"Eu não recearia muito as más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Não há texto de lei que não deixe campo à interpretação.

A lei é morta. O magistrado vivo. É uma grande vantagem que ele tem sobre ela" - Anatole France

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Polícia Rodoviária Federal não pode lavrar Termo Circunstanciado, decide Juíza Andrea Bispo.

Polícia Rodoviária Federal não pode lavrar Termo Circunstanciado, decide Juíza Andrea Bispo.


A Juíza Andrea Ferreira Bispo, Titular do JECCRIM e articulista do Empório do Direito (confira seus artigos aqui), proferiu decisão nos autos n. 0006962-37-2014.8.14.0049, reconhecendo a ilegalidade do Termo Circunstancia de Ocorrência (TCO) lavrado pela Polícia Rodoviária Federal. A decisão que pode ser conferida, na íntegra, abaixo, a partir da Constituição da República, afirmou que somente a Polícia Civil teria competência para tanto. Vale a leitura.

Vistos etc.
O Chefe da 1ª Delegacia da 19ª Superintendência Regional da Polícia Rodoviária Federal – Pará, encaminha a esse juízo os documentos de fls. 02/18 através do ofício n.º 045/2014, de 03 de novembro de 2014, cujo teor é o seguinte:
“Encaminhamos a Vossa Excelência o Termo Circunstanciado de Ocorrência nº 1901021408141115, resultante de ações policiais e de fiscalizações realizadas por equipe da Polícia Rodoviária Federal, ao tempo que informamos que os procedimentos estão em conformidade com a forma ajustada no Termo de Convênio n.º 007/2013-PGJ/PA, celebrado entre o Ministério Público do Estado do Pará, através da Procuradoria Geral de Justiça, e esta Superintendência de Polícia Rodoviária Federal/PA.
Outrossim, colocamo-nos à disposição de Vossa Excelência para os esclarecimentos complementares que se fizerem necessários”.
Os documentos anexos ao ofício que os encaminha estão identificados como “Termo Circunstanciado de Ocorrência” e foram elaborados conforme padrão adotado nas delegacias de polícia para os procedimentos desse jaez.
A narração contida no relatório onde se pretendeu descrever a conduta típica é a seguinte, fls. 05:
O autor conduzia a motocicleta Honda/NXR150 BROS ESD, placa XXX-XXXX/PA, na Rodovia BR-316, próximo ao Km 34, no Município de Santa Izabel do Pará, com lotação excedente, pois estava transportando dois passageiros, ambos sem capacete de segurança, e o mesmo, ao avistar a presença da viatura da Polícia Rodoviária Federal que sinalizava mediante sirene e determinava a sua imediata parada, resolveu evadir-se em velocidade incompatível à via, transitando ora elo acostamento, ora pela via local e paralela à rodovia, local que possuía pedestres transitando devido, principalmente, ao horário. O autor, ao acessar uma via vicinal, adentrou a mesma em velocidade incompatível mais uma vez, em uma via sem asfalto e com bastante pedregulhos de pequeno volume, fato que causou um pequeno derrapamento que poderia facilmente derrubar a motocicleta e causar ferimentos aos seus ocupantes. Após sair da rodovia o condutor foi abordado e constatado que não possuía Carteira Nacional de Habilitação e, pela sua conduta de gerar perigo de dano a si, aos passageiros e aos pedestres que transitavam nos locais onde ele transitou em velocidade incompatível, foi lavrado o presente termo.
Assina esse relato o Policial Rodoviário Federal identificado apenas pelo primeiro nome (Vítor XXXX) e número de matrícula (XXXXXX).
Quanto ao condutor do veículo, logo após a identificação, consta o seguinte registro, fls. 04:
DECLARAÇÃO DO AUTOR: APÓS CIÊNCIA DOS SEUS DIREITOS CONSTITUCIONAIS, INCLUSIVE DE PERMANECER EM SILÊNCIO, O AUTOR DECLAROU: Que estava trabalhando como mototaxista na Rod. BR 316 quando avistou, repentinamente, uma viatura da Polícia Rodoviária Federal. Que se assuntou ao avistar a viatura. Que por estar conduzindo a motocicleta transportando passageiros sem capacete, temeu ser notificado. Que diante disso resolveu empreender fuga. Que após sair da rodovia e ser alcançado pela viatura resolveu parar.
Encontra-se às fls. 06 “TERMO DE COMPROMISSO DE COMPARECIMENTO DO AUTOR DO FATO”, no qual se lê que “XXXXX, Policial Rodoviário Federal, matrícula nº XXXX, com fulcro na Lei 9099/95, faz saber a XXXXXX, CPF n.º XXXXXXXX-XX, que foi lavrado o Termo Circunstanciado de Ocorrência nº 1901021408141115 e que por este instrumento assume o compromisso de comparecer ao Juizado Especial Criminal da Comarca de Santa Izabel do Pará / PA (endereço ao final) em dia e hora a serem determinados posteriormente quando da intimação, feita pelo referido juízo na forma da lei, na qualidade de autor dos fatos. Fica ciente que o não comparecimento o sujeitará às medidas previstas na Lei 9099/95, bem como deverá comparecer acompanhado de advogado, sendo que na sua falta ser-lhe-á designado defensor público”.
Por fim, encontram-se entre os documentos encaminhados cópias de seis autos de infração lavrados contra o condutor do veículo e do convênio firmado entre o Ministério Público deste Estado e a Polícia Rodoviária Federal, fls. 08/10 e 11/17.
Entende o subscritor do ofício que ao dirigir em via pública sem habilitação o condutor do veículo incorreu no tipo penal previsto no art. 309 do Código de Trânsito Brasileiro.
RELATEI. DECIDO.
Nos termos do disposto no art. 69, da Lei 9.099/95, “a autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima”.
Recebido o termo circunstanciado nos juizados, será realizada audiência preliminar, na qual o Juiz esclarecerá sobre a possibilidade da composição dos danos e da aceitação da proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade (arts. 70 e 72).
Tais dispositivos estão a indicar que, recebido na secretaria dos Juizados Especiais Criminais o procedimento investigatório, deverá o juiz examinar os autos, verificando não apenas se é competente, mas também averiguando se há compatibilidade entre o dito procedimento e a Constituição Federal e os Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Nesse sentido, transcrevo os ensinamentos de Alexandre Morais da Rosa:
“O controle de compatibilidade das leis não se trata de mera faculdade conferida ao julgador singular, mas sim de uma incumbência, considerado o princípio da supremacia da Constituição (http://www.conjur.com.br/2015-jan-02/limite-penal-temas-voce-saber-processo-penal-2015). Cabe ainda frisar que, no exercício de tal controle, deve o julgador tomar como parâmetro superior do juízo de compatibilidade vertical não só a Constituição da República (no que diz respeito, propriamente, ao controle de constitucionalidade difuso), mas também os diversos diplomas internacionais, notadamente no campo dos Direitos Humanos, subscritos pelo Brasil, os quais, por força do que dispõe o art. 5º, §§ 2º e 3º[1], da Constituição da República, moldam o conceito de “bloco de constitucionalidade” (parâmetro superior para o denominado controle de convencionalidade das disposições infraconstitucionais)”.(Artigo publicado no sítio eletrônico Empório do Direito. http://emporiododireito.com.br/desacato-nao-e-crime-diz-juiz-em-controle-de-convencionalidade/ Pesquisa realizada no dia 30/04/2015).
Procedendo ao exame da compatibilidade dos documentos encaminhados a este Juizado pela Superintendência da Polícia Rodoviária Federal, tenho que não é possível equipará-los ao procedimento previsto na Lei 9.099/95 e, consequentemente, realizar qualquer ato que não seja determinar o cancelamento da distribuição.
Efetivamente. Embora o subscritor do ofício tenha nominado os documentos que encaminhou como “Termo Circunstanciado de Ocorrência”, o mesmo não possui competência para presidir essa espécie de procedimento investigatório.
É que a Constituição Federal, no art. 144, § 2º, incumbe a polícia rodoviária federal apenas a realização do patrulhamento ostensivo das rodovias federais. Nada mais que isso.
O mesmo dispositivo, nos §§ 1º e 4º, conferem à Polícia Federal e à Polícia Civil, a atribuição de apurar infrações penais e de exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária.
Assim, nem lei ordinária, e muito menos convênio, poderá estabelecer competência para quem a Constituição Federal não a conferiu, de sorte que o convênio firmado entre Ministério Público e a Polícia Rodoviária Federal não é hábil a produzir qualquer efeito, especialmente porque o seu cumprimento reduz as garantias aos direitos fundamentais que devem conduzir a investigação criminal e a instrução processual.
Sobre o assunto, transcrevo o entendimento de André Nicolitt:
“Com o advento da Lei 12.830/2013, não há dúvidas que só o Delegado de Polícia poderá lavrar o termo circunstanciado, até porque o juízo sobre a tipicidade e sobre sua natureza de infração de menor potencial ofensivo depende da avaliação da autoridade policial, que nos termos do art. 2.º, § 1.º da referida lei, só pode ser feita pelo delegado de polícia. Note-se que a definição da potencialidade ofensiva pressupõe conhecimento técnico jurídico. Não se trata apenas de um juízo positivo sobre a menor potencialidade ofensiva, mas também um juízo negativo sobre a média ou alta ofensividade, o que só pode ser feito pelo delegado de polícia”. (NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. SP, RT, 2014, p. 526).
Alexis do Couto Brito:
 “A autoridade policial reconhecida pelo Código de Processo Penal é o delegado. Todos os demais são agentes da autoridade. Delegar a função dele prevista na Lei 9099 seria o mesmo que delegar as funções da autoridade judicial para seus agentes”. (Processo Penal Brasileiro. BRITO, Alexis Couto de, FABRETTI, Humberto Barrionuevo e LIMA, Marco Antônio Ferreira. Editora Atlas).
Thiago M. Minagé e Michelle Aguiar:
“Ao tratar do tema Inquérito policial, é preciso entender seu significado e suas peculiaridades, bem como analisar o escopo que lhe foi conferido pela legislação. De forma abrangente, a investigação criminal é conceituada como um conjunto de diligências realizadas pela polícia judiciária, com o objetivo de esclarecer, materialidade delitiva e a respectiva suposta autoria, para então, fornecer elementos ao titular do exercício do direito de ação penal, no caso o MP.
No que tange aos poderes investigatórios, estes foram atribuídos à polícia judiciária, conforme se depreende da leitura do Artigo 144, § 4° da Constituição brasileira de 88”. (artigo publicado no sítiohttp://canalcienciascriminais.com.br/artigo/investigacao-feita-pelo-ministerio-publico-necessario-que-cada-um-entenda-o-seu-devido-lugar-por-thiago-m-minage-e-michelle-aguiar/ em 28/04/2015. Pesquisa realizada em 29/04/2015).
E especificamente sobre a possibilidade de que a polícia rodoviária federal lavre os termos circunstanciados de ocorrência previstos na Lei 9.099/95, transcrevo as lições de Rômulo de Andrade Moreira:
“O art. 69 da Lei nº. 9.099/95 utilizou-se da expressão “autoridade policial” como aquela com atribuições para lavrar o Termo Circunstanciado, quando se tratar de infrações penais de menor potencial ofensivo.
Aquela expressão, a nosso ver, restringe-se aos Delegados da Polícia Civil e da Polícia Federal, dentro de suas atribuições específicas insculpidas nos §§ 4º. E 5º., do art. 144, CF/88.
Mutatis mutandis, a mesma mácula inconstitucional ocorre com a possibilidade de lavratura do Termo Circunstanciado pela Polícia Rodoviária Federal, cuja atribuição é a de patrulhar ostensivamente as rodovias federais (e não de investigar infrações penais), nos termos do art. 144, parágrafo segundo da Constituição Federal, não tendo ela qualquer atribuição investigatória criminal. E a lavratura de um Termo Circunstanciado, tal como a de um Inquérito Policial, é atividade estritamente de natureza investigatória criminal.
Nada obstante, alguns Ministérios Públicos Estaduais, como o da Bahia, por exemplo, assinaram convênios que permitem autonomia à Polícia Rodoviária Federal em lavrar ocorrências de infrações penais de menor potencial ofensivo, sem precisar encaminhar o infrator até a Polícia Civil ou à Polícia Federal.
Trata-se de evidente inconstitucionalidade, pois as atribuições da Polícia Rodoviária Federal estão taxativamente previstas no art. 144, II, c/c parágrafo segundo da Constituição Federal.
Concluindo: Termo Circunstanciado lavrado por um policial rodoviário federal é um procedimento inexistente juridicamente (pois produzido em flagrante inconstitucionalidade), não se prestando para dar justa causa ao Ministério Público, seja para propor a transação penal, seja para oferecer a peça acusatória”. (Pesquisa realizada no sítio eletrônico http://romulomoreira.jusbrasil.com.br/artigos/183091406/a-policia-rodoviaria-federal-pode-lavrar-o-termo-circunstanciado no dia 29/04/2015).
E, numa perfeita síntese de todo o pensamento anteriormente exposto, a lição da Dr.ª Bartira de Miranda Macedo:
“A questão é que a lei, o Código de Processo Penal e a Constituição Federal estabelecem que a autoridade policial é a responsável pela apuração da autoria e materialidade das infrações penais. O Inquérito Policial será presidido pelo Delegado de Polícia e o Termo Circunstanciado de Ocorrência também.  Assim, TCO lavrado por policial rodoviário ofende a Constituição (art.  144, §§ 2º e 4º).
O artigo 144 também estabelece as atribuições da polícia rodoviária federal. Se esta pratica atos que vão além desses limites estará usurpando funções constitucionais da polícia civil e polícia federal.
Portanto, por não resguardar a forma prescrita em lei, o TCO lavrado pela polícia rodoviária federal é inexistente”.
“Não podemos confundir formalismo despido de significado com significados revestidos de forma” (SCHIMIDT, Ana Sofia. “Resolução 05/02: Interrogatório on-line”. In: boletim do IBCrim, n. 120, novembro/2002), pensamento que se completa com as seguintes palavras do professor Antônio Graim Neto: “e no processo penal em conformidade constitucional, forma é garantia e é função do juiz ser o protetor das garantias constitucionais do acusado”.
Posto isso, por considerar incompatível com a Constituição Federal o Termo Circunstanciado de Ocorrência que não tenha sido lavrado pelas polícias civil e federal, cada uma dentro dos limites que lhe foram conferidos pelo art. 144, §§ 1º e 4º, reconheço como INEXISTENTE A COMUNICAÇÃO TRAZIDA A ESTE JUIZADO ATRAVÉS DO OFÍCIO 045/2014, fls. 02 e determino o cancelamento da distribuição.
                        Deem-se ciência ao Sr. XXXX XXXXXXX XXXXX e ao Ministério Público.
Publique-se. Registre-se. Cumpram-se.
Santa Izabel do Pará, 04 de maio de 2015.

Andrea Ferreira Bispo
Juíza de Direito
Titular do JECCRIM
Portaria TJPA 028/2015-SJ

Imagem Ilustrativa do Post:  PRF // Foto de: André Gustavo Stumpf // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/degu_andre/6125604194
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

Convocação de autoridades pelo Legislativo de SP é questionado no STF

INVESTIGAÇÃO PARLAMENTAR

Convocação de autoridades pelo Legislativo de SP é questionado no STF



A Procuradoria-Geral da República ingressou com uma ação no Supremo Tribunal Federal para tentar derrubar o trecho da Constituição do Estado de São Paulo que trata da convocação de autoridades pelas comissões parlamentares de inquéritos instaladas pelo Legislativo estadual. É que a Carta estadual prevê a convocação de dirigentes, inclusive de órgãos federais — o que, para a PGR, afronta a Constituição Federal.
A ação questiona a constitucionalidade dos incisos 14 e 16 do artigo 20 da Constituição paulista. Os dispositivos dotam a Assembleia Legislativa daquele estado de prerrogativas para convocar e requisitar informações de autoridades e até mesmo de imputar a elas a prática de crime de responsabilidade caso não colaborem.
O inciso 14 autoriza a convocação de secretários estaduais, dirigentes, diretores e superintendentes de órgãos da administração pública indireta e fundacional, além de reitores das universidades públicas estaduais. Já o inciso 16 prevê que a Assembleia Legislativa possa requisitar informações das mesmas autoridades, além do chefe do Ministério Público e de diretores de agência reguladora.
Para a PGR, os dois dispositivos, ao ampliarem a lista de sujeitos ativos do crime de responsabilidade, incluindo autoridades diversas daquelas previstas no artigo 50, caput e parágrafos 1º e 2º, da Constituição Federal, usurparam a competência privativa da União para legislar sobre direito penal, prevista no artigo 22, inciso 1º, da Carta Magna.
Pelo artigo 50, compete à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal, assim como a quaisquer de suas comissões, as prerrogativas de convocar ministros de Estado ou aos titulares de órgãos diretamente subordinados à Presidência da República para prestar pessoalmente informações sobre assunto previamente determinado e de requisitar informações por escrito a essas mesmas autoridades, imputando a prática de crime de responsabilidade em caso de não comparecimento da autoridade sem justificativa adequada e/ou de recusa, não atendimento no prazo de trinta dias ou de prestação falsa das informações solicitadas.
De acordo com o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, os Legislativos dos estados, do Distrito Federal e dos municípios podem proceder a interpelação parlamentar, direcionar pedidos de informações e instaurar inquéritos parlamentares, podendo inclusive imputar a prática de crime de responsabilidade.
Mas por simetria à Constituição Federal, só podem fazê-lo perante os secretários estaduais, distritais e municipais, assim como às autoridades subordinadas diretamente ao chefe do Executivo. Por isso, a inclusão de dirigentes, diretores e superintendentes de órgãos da administração pública indireta e fundacional, reitores das universidades públicas estaduais, procurador-geral de Justiça e de diretores de agência reguladora contraria a Constituição Federal. O caso foi distribuído ao ministro Marco Aurélio. Com informações da assessoria de imprensa do STF.
Processo: ADI 5289.

Revista Consultor Jurídico, 2 de maio de 2015, 14h43

Controle via publicidade e o mérito do Tema 483 da Repercussão Geral

OBSERVATÓRIO CONSTITUCIONAL

Controle via publicidade e o mérito do Tema 483 da Repercussão Geral



A discussão acerca do controle da Administração Pública tem muitas facetas e é um tema de enorme relevância no Direito Público contemporâneo, seja sob o enfoque da funcionalidade e correção da atuação administrativa, seja sob o ponto de vista da sua legitimação.
Essa questão pode se potencializar em regimes federativos, como ilustra o modelo brasileiro, pois a organização administrativa, em cada nível do condomínio federativo, pode tomar feição, dinâmica e formas muito diferentes.
A despeito do embate que se pode enxergar na doutrina acerca da amplitude de controle (sentido mais amplo ou mais estrito), o que se evidencia, na atualidade, é a discussão acerca dos seus limites e da sua intensidade, que tomam diferentes coloridos conforme o contexto e o caso concreto.
Nesse campo, o debate costuma ser protagonizado por uma série de princípios jurídicos, políticos e mesmo técnicos, vinculados à ideia de controle, tais como: a legalidade, a impessoalidade, a eficiência, a legitimidade e a qualidade democráticas, a publicidade, a transparência, a prestação de contas etc.
Também aqui a doutrina invoca a relevância do princípio da separação de poderesi e o valor central do controle jurisdicional da Administração Pública, capaz não só de rever a atuação administrativa, mas também de impor-lhe medida.ii Nesse ponto, é preciso destacar também a distinção entre as acepções de “controle jurisdicional do ato administrativo” e de “controle jurisdicional da Administração”, por ser esta última mais ampla, a abranger também contratos, atividades ou operações materiais e a omissão ou inércia da Administração.iii
Além disso, costuma ser relevante o contexto político e jurídico em que o controle se estabelece – se num regime presidencialista ou parlamentarista. Seabra Fagundes dizia, por exemplo, ser o controle jurisdicional mais relevante no regime presidencialista (inclusive no Brasil), em que não se teria um controle parlamentar muito intenso (como costuma ocorrer em regimes parlamentaristas).iv Contudo, essa comparação parece muito relativa e deve ser tomada com reservas, preferindo-se analisar as situações caso a caso.v
A despeito de ainda se enxergar, por vezes, um protagonismo do controle jurisdicional, a ele se somam outras formas de controle, como o autocontrole da Administração, o controle social e o controle externo a cargo de outros órgãos e entidades públicas, o controle parlamentar e outros instrumentos (como o Ombudsman, por exemplo).
No contexto do controle das atividades estatais, tem-se dado muito destaque à ideia publicidade como instrumento poderoso e ensejador da legitimação democrática estatal, a viabilizar conhecimento dos atos estatais em geral por parte dos cidadãos.vi
No campo doutrinário, há quem se manifeste no sentido de que a publicidade se insere numa perspectiva mais ampla, que é a de transparência – a englobar, ainda, a proximidade e a comunicação, devendo o Estado observar a publicidade e manter o dever de transparência. Porém, isso não significa, necessariamente, a exigência de uma “casa de vidro” totalmente translúcida, mas apenas que deve haver relativa opacidade dos atos do Estado, de acordo com os limites e exigências impostos pela Constituição e leis de determinado país.vii
No âmbito da doutrina portuguesa, costuma-se ressaltar, ainda, a ideia do mito da transparência e sua presença no contexto da Administração pública, dado que o chamariz desse conceito não estaria apenas nos instrumentos que o concretizariam, mas também em seu forte caráter simbólico:
“A utilização da palavra transparência não é, portanto, neutral: ela comporta um substrato afectivo, que se revela, por vezes, reactivo, ritualista; contém ainda imagens simbólicas, desejos latentes de legitimação de instituições, provocando efeitos difusos, esperanças, expectativas nas pessoas, Por estas razões, a transparência acede ao estatuto de um verdadeiro mitono sentido forte do termo, isto é, uma imagem simplificada e ilusória, capaz de produzir uma série de efeitos sociais tangíveis pelas ressonâncias que produz na consciência coletiva. (...)” viii
A doutrina brasileira também observa esse fenômeno de forte vinculação entre publicidade, legitimidade democrática e controle da Administração Pública. Odete Medauar, por exemplo, acentua que a transparência viabiliza participação e controle da atividade administrativa, pois só se controla o que se tem acesso ou conhecimento. Para tanto, é preciso uma série de normas a ensejar essa abertura, para fins de obrigar a abertura de contas públicas; permitir controle social (audiências e consultas públicas), viabilizar controlea priori ou a posteriori – o que pode ser ilustrado em diversas leis ligadas ao processo administrativo federal, ao acesso à informação, às licitações públicas, ao ordenamento urbano etc.ix
A despeito da gama de definições e posicionamentos doutrinários, é a prática que tem trazido desafios de interpretação e concretização do princípio da publicidade, sobretudo a partir das referências constitucionais e legais atinentes ao tema.
A Constituição Federal de 1988 dispõe de diversas formas (implícitas e explícitas) sobre o princípio da publicidade, o qual costuma estar associado a procedimentos administrativos e judiciais em geral (instrumentos processuais e remédios constitucionais), a medidas assecuratórias de direitos individuais, coletivos e difusos, bem como a uma série de ações e políticas do Estado, não se limitando à ideia de publicação.
Dentre as diversas concretizações possíveis dessa discussão, um aspecto que tem ganho bastante atenção junto à opinião pública é a discussão acerca do controle de gastos públicos, inclusive aqueles ligados à folha de pagamento de servidores públicos e a disponibilização de novos meios de seu controle, potencializados pelo uso da Internet. Nesse ponto, toma corpo a discussão acerca do princípio da publicidade, da transparência e da privacidade e intimidade, além do debate acerca da proteção e manuseio de dados pessoais.
Em recente julgamento do STF, ocorrido na sessão plenária do dia 23 de abril de 2015, foi apreciado o mérito do Tema 483 da sistemática de Repercussão Geral, que tratava da seguinte questão:
“EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. DIVULGAÇÃO, EM SÍTIO ELETRÔNICO OFICIAL, DE INFORMAÇÕES ALUSIVAS A SERVIDORES PÚBLICOS. CONFLITO APARENTE DE NORMAS CONSTITUCIONAIS. DIREITO À INFORMAÇÃO DE ATOS ESTATAIS. PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE ADMINISTRATIVA. PRIVACIDADE, INTIMIDADE E SEGURANÇA DE SERVIDORES PÚBLICOS.
Possui repercussão geral a questão constitucional atinente à divulgação, em sítio eletrônico oficial, de informações alusivas a servidores públicos.”
Por unanimidade e nos termos do voto do ministro relator Teori Zavascki, deu-se provimento ao recurso extraordinário (ARE 652.777 RG/SP) do município de São Paulo, fixando-se a tese de que é legítima a publicação, inclusive em sítio eletrônico mantido pela Administração Pública, dos nomes dos seus servidores e do valor dos correspondentes vencimentos e vantagens pecuniárias.
Em termos de fundamentação, em verdade, não houve grande novidade, pois o que se colhe do debate dos ministros na sessão plenária (acórdão pendente de publicação) é a reafirmação do entendimento fixado em precedente do próprio STF (SS 3.902 AgR-segundo, relator ministro Ayres Britto, Pleno, DJe 3 de outubro de 2011), que tratava do mesmo contexto fático do caso em questão, ligado à divulgação nominal da remuneração dos servidores municipais da cidade de São Paulo, conforme legislação municipal e programa denominado “De Olho Nas Contas”.
Embora fosse um precedente ligado ao processo judicial de contracautela, em que o foco de análise costuma se concentrar na potencialidade lesiva a valores como ordem pública, ordem econômica e segurança jurídica, ou seja, sem ingressar no mérito efetivo da decisão impugnada, o que se viu, à época, foi que o STF aprofundou consideravelmente o debate meritório da questão, conforme se colhe da ementa abaixo:
“EMENTA: SUSPENSÃO DE SEGURANÇA. ACÓRDÃOS QUE IMPEDIAM A DIVULGAÇÃO, EM SÍTIO ELETRÔNICO OFICIAL, DE INFORMAÇÕES FUNCIONAIS DE SERVIDORES PÚBLICOS, INCLUSIVE A RESPECTIVA REMUNERAÇÃO. DEFERIMENTO DA MEDIDA DE SUSPENSÃO PELO PRESIDENTE DO STF. AGRAVO REGIMENTAL. CONFLITO APARENTE DE NORMAS CONSTITUCIONAIS. DIREITO À INFORMAÇÃO DE ATOS ESTATAIS, NELES EMBUTIDA A FOLHA DE PAGAMENTO DE ÓRGÃOS E ENTIDADES PÚBLICAS. PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE ADMINISTRATIVA. NÃO RECONHECIMENTO DE VIOLAÇÃO À PRIVACIDADE, INTIMIDADE E SEGURANÇA DE SERVIDOR PÚBLICO. AGRAVOS DESPROVIDOS.
1. Caso em que a situação específica dos servidores públicos é regida pela 1ª parte do inciso XXXIII do artigo 5º da Constituição. Sua remuneração bruta, cargos e funções por eles titularizados, órgãos de sua formal lotação, tudo é constitutivo de informação de interesse coletivo ou geral. Expondo-se, portanto, a divulgação oficial. Sem que a intimidade deles, vida privada e segurança pessoal e familiar se encaixem nas exceções de que trata a parte derradeira do mesmo dispositivo constitucional (inciso XXXIII do artigo 5º), pois o fato é que não estão em jogo nem a segurança do Estado nem do conjunto da sociedade.
2. Não cabe, no caso, falar de intimidade ou de vida privada, pois os dados objeto da divulgação em causa dizem respeito a agentes públicos enquanto agentes públicos mesmos; ou, na linguagem da própria Constituição, agentes estatais agindo “nessa qualidade” (parágrafo 6º do artigo 37). E quanto à segurança física ou corporal dos servidores, seja pessoal, seja familiarmente, claro que ela resultará um tanto ou quanto fragilizada com a divulgação nominalizada dos dados em debate, mas é um tipo de risco pessoal e familiar que se atenua com a proibição de se revelar o endereço residencial, o CPF e a CI de cada servidor. No mais, é o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um Estado republicano.
3. A prevalência do princípio da publicidade administrativa outra coisa não é senão um dos mais altaneiros modos de concretizar a República enquanto forma de governo. Se, por um lado, há um necessário modo republicano de administrar o Estado brasileiro, de outra parte é a cidadania mesma que tem o direito de ver o seu Estado republicanamente administrado. O “como” se administra a coisa pública a preponderar sobre o “quem” administra – falaria Norberto Bobbio -, e o fato é que esse modo público de gerir a máquina estatal é elemento conceitual da nossa República. O olho e a pálpebra da nossa fisionomia constitucional republicana.
4. A negativa de prevalência do princípio da publicidade administrativa implicaria, no caso, inadmissível situação de grave lesão à ordem pública.
5. Agravos Regimentais desprovidos.”
De todo modo, ainda que o tema recentemente julgado não se trate de algo verdadeiramente novo na pauta do Supremo Tribunal Federal, é possível destacar alguns aspectos interessantes.
Em primeiro lugar, não se confirmou a expectativa de que alguns novos integrantes da corte, que não participaram do julgamento do precedente indicado, pudessem manifestar posicionamento divergente.
Além disso, por se tratar de decisão proferida em sede de sistemática de Repercussão Geral, os efeitos da decisão se irradiam para todos os casos sobrestados e que aguardavam julgamento do tema em questão pelo STF, bem como serve de baliza para novos casos eventualmente não sobrestados e que se vinculem ao tema. Nesse ponto, segundo notícia do STF, haveria, pelo menos, 334 casos sobrestados no Poder Judiciário aguardando a decisão proferida.
Ademais, a cronologia dos fatos também parece interessante, pois a nova decisão foi proferida levando em conta não apenas o precedente citado e a legislação da municipalidade paulista, mas também a edição da lei de acesso à informação no âmbito federal (Lei 12.527/2011), ocorrida após o julgamento do referido precedente e que tem ensejado muito debate e consideração sobre o tema.
Ressalte-se que não se pretende aqui entrar em detalhes acerca da controversa discussão acerca da adequação, proporcionalidade e razoabilidade da específica medida de divulgação nominal dos servidores e respectivas quantias recebidas, que abriga posições diferentes, mas com argumentos consistentes e merecedores de contínua reflexão e crítica por todos.
Mas o que se sugere, todavia, é a importância de se estimular um acompanhamento dos diferentes modos de concretização desse meio de controle nos diferentes entes federativos, por pelo menos duas razões: (a) a decisão do STF não obriga a um modelo único, mas tão-somente assevera que determinado meio é legítimo, (b) temos tubos de ensaio disponíveis (que devem cuidar da proteção de dados pessoais, obviamente) em todos os entes federativos, que funcionam como laboratórios de experimentação e que podem apresentar novas fórmulas que alcancem de modo mais otimizado o controle almejado.
Desde à época da decisão do precedente no STF (SS 3902 AgR-segundo/SP, em 2011) e até o presente momento (2015), muito se tem feito e discutido nesse campo. Assim, parece salutar um contínuo controle sobre esses novos instrumentos e meios de divulgação e controle de dados, não apenas para apuração de eventuais irregularidades ou inadequações, mas também para buscar novas ideias e modelos que avancem com a otimização do equilíbrio dos interesses e direitos envolvidos.
i FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 5ª ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 109.
ii MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28ª ed. rev. e atual.. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 943-944.
iii MEDAUAR, Odete. Controle da Administração Pública. 2ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 185-186. É comum, porém, a doutrina deixar escapar, em termos conceituais, essa importante diferença. É o que se vê, por exemplo, na definição de Hely Lopes Meirelles: “Controle judiciário ou judicial é o exercido privativamente pelos órgãos do Poder Judiciário sobre os atos administrativos do Executivo, do Legislativo e do próprio Judiciário quando realiza atividade administrativa.” MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 36ª ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 743-744.
iv Para um estudo acerca do controle parlamentar, consultar, entre outros: VERGOTTINI, Giuseppe de. Diritto constituzionale comparato. 7ª ed. rev. Padova (Itália): CEDAM, 2007, p. 566-576; ODETE, Controle da Administração Pública. 2ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 94-112.
v FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 8 ed. atual por Gustavo Binenbojm. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 136-137.
vi CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra, Portugal: Ed. Livraria Almedina, 2001, p. 849.
vii AMARAL, Antônio Carlos Cintra do. O princípio da publicidade no direito administrativo. In: Revista de Direito Público da Economia – RDPE Belo Horizonte ano 1 n. 2 jul/set. 2003, p. 16 . Ver também: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 114.
viii ANTUNES, Luís Filipe Colaço. Mito e realidade da transparência administrativa. In: Boletim da Faculdade de Direito. Número especial. Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró. Vol. 2. Coimbra (Portugal), 1993, p. 4-5.
ix MEDAUAR, Odete. Controle da Administração Pública. 2ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 176-180.

 é doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo e pela Freie Universität Berlin (Alemanha), mestre em Direito pela Universidade de Brasília e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

Revista Consultor Jurídico, 2 de maio de 2015, 8h00