"Eu não recearia muito as más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Não há texto de lei que não deixe campo à interpretação.

A lei é morta. O magistrado vivo. É uma grande vantagem que ele tem sobre ela" - Anatole France

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Juízes do TJ-RJ trocam acusações por meio de despachos

Juízes do TJ-RJ trocam acusações por meio de despachos


Um processo por dano moral e material em tramitação na 27ª Vara Cível do Rio de Janeiro acabou em uma troca de acusações, por meio de despachos, entre os juízes envolvidos. Tudo começou após o juiz substituto Daniel Vianna Vargas se negar dar conclusão à demanda por causa do excesso de trabalho.
O protesto foi por escrito, no documento que deveria constar uma resposta às petições das partes. No texto, o magistrado determinou ainda a abertura de um procedimento contra o responsável pelo cartório daquela unidade judicial. O motivo: ter remetido a ele mais processos para finalização. 
No despacho, datado do último dia 1º de abril, Vargas afirmou que “esteve em exercício cumulativo nesta 27ª Vara Cível durante o mês de março por designação da presidência do Tribunal de Justiça em razão de gozo de férias do titular”, a juíza Adriana Therezinha Souto Castanho de Carvalho.
Ele prosseguiu alegando que de uma “simples análise dos indicadores de acompanhamento do TJ infere-se que a serventia possuía cerca de 4.600 processos paralisados há mais de 60 dias nos meses de janeiro e fevereiro” e que “este número foi reduzido para cerca de 4.300 processos ao final do mês de março”.
O juiz contou que até o dia 29 de março mais de 600 processos foram conclusos para ele e que ele proferiu “número similar de decisões à média da serventia e mais de 60% do número médio de sentenças”.
Vargas também relatou que nos dias 30 e 31 de março recebeu mais de 200 processos para dar conclusão, “apesar de ter alertado a chefe do cartório da exiguidade do prazo e da ausência de justificativa para a abertura da conclusão, uma vez que os feitos se encontravam nesta situação”. Na avaliação dele, a atitude da servidora representa “nítida burla ao princípio do juiz natural”.
“Sendo certo que a partir do dia 1º de abril falece competência a este magistrado para cognição e julgamento dos feitos, devolvo os autos para apreciação pela juíza titular, remetendo cópia do presente à ECGJ [Corregedoria-Geral do TJ-RJ] e informando a propositura de representação em face da chefe do cartório”, determinou no despacho.
Réplica
Ao retornar de férias, Adriana não gostou do ocorrido e decidiu responder o juiz, também por despacho. No documento com data do dia 2 de abril, a juíza confirmou que Vargas “de fato, determinou que os processos destinados à conclusão passassem a constar, junto ao sistema informatizado, no campo 'aguardando conclusão'” e que “tal campo processual jamais foi utilizado por esta magistrada titular”.

Ela relatou que “apreensivas com a inédita situação”, as assessoras da juíza “passaram, dentro de seus conhecimentos técnicos, a proferir minutas de despachos, decisões e sentenças de menor complexidade, colocando-as para apreciação do magistrado então em exercício”.
Então ela acusou: “Estes foram os únicos processos despachados durante todo o mês. Logo, se foram despachados 600 processos, estes o foram pelas servidoras, vez que o magistrado apenas concordou com os despachos, decisões e sentenças proferidas, apondo nestas sua assinatura. Os demais processos, os quais as duas assessoras não possuíam condições técnicas para analisar, restaram, conforme se pode extrair do sistema informatizado do tribunal, paralisados desde a data que deveriam ter sido remetidos à conclusão, no campo virtual 'aguardando conclusão'. Salienta-se que tais processos passaram a constar do referido campo desde 1º de março de 2015".
No despacho, a juíza revogou a decisão do juiz de abrir procedimento administrativo contra a chefe do cartório por considerar que “o cumprimento à consolidação normativa e aos atos da presidência do Tribunal não pode ser tido como falta funcional”. Adriana também comunicou os fatos à Corregedoria de Justiça e pediu a abertura de procedimento administrativo contra Vargas.
O processo
A discussão ocorreu em um processo movido por um jornalista e sua empresa contra um banco em razão de um cheque descontado indevidamente na conta da pessoa jurídica. A ação já havia sido julgada, com sentença contra a instituição financeira confirmada em segunda instância.

O processo em curso na 27ª Vara Cível é de execução. O advogado Alberto Aparício Neto, do escritório Aparício e Neto Advogados, que defende o jornalista conta que apresentou uma petição, em dezembro, para pedir o levantamento da indenização, que já havia sido depositada em juízo pelo banco.
Como depositou o valor em dobro, a instituição financeira também fez nova petição para requerer a devolução do excedente. Eram essas as questões que a 27ª Vara Cível deveria responder. Neto lamentou os despachos que, em nenhum momento, fizeram menção aos pedidos dos jurisdicionados. “Os juízes ignoraram as partes”, criticou.
Procurada pela ConJur, a Corregedoria-Geral de Justiça informou que a questão lhe foi submetida recentemente e que os fatos estão sendo apurados. Os juízes também foram procurados, por meio da assessoria de imprensa do TJ-RJ, que não deu retorno até a conclusão desta reportagem.
Clique aqui para ler o despacho do juiz substituto.
Clique aqui para ler o despacho da juíza titular.
Processo 0423367-63.201.8.19.0001
 é correspondente da ConJur no Rio de Janeiro.

Revista Consultor Jurídico, 15 de abril de 2015, 11h54

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Proibição do retrocesso social está na pauta do Supremo Tribunal Federal

OBSERVATÓRIO CONSTITUCIONAL

Proibição do retrocesso social está na pauta do Supremo Tribunal Federal





Uma questão que certamente submeterá ao Supremo Tribunal Federal o julgamento de mais um caso difícil será aquele relativo à edição das Medidas Provisórias 664 e 665, ambas editadas em 30 de dezembro de 2014, que trazem uma série de alterações no regime jurídico de benefícios da seguridade social, previstos em favor dos servidores públicos e dos trabalhadores em geral, a exemplo do seguro-desemprego, da pensão por morte, do abono salarial, do auxílio-defeso e do auxílio-doença.

Não é surpresa para ninguém que tais diplomas normativos já estejam submetidos à apreciação do STF, consoante nos evidencia a propositura da ADI 5.246 e da ADI 5.230[1]. No âmago da discussão jurídica e constitucional dessas ADIs, floresce o argumento da inconstitucionalidade das MPs com base no princípio da proibição do retrocesso social.
Esse princípio não se reveste de uma clara delimitação conceitual. Sua origem remonta à década de 1970, quando a Alemanha atravessou período de dificuldade econômica agravada pelo agigantamento do Estado Social, o que gerou forte discussão sobre a legitimidade de restringirem-se e/ou suprimirem-se benefícios sociais assegurados aos cidadãos. O debate em torno do princípio da proibição do retrocesso social (ou da irreversibilidade dos direitos fundamentais) foi lá intensificado, sobretudo porque, diferentemente de outros sistemas constitucionais, a Lei Fundamental de Bonn não previu expressamente nenhum direito fundamental social, e o desenvolvimento desse princípio foi uma tentativa de resposta e de defesa dos críticos[2].
Desse modo, na linha de explicação de Ingo W. Sarlet, o princípio da proibição de retrocesso social significaria “toda e qualquer forma de proteção de direitos fundamentais em face de medidas do poder público, com destaque para o legislador e o administrador, que tenham por escopo a supressão ou mesmo restrição de direitos fundamentais (sejam eles sociais, ou não)”[3]. Podemos considerá-lo, portanto, como um direito constitucional de resistência que se opõe à margem de conformação do legislador quanto à reversibilidade de leis concessivas de benefícios sociais.
Por outro lado, no Brasil, a discussão sobre a vedação do retrocesso social há de transcender a exclusividade das bancas acadêmicas para ingressar nos campos de batalha judicial, onde o STF deverá posicionar-se definitivamente sobre sua existência em matéria de direitos sociais, sobretudo por conta das ADIs 5.246 e 5.230 referidas.
É fato que não será a primeira vez em que o STF analisará essa questão. Na ADI 3.105 (rel. min. Cezar Peluso, j. 18/08/2004)[4], em que considerou constitucional a Emenda 41, que autorizou a instituição de contribuição previdenciária sobre os proventos dos servidores inativos, o ministro Celso de Mello analisou o âmbito de incidência do princípio da proibição do retrocesso e, com base nele, votou pela inconstitucionalidade da tributação: a conquista da garantia de não mais contribuir para o regime previdenciário com o ato de aposentação não poderia ser suprimida para obrigar os aposentados e pensionistas a continuarem como contribuintes do sistema, sob pena de retrocesso ilegítimo desse direito.
Nesse julgado, o ministro Celso afirmou que “a cláusula que proíbe o retrocesso em matéria social traduz, no processo de sua concretização, verdadeira dimensão negativa pertinente aos direitos sociais de natureza prestacional, impedindo, em consequência, que os níveis de concretização dessas prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser reduzidos ou suprimidos”, salvo na hipótese da implementação de políticas compensatórias.
Nas ADIs 5.246 e 5.230, conforme mencionamos, a proibição do retrocesso figura como argumento central da suposta inconstitucionalidade material das MPs. Em ambas as ações, os requerentes fundamentaram a pretensão de inconstitucionalidade nesse princípio e se apoiaram no voto do ministro Celso de Mello proferido na ADI 3.105. Contudo, há pelo menos três aspectos que, a nosso ver, merecem destaque.
Primeiro, o argumento comparativista utilizado pelo ministro Celso de Mello parece não mais se sustentar nos dias de hoje, seja porque o próprio J. J. Gomes Canotilho, jurista referido para atribuir autoridade ao argumento de inconstitucionalidade, mudou de posição em relação à eficácia normativa do princípio da proibição do retrocesso, seja porque também o Tribunal Constitucional de Portugal mudou de orientação em face da crise econômica e financeira deflagrada em Portugal nos idos de 2010-2011.
Com efeito, em estudos mais recentes, J. J. Gomes Canotilho[5] foi suficientemente claro em sua manifestação contrária a uma concepção rígida e inflexível do princípio da vedação do retrocesso, rompendo com a tese outrora defendida:
“O rígido princípio da ‘não reversibilidade’ ou, formulação marcadamente ideológica, o ‘princípio da proibição da evolução reaccionária’ pressupunha um progresso, uma direcção e uma meta emancipatória e unilateralmente definidas: aumento contínuo de prestações sociais. Deve relativizar-se este discurso que nós próprios enfatizámos noutros trabalhos. ‘A dramática aceitação de ‘menos trabalho e menos salário, mas trabalho e salário e para todos’, o desafio da bancarrota da previdência social, o desemprego duradouro, parecem apontar para a insustentabilidade do princípio da não reversibilidade social.”
Vale ressaltar que J. J. Gomes Canotilho não está sozinho em sua posição. Dentre outros, podemos lembrar José Reis Novais[6], quem afirma que o princípio da proibição do retrocesso social “não tem, pura e simplesmente, nem arrimo positivo em qualquer ordem constitucional, nem sustentação dogmática, nem justificação ou apoio em quaisquer critérios de simples razoabilidade”, porque pressupõe uma “concepção determinista da história” e um “optimismo inabalável”.
O Tribunal Constitucional de Portugal, por sua vez, ao desenvolver a denominada “jurisprudência da crise”[7], evoluiu substancialmente em seus posicionamentos, de modo que vem com certa cautela tolerando restrições a benefícios sociais anteriormente conquistados em face da crise econômica e financeira.
Nesse contexto de emergência financeira, conforme se pode observar nos Acórdãos 399/2010, 396/2011 e 353/2012, o Tribunal Constitucional admitiu a redução salarial progressiva de 3,5% até 10% dos servidores públicos, a suspensão do adicional de férias e do décimo terceiro e a própria redução dos vencimentos dos servidores em até 25%.
A mudança de opinião de J. J. Gomes Canotilho, do Tribunal Constitucional e de outros constitucionalistas, que recentemente enfrentaram esse delicado tema em face da adversa conjuntura político-econômica de Portugal, demonstra, para além do erro ou do acerto, que a norma constitucional deve ser contextualmente interpretada de acordo com suas possibilidades fáticas e jurídicas (a velha lição de Alexy e de Dworkin, cada um a seu modo).
Segundo, o conceito de “crise”, que implícita ou explicitamente está sempre presente no discurso político, perpassa essas sensíveis discussões jurídicas e constitucionais. Historicamente, tal qual nos faz compreender o historiador alemão, Reinhart Koselleck[8], o conceito de “crise”, cuja semântica se reconduz à noção grega de “decisões definitivas e irrevogáveis” e ainda de “momento crítico de uma doença”, é retoricamente (re)ativado no intuito de legitimar “decisões adequadas” a situações adversas em curtíssimo espaço de tempo, diante da incerteza do futuro e da necessidade de prevenir-se o pior.
O problema, contudo, é que a noção de crise não é facilmente apreensível e, ao mesmo tempo, parece estar em evidência em todas as dimensões da organização da sociedade. Destarte, para alguns, é tão fácil utilizá-la, que se chega a ponto de esvaziá-la de sentido (crise moral, econômica, política, constitucional, social, religiosa, institucional, do Legislativo, do Executivo, do Judiciário etc.). Se tudo está em crise, nada é crítico; e, portanto, está dentro da normalidade.
Dessa preocupação, extraímos duas ponderações relevantes: uma, o cuidado para não criar-se uma “metanarrativa da crise” que teria o condão de legitimar, pela simples referência ao conceito de “crise” ou de emergência, a adoção de medidas de restrição, de limitação ou até mesmo de supressão dos direitos fundamentais; duas, não se pode gerar uma carga semântica negativa tal em torno do conceito de crise, de modo que se pretenda inviabilizar qualquer medida política ou jurídica excepcional, adotada em situações de particular gravidade.
Terceiro, e em decorrência das duas observações anteriores, afigura-nos de todo recomendável procurar compreender o princípio da vedação do retrocesso como modalidade do princípio da proporcionalidade, que veda ao Estado exercer uma “proteção insuficiente” dos direitos fundamentais, conforme magistério de Gilmar Ferreira Mendes[9]. Na prática, isso significa que o princípio da proibição do retrocesso não deve constituir, em termos absolutos, um óbice intransponível às leis ou às emendas constitucionais que eventualmente venham a limitar ou a suprimir direitos sociais. No entanto, para que tais atos normativos tenham sua validade constitucional certificada, será necessário que resistam ao teste tríplice da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito).
Recorrendo mais uma vez à opinião de J. J. Gomes Canotilho, concordamos em que a não existência do princípio da vedação do retrocesso não implica conceder carta branca ao legislador para suprimir ou para restringir livremente qualquer direito social já assegurado em favor dos cidadãos. Não. Há parâmetros constitucionais que continuam a viger, dentre eles a noção de “desrazoabilidades legislativas”[10], as quais hão de se submetidas ao juízo de proporcionalidade.
Da mesma forma, essa forma de interpretação constitucional preserva a margem de conformação das leis do legislador[11], o que lhe permite, em casos específicos e sensíveis, restringir ou condicionar determinado padrão normativo já consolidado, desde que não se retroceda a um patamar inferior ao do “nível mínimo” de proteção constitucionalmente requerido e não se ofenda o princípio da proibição da proteção insuficiente[12].
Em conclusão, o que nos parece verdadeiramente fundamental é que não se possa aprioristicamente tratar qualquer lei ou emenda à Constituição como inconstitucional porque, de alguma maneira, tenha reduzido ou, até mesmo, suprimido determinado benefício social já assegurado. É necessário, isso sim, aprofundar o exame e desenvolver uma reflexão mais apurada de acordo com as situações específicas de cada caso concreto e dos benefícios em questão, a exemplo da aferição das pessoas diretamente atingidas, dos fins originalmente estabelecidos pelo legislador ao benefício, do efetivo atingimento das metas colimadas e assim por diante.
Não podemos nos esquecer, ademais, da preciosa lição de Friedrich Müller, segundo quem a interpretação constitucional decorre de um processo de interação dialética entre a norma e o fato; não pode, pois, ser empreendida sem considerar-se a realidade subjacente. Daí que não concordarmos com ideia de que o princípio da proibição do retrocesso social seja utilizado como trunfo contra toda e qualquer medida legislativa ou administrativa de restrição, de condicionamento ou de supressão de direitos sociais, por princípio.
Por outro lado, somos inteiramente a favor de que, com esses tipos de lei ou de atos, haja um controle rigoroso e estrito de sua legitimidade constitucional, reconhecendo-se, inclusive, a prevalência prima facie dos direitos fundamentais já consagrados (in dubio pro libertate). Porém, essa primazia do direito em face da política não pode impedir que se permita avaliar e concluir, em cada caso individual, se a definição tomada pela autoridade política, de fato, extrapolou (ou não) os limites constitucionais de sua respectiva margem de conformação normativa. Essa, conforme ressaltamos, será a grande questão a ser decidida pelo STF, em breve.
Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).

[1] Destacamos, ainda, que sobre a mesma temática tramitam no STF as ADIs 5232, 5234 e 5246.
[2] Cf. NOVAIS, Jorge Reis. Direitos sociais. Coimbra: Coimbra, 2010, p. 240 e ss.
[3] Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A assim designada proibição de retrocesso social e a construção de um direito constitucional comum latinoamericano.Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC. Belo Horizonte, ano 3, n. 11, jul./set. 2009.
[4] Dentre outras, podemos apontar as seguintes decisões do STF em que o princípio da proibição do retrocesso teve relevância: ARE nº 745745 AgR/MG; ARE nº 727864 AgR (Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, j. 04/11/2014, DJe-223, 12-11-2014); ARE nº 639.337-AgR (Rel. Min. Celso de Mello, j. 23-8-2011, Segunda Turma, DJE de 15-9-2011); RE nº 398.041 (Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 30-11-2006, Plenário, DJE de 19-12-2008).
[5] Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre Direitos Fundamentais. Coimbra: Almedina, 2004, p. 111.
[6]Cf. NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 244-245.
[7] Sobre tema, ver: RIBEIRO, Gonçalo de Almeida & COUTINHO, Luís Pereira. O Tribunal Constitucional e a Crise: Ensaios Críticos. Coimbra: Almedina, 2014; PINHEIRO, Alexandre Sousa. A jurisprudência da crise: Tribunal Constitucional português (2011-2013)Observatório da Jurisdição Constitucional. Ano 7, no. 1, jan./jun. 2014. Disponível em: http://ojs.idp.edu.br/index.php/observatorio/article/view/961/641.
[8] Cf. KOSELLECK, Reinhart. Crisi. In: Il Vocabolario della Modernità. Trad. Carlo Sandrelli. Bologna: Il Mulino, 2009, p. 95-109.
[9] Cf. MENDES, Gilmar Ferreira & BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 228.
[10]Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 111.
[11] Cf. QUEIROZ, Cristina. O princípio da não reversibilidade dos direitos fundamentais sociais. Coimbra: Coimbra, 2006, passim.
[12]Segundo anotou José Reis Novais, essa orientação é a que melhor se alinha com as diretrizes do Comitê para os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, que proíbe a aprovação de medidas e políticas que piorem – sem justificação razoável e proporcional – a situação dos direitos sociais. Cf. NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 242.

 é procurador do estado de Pernambuco, doutor em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB)/Università degli Studi di Firenze.
Revista Consultor Jurídico, 11 de abril de 2015, 8h00

COMENTÁRIOS DE LEITORES

1 comentário

LEGITIMAÇÃO JURISDANTESCA DA TRANSFERÊNCIA DO ÔNUS ECONÔMICO

FNeto (Funcionário público)

Os relatos da Auditoria Cidadã da Dívida demonstram como são os meandros da tal "crise" econômica oriunda das irresponsabilidades do rentismo fictício financeiro. Para se ter uma ideia, o governo estadunidense gerou, através da chamada "Quantitative easing (QE)" um salvamento dos bancos da ordem de 16 trilhões de dólares, secretamente levado a cabo pelo "Federal Reserve". Houve a criação dos chamados "Bad Banks", aos quais foram destinados os papéis podres oriundos da irresponsabilidade especulativa. Esses mecanismos de salvamento do setor financeiro, resultante da irresponsabilidade especulativa, acaba por transferir ao restante da população o ônus econômico da "crise" gerada. Documentários como "Debtocracy" e "Inside Job" (este ganhador do Oscar de melhor documentário de 2011) evidenciam como essa dinâmica imputa ao povo em geral o ônus econômico das "crises" geradas pelo setor financeiro no qual se perpetuam os bônus de riquezas multibilionárias. O exemplo equatoriano de auditoria da "dívida" pública resultou em declaração de ilegitimidade de 70% da "dívida" daquele país. Maria Lucia Fattorelli participou da Comissão oficial. Essa brasileira também foi convidada e aceitou o convite para participar da Comissão grega de auditoria da "dívida" daquele país. O art. 26 do ADCT brasileiro determina a realização de auditoria da "dívida" pública de nosso país, até hoje não realizada. A CPI da Dívida de 2010 trouxe à luz a existência de vários indícios de ilegitimidades no endividamento. A Auditoria Cidadã da Dívida demonstra como a cada ano quase 50% do Orçamento da União é destinado ao Sistema da Dívida. De modo que toda essa racionalidade de austeros ajustes imputa ao povo e ao cidadão a perda de direitos em benefício daqueles multibilionários de sempre.

Novo CPC aumenta segurança jurídica ao mudar regras da coisa julgada formal

CONSOLIDAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA

Novo CPC aumenta segurança jurídica ao mudar regras da coisa julgada formal




A coisa julgada é um dos mais antigos institutos jurídicos. Sua origem vai além da Lei das XII Tábuas e inspira-se no brocardo latino bis de eadem re ne sit actio que, traduzido livremente, significa: sobre uma mesma relação jurídica não se pode exercer duas vezes a ação da lei, isto é, o processo.
A ideia de proibição na duplicidade do exercício da atividade jurisdicional constitui o núcleo de seu sentido, motivo pelo qual já tivermos oportunidade de defini-la como uma “situação jurídica que se caracteriza pela proibição de repetição do exercício da mesma atividade jurisdicional, sobre o mesmo objeto, pelas mesmas partes (e, excepcionalmente, por terceiros), em processos futuros.”[1]
Infelizmente, talvez por culpa da técnica utilizada no CPC em vigor, no artigo 467, a coisa julgada tem sido amiúde abordada apenas sob o viés da imutabilidade e indiscutibilidade do conteúdo da decisão judicial transitada em julgada, olvidando o intérprete que a interpretação literal e isolada não é adequada na medida em que os diplomas legais pretendem funcionar como um sistema lógico e harmônico. Por consequência, de suma importância, para a correta compreensão do instituto, o que dispõem o art. 301 e seus parágrafos 1º e 3º do CPC.
A ideia de proibição de reprodução (ou repetição) está bastante clara no parágrafo primeiro do referido dispositivo legal, assim redigido: verifica-se (...) a coisa julgada quando se reproduz ação anteriormente ajuizada. No parágrafo terceiro, de forma ainda mais evidente, está dito que há coisa julgada quando se repete ação que já foi decidida.
Daí por que é possível afirmar, com toda segurança, que a coisa julgada é, na verdade, uma concretização na proibição do bis in idem. Portanto, a proibição de repetição da ação (art. 301, §§1º e 2º do CPC) e a imutabilização da decisão judicial (art. 467 do CPC) são apenas técnicas para se proibir a duplicidade do exercício da jurisdição sobre o mesmo objeto e pelas mesmas partes.
Pois bem.
A relação que se estabelece entre coisa julgada e exercício da jurisdição não é ontológica, pois aquela não é indissociável desta. Embora raros nos dias atuais, há notícias de ordenamentos jurídicos do passado que não adotavam o instituto, como os direitos norueguês e canônico.
E não sendo a coisa julgada ontologicamente ligada ao exercício da jurisdição, faz-se necessário precisar em que patamar se firma essa relação. Segundo pensamos, essa conexão é teleológica, pois a adoção do instituto, pelos diversos ordenamentos jurídicos, visa a proteção de valores socialmente relevantes.
O professor Miguel Reale, com muita precisão, demonstra a profunda relação entre as perspectivas teológica e axiológica ao afirmar que “[u]m fim outra coisa não é senão um valor jurídico posto e reconhecido como motivo de conduta. Não existe possibilidade de qualquer fenômeno jurídico sem que se manifeste este elemento de natureza axiológica, conversível em elemento teleológico.” (Filosofia do Direito. 20ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 544).
O valor jurídico protegido pela coisa julgada é, indiscutivelmente, a segurança jurídica, um dos mais importantes imperativos do Estado de Direito – o qual, numa perspectiva constitucional, situa-se para além de contornos axiológicos, possuindo inegável conteúdo normativo (art. 5o., caput, XXXIII, CRFB). Enfim, o acolhimento desse instituto visa, acima de tudo, trazer estabilidade ao exercício da jurisdição. Aliás, a segurança que o sistema imprime ao resultado do exercício da jurisdição é tamanha que a própria Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LVI, diz que nem mesmo a lei nova pode alterar a situação jurídica denominada de coisa julgada.
Assim, é correto dizer, com firmeza, que nenhuma lesão ou ameaça de lesão poderá ser excluída da apreciação do Poder Judiciário (art. 5º inciso XXXV da CF). Contudo, a jurisdição só será exercida uma única vez, senda vedada sua repetição. O instituto que proíbe essa repetição, como já se enfatizou, é a coisa julgada.
A finalidade da jurisdição é o julgamento da afirmação de uma lesão ou ameaça de lesão a direitos subjetivos, o que será feito em ambiente normativo-processual, até como forma de se assegurar a legitimidade dela própria e do seu resultado (tutela jurisdicional). Naquilo que interessa, o processo estabelecerá uma relação lógica com o mérito, que é de continência: o processo, como forma, é o continente; o mérito, o conteúdo.
Tendo em vista essa duplicidade lógica (entre forma e conteúdo), o exercício da jurisdição não se restringirá à análise apenas do mérito, mas também da forma. Erros formais que descaracterizem o devido processo legal (art. 5º inciso LV da CF) podem impedir o magistrado de julgar o mérito. Nada obstante deva inexoravelmente ser priorizada na aludida relação o mérito – o novo CPC evidencia essa conclusão ao instituir, como norma fundamental, a primazia do julgamento do mérito (art. 4o.) –, não se pode descartar a indispensabilidade de uma forma adequada, sob pena de prejuízos no próprio julgamento.
Exatamente por isso os doutrinadores modernos reconhecem a existência de dois tipos diversos de sentenças: a) a definitiva, que julga o mérito; e b) a terminativa, que julga a forma (pressupostos processuais e condições da ação). A consequência inevitável dessa dualidade também reflete no instituto da res iudicata, gerando duas espécies distintas: a) a coisa julgada formal e b) a coisa julgada material.
Com base no conceito acima apresentado, é possível extrair duas conclusões: a) a coisa julgada material é a situação jurídica que se caracteriza pela proibição de repetição do exercício da mesma atividade jurisdicional, sobre decisão de mérito, pelas mesmas partes (e, excepcionalmente, por terceiros), em processos futuros (art. 334, §§ 1º e 4º e art. 499 do CPC); b) a coisa julgada formal, por seu turno, representa “a situação jurídica que se caracteriza pela proibição da repetição do exercício da mesma atividade jurisdicional, sobre decisão terminativa, pelas mesmas partes (e, excepcionalmente, por terceiros), em processos futuros (art. 334, §§ 1º e 4º, art. 483, §1º e art. 499, todos do CPC).[2]
Como espécies do mesmo gênero, ambas guardam pontos de identidade e de diferenciação. A diferença reside no conteúdo da decisão judicial: a coisa julgada material incide sobre decisões de mérito, chamadas definitivas; a coisa julgada formal acoberta decisões relativas a questões formais, chamadas de terminativas. O ponto de identidade é a capacidade que têm de produzirem efeitos externos ao processo em que foi proferida a decisão judicial. Esta eficácia externa impede a repetição do exercício da mesma atividade jurisdicional, em processos futuros, sobre o mesmo objeto, que poderá ser o mérito, no caso de coisa julgada material, ou uma questão formal (como um pressuposto processual), no caso de coisa julgada formal.
Na vigência do CPC/73 foi desenvolvido um conceito equivocado de coisa julgada, que a equiparava a preclusão. Combatemos essa doutrina pelos seguintes motivos: a) porque profliga a essência do conceito de coisa julgada, que se destina a produzir efeitos externos ao processo (ou fase do processo) em que foi proferida a decisão judicial; b) porque confunde os conceitos de preclusão e de coisa julgada; c) porque se vincula ao preconceito de que as sentenças terminativas não podem produzir efeitos para além do processo em que foram proferidas.
O novo Código de Processo Civil, recentemente sancionado pela Presidente da República, acolheu a tese desenvolvida por um dos autores deste artigo[3] e desvinculou-se do mito de que as sentenças terminativas – e, portanto, a imutabildade que lhe é conferida com o trânsito em julgado – não podem gerar efeitos extraprocessuais. Nesse sentido, a norma parágrafo 1º do artigo 486 do novo texto, preceitua que “[n]o caso de extinção em razão de litispendência e nos casos dos incisos I, IV, VI e VII do art. 485, a propositura da nova ação depende da correção do vício que levou à sentença sem resolução do mérito”.
Ora, proibição de repetição da ação, com o mesmo vício que foi declarado em processo anterior, decorre, sem sombra de dúvida, da autoridade da coisa julgada formal. É imperativo concluir que, após a entrada em vigor do novo CPC, ficarão imutabilizadas pela coisa julgada formal as sentenças terminativas que tenham por conteúdo: a) o indeferimento da petição inicial; b) a falta dos pressupostos processuais; c) a legitimidade e o interesse processual; ou d) o acolhimento da alegação da existência de convenção de arbitragem ou quando o juízo arbitral reconhecer sua competência.
Portanto, com a promulgação do novo CPC ganha força legal essa tese que já vinha recebendo reconhecimento da jurisprudência, em apreço substancial à segurança jurídica. Ponto para a democracia!
[1] MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro. Coisa julgada. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006. p. 29.
[2] MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro. Coisa julgada. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006. Sobretudo, verificar o Capítulo 4.
[3] MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro. Coisa julgada. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006.

 é advogado, pós-doutor em Direito (UNISINOS) e doutor em Direito (PUC-SP).

 é advogado, doutor e mestre em Direito pela PUC-SP e pós-doutorando em Direito na UFES.

Revista Consultor Jurídico, 12 de abril de 2015, 7h30