Edson Jorge Cechet, a conduta do advogado é atípica, pois não atribuiu ao magistrado nenhuma qualidade pejorativa capaz de ofender sua dignidade e decoro. Ao contrário, a conduta resumiu-se, tão somente, a noticiar fato que entendia injusto.
Citando a doutrina de Rogério Greco, o relator escreveu no acórdão que, na injúria, ‘‘não se imputa fato determinado, mas se formula juízos de valor, exteriorizando-se qualidades negativas ou defeitos que importem menoscabo, ultraje ou vilipêndio de alguém’’. O doutrinador exemplifica: ‘‘chamar alguém de ‘bicheiro’ configura injúria, mas dizer, à terceira pessoa, que a vítima está ‘bancando o jogo do bicho’, caracteriza difamação’’.
Cechet, no entanto, concordou com a juíza de que o réu deveria se inteirar melhor dos fatos antes de opinar. ‘‘Certo é que o acusado poderia, ou, quiçá, deveria abster-se de emitir sua opinião, pois, segundo ele próprio, não possuía conhecimento real do fato e pronunciou-se com base em informações de terceiros’’, escreveu no acórdão. A decisão foi tomada na sessão de 26 de janeiro.
O caso
As informações do processo dão conta de que tudo começou no dia 30 de junho de 2011, por volta das 10 h, quando o juiz Luís Filipe Lemos Almeida, então titular da Comarca de São Francisco de Assis, ministrava palestra a estudantes do ensino fundamental no Centro de Tradições Gaúchas (CTG) ‘‘Negrinho do Pastoreio’’. Num dado momento, incomodado com a ‘‘perturbação da tranquilidade’’ por duas meninas, ele pediu ao guarda que as identificasse, bem como adotasse os ‘‘procedimentos legais’’. As menores foram, então, retiradas do recinto e encaminhadas para o Conselho Tutelar.

Quatro dias depois, o advogado José Amélio Ucha Ribeiro Filho, que tem escritório na Comarca de Santiago, comentou o fato em sua conta no Twitter. Se expressou exatamente nestes termos: ‘‘Ato do magistrado de São Chico em apreender menores por perturbação em palestra sua, se for realmente isso, é tremendo abuso de autoridade’’.
Em face deste post, o advogado acabou denunciado pelo Ministério Público estadual perante a Vara Criminal de Santiago, pelo crime de injúria. Como o crime, segundo o MP, foi praticado contra funcionário público e por meio que facilitou a divulgação da injúria, o advogado acabou incurso nas sanções do artigo 140, caput, combinado com o artigo 141, incisos II e III, ambos do Código Penal.
Ouvido em juízo, o advogado disse que publicou sua opinião no Twitter para que outras pessoas se manifestassem sobre o caso, já que não concordava com a atitude do julgador. Esclareceu que não teve a intenção de denegrir a imagem de ninguém, nem esperava que este comentário causasse tamanha repercussão.
Sentença condenatória
A juíza Cecília Laranja da Fonseca Bonotto se convenceu, com base na prova testemunhal, que o juiz não determinou a apreensão das menores que perturbavam sua palestra, como replicou o advogado também em seu blog.

Em face deste entendimento, o teor do texto publicado, segundo ela, torna certa a caracterização do tipo penal apontado pelo MP. Afinal, ‘‘escancara’’ o visível propósito de injuriar o decoro e a dignidade da vítima, ferir a sua reputação e deflagrar sua imagem perante à comunidade.
Para a titular da Vara Criminal de Santiago, as palavras empregadas pelo advogado atingiram o apreço e o conceito social do magistrado, sendo indiscutível a intenção de emitir juízo de valor depreciativo. É que o acusado, durante o interrogatório, admitiu que sequer checou a veracidade da informação que lhe foi passada sobre o episódio. Ou seja, não conhecia tudo sobre os fatos e, já de ‘‘plano’’, comentou sobre o suposto ‘‘abuso’’ praticado.
Por fim, a julgadora lembrou que o réu goza de elevado prestígio na comunidade e escreve em um jornal de grande circulação na região, circunstâncias que o obrigariam a ter mais zelo nas informações que divulga, pois é formador de opinião. ‘‘Ainda, sendo um profissional da área jurídica, tinha o conhecimento mais aprofundado sobre as consequências de uma publicação indevida e irresponsável, fato que aumenta o seu dever de cuidado e que aumenta o seu grau de culpabilidade’’, arrematou.
Julgada procedente a demanda, o réu foi condenado à pena de dois meses e 20 dias de detenção, em regime inicial aberto. Na dosimetria, a pena foi substituída por prestação pecuniária no valor de dois salários-mínimos.
Clique aqui para ler a sentença.
Clique aqui para ler o acórdão.
 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.


Revista Consultor Jurídico, 3 de fevereiro de 2015, 21h01

Servidor público que utiliza carro próprio tem direito a auxílio-transporte

DIREITOS IGUAIS

Servidor público que utiliza carro próprio tem direito a auxílio-transporte





O servidor público que utiliza veículo próprio para trabalhar deve receber auxílio transporte no valor do deslocamento efetuado como se o trajeto fosse feito em transporte coletivo. A decisão é do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que determinou que o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP) pague o auxílio a um servidor.
Em primeiro grau, um Mandado de Segurança foi julgada procedente para autorizar a concessão de auxílio-transporte, previsto na Medida Provisória 2.165-36/2001, no valor correspondente ao que o impetrante teria direito no seu deslocamento residência-trabalho-residência, se o trajeto fosse feito por transporte coletivo.
Ambas as partes recorreram. O IFSP alegando que o benefício não era devido e o servidor público pedindo a cobertura integral das despesas feitas com deslocamento. Ao analisar o mérito, o relator, desembargador Nino Toldo, manteve a sentença.
De acordo com ele, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça orienta que, mesmo aqueles servidores públicos que se utilizam de outras formas de transporte que não o coletivo, como, por exemplo, o veículo próprio, também têm direito à percepção do auxílio-transporte. Entendimento contrário seria discriminar injustificadamente — com base na mera natureza do transporte utilizado — aqueles que optam por deslocar-se até o local de trabalho com transporte próprio ou que não têm outra alternativa de locomoção.
Já o critério para o valor da indenização deve ser o valor correspondente àquele gasto com o uso do transporte coletivo. Assim, ficou mantida a sentença de primeiro grau por ter resguardado o direito líquido e certo do impetrante em sua exata medida. Com informações da Assessoria de Imprensa do TRF-3.
Processo 0015447-22.2012.4.03.6100/SP


Revista Consultor Jurídico, 3 de fevereiro de 2015, 16h10