"Eu não recearia muito as más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Não há texto de lei que não deixe campo à interpretação.

A lei é morta. O magistrado vivo. É uma grande vantagem que ele tem sobre ela" - Anatole France

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Ao conceder HC a preso por tráfico, Barroso critica política de drogas

PREJUDÍCIO À SOCIEDADE

Ao conceder HC a preso por tráfico, Barroso critica política de drogas


Pessoas flagradas com quantidades pequenas de maconha, sendo réus primários, não devem ficar presas preventivamente. A decisão é do ministro do Supremo Tribunal Federal Federal Luís Roberto Barroso, que revogou a prisão preventiva de um acusado de tráfico, encontrado com 69 gramas da erva e encarcerado há sete meses no Presídio Central de Porto Alegre.
Barroso afirmou que maconha não torna o usuário um risco para terceiros.
Fellipe Sampaio/SCO/STF
Ao proferir o Habeas Corpus 127.986,o julgador afirmou que a maconha não transforma o usuário em um risco para terceiros e que o pior efeito de drogas como a maconha incide sobre as comunidades dominadas pelo crime organizado.
Para Barroso, a ilegalidade e a repressão tornam este mercado atraente e faz com que paguem aos jovens salários maiores do que os que obteriam em empregos regulares. “Enviar jovens não perigosos e, geralmente, primários para o cárcere, por tráfico de quantidades não significativas de maconha, é transformá-los em criminosos muito mais perigosos”, complementou o julgador.
Mudança de rumos
Ao proferir sua decisão, o ministro do STF criticou a política de combate às drogas do Brasil e ressaltou o fato de vários países do mundo mudarem suas ações para resolver esse problema. “Hoje, diversos estados americanos já descriminalizaram o seu uso. Alguns países da Europa seguiram o mesmo caminho”, afirmou.

Segundo Barroso, o Brasil deveria rever certos pontos de sua política de combate às drogas. “A política de criminalização e encarceramento por quantidades relativamente pequenas de maconha é um equívoco, que prejudica não apenas o acusado, mas, sobretudo, a sociedade”, disse.
“O simples fato de o tráfico de entorpecentes representar o tipo penal responsável por colocar o maior número de pessoas atrás das grades (cerca de 26% da população carcerária total), sem qualquer perspectiva de eliminação ou redução do tráfico de drogas, já indica que a atual política não tem sido eficaz”, afirmou o ministro.
Clique aqui para ler a decisão.
 é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 12 de maio de 2015, 17h52

Lei que regula delação reconhece que MP pode investigar, diz Dipp​

PAPEL MAIOR

Lei que regula delação reconhece que MP pode investigar, diz Dipp​

O Ministério Público ganhou um aliado no debate sobre seu papel na esfera penal: a lei que regulamenta a delação premiada no país. A norma legitima o poder da instituição para investigar crimes, na avaliação do ministro aposentado Gilson Dipp. Depois de deixar sua cadeira no Superior Tribunal de Justiça, em 2014, ele passou a estudar o instrumento da colaboração e foi convidado para um debate promovido na última terça-feira (12/5), em São Paulo.
O encontro foi organizado pela Faap (Fundação Armando Alvares Penteado) e pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e também teve como palestrante o advogado  David Teixeira de Azevedo, professor da Faculdade de Direito da USP e defensor de um dos réus da operação “lava jato”.
Existe uma controvérsia no mundo jurídico sobre a validade de investigações conduzidas pelo MP — o Supremo Tribunal Federal tem cerca de 30 ações ligadas ao assunto. Dipp afirmou no evento que a Lei 12.850/2013, sobre organizações criminosas, reconhece que a instituição pode colher provas com base em depoimentos de delatores. Isso porque a “delação por si só não vale nada”, sendo uma ferramenta para promotores e procuradores buscarem o que colocar nos autos.
A norma também diz que o colaborador poderá ser ouvido pelo membro do Ministério Público ou pelo delegado de polícia “responsável pelas investigações”. Tanto o MP quanto o delegado têm o mesmo poder de firmar delação premiada com investigados — no caso da “lava jato”, são procuradores da República que conduziram o acordo. Juízes não podem participar das negociações, pois são os responsáveis por reconhecer a validade das cláusulas assinadas.
Dipp participou de evento sobre delação premiada na sede da Faap, em São Paulo.
Dipp disse não ser contra a investigação feita pelo Ministério Público.  Declarou que, “às vezes”, a participação concorrente do órgão é necessária. O ministro apontou ainda que o Brasil tem seguido o caminho da transação penal, como já fazem os Estados Unidos e a Itália.
Assim, o MP passa a negociar com os réus durante toda a persecução penal. Ele afirmou que essa tendência não é necessariamente positiva ou negativa, mas é preciso cuidado para não resultar em “clandestinidade processual, sem anuência de juízes”.
O ministro questionou ainda se a pessoa que está presa preenche o requisito da voluntariedade ao assinar o acordo. Em março, ele elaborou parecer que considera inválida a delação do doleiro Alberto Youssef, por não ter preenchido o requisito da credibilidade do colaborador.
Dever do advogado
David Teixeira de Azevedo criticou a forma como as delações têm sido aplicadas na “lava jato”. Para ele, são inconstitucionais cláusulas que obrigam o investigado a desistir de recursos, continuar à disposição para colaborar mesmo depois do trânsito em julgado e ter suspensos prazos de prescrição.  

“Onde nós estamos? A prescrição tem assento constitucional, é um instituto que pune quem dorme no exercício do seu direito. Em âmbito criminal, é uma garantia do cidadão de que a persecução penal tem tempo final”, afirmou. “O advogado deve proteger os direitos do delator, não deve assinar esse tipo de termo.”
David Azevedo disse que advogado não pode aceitar termos que retiram direitos.
Reprodução
Azevedo defende o empresário Fernando Soares, conhecido como Fernando Baiano, acusado de ter atuado como lobista e intermediado as negociações junto com o ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró.
Também participante do evento, o presidente do IDDD, Augusto de Arruda Botelho, disse que os Estados Unidos permitem o contraditório e a confrontação entre as partes desde o início das delações, enquanto no Brasil o instrumento baseia-se apenas na “caguetagem”. 
O ministro Gilson Dipp também apontou que a colaboração premiada existe no Brasil desde 1986, com a legislação de crimes contra o sistema financeiro nacional (Lei 7.492). Foi com a Lei 12.850/2013 (sobre organizações criminosas), entretanto, que a delação passou a ser regulada de forma mais completa.
 é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 13 de maio de 2015, 18h59

País corre risco de aprovar pior Código Penal da história, criticam especialistas

COMBINAÇÃO EXPLOSIVA

País corre risco de aprovar pior Código Penal da história, criticam especialistas


Na ordem do dia do Senado, o projeto que pretende reformar o Código Penal Brasileiro traz em seu DNA o punitivismo que colocou em discussão no país, recentemente, a redução da maioridade penal, a transformação da corrupção em crime hediondo e o uso de provas ilícitas pelo Ministério Público Federal. A combinação é explosiva: a reforma é tecnicamente ruim, mas politicamente viável, diz o professor Alaor Leite, que organizou o livro Reforma Penal — A crítica científica à Parte Geral do Projeto de Código Penal (PLS 236/2012).
Para Alaor Leite, única solução razoável é o arquivamento do projeto.
Reprodução
O livro, que reúne artigos de renomados criminalistas como René Ariel Dotti, Juarez Tavares e Luís Greco, reproduz também umaentrevista de Miguel Reale Jr. àConJur, na qual ele afirma: “O novo Código Penal é obscenidade, não tem conserto”. Alaor Leite concorda. Para eles, este é, sob todos os pontos de vista, o pior projeto da história do Brasil.
projeto, de autoria de José Sarney, tramita desde 2012 em regime de urgência. A primeira versão do projeto foi apresentada em apenas sete meses. O texto é mais rigoroso na punição dos crimes contra a vida, aumentando, por exemplo, a pena de homicídio dos atuais seis para oito anos de prisão. A progressão de pena também fica sujeita a regras mais severas. No homicídio, para o condenado primário, a passagem do regime fechado para outro mais brando, que hoje exige o cumprimento de ao menos 1/6 da pena, passaria a ser de 1/4 do tempo.
Para o criminalista Guilherme San Juan, sócio do escritório San Juan Araujo Advogados, isso mostra que o Brasil tem ido na contramão da história. “Enquanto no mundo todo se buscam medidas despenalizadoras, no Brasil, o objetivo é  encarcerar, como se isso fosse a solução para o problema da corrupção, dos homicídios e outros crimes que ganham as manchetes dos jornais.”
San Juan afirma que o projeto se afasta dos fins da pena, em sua origem, ao passo que dificulta medidas de política criminal de ressocialização. “Ele busca enrijecer a progressão de regime, por exemplo. O correto seria, em vez de se discutir mudança na norma penal, se discutir colocar em prática aquilo que estabeleceu o legislador em 1940, como instalações dignas e adequadas para o cumprimento de pena em regime fechado, semi aberto e aberto.”
A ideia de aumentar penas para combater o crime é descartada também pelos números. Segundo pesquisa do Ministério da Justiça, após a promulgação da Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990), a população carcerária no Brasil saltou de 148 mil para 361 mil presos entre 1995 e 2005, mesmo período em que houve o crescimento de 143,91% nos índices de criminalidade. Os números são apontados pelo Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo; a Pastoral Carcerária Nacional; o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais; e a Rede de Justiça Criminal, em nota técnica publicada no último dia 8 de maio. Para as entidades, a aprovação terá como provável consequência a responsabilização do Brasil nas instâncias internacionais de proteção a direitos humanos, com consequências sociais e econômicas deletérias.
Alaor Leite concorda que, internacionalmente, o projeto, caso aprovado, será motivo de vergonha para o país. Ele lembra que o Código de 1830 foi elogiado no mundo todo. De Munique, na Alemanha, onde faz doutorado na Universidade Ludwig-Maximilian, Leite concedeu entrevista à ConJur, apontando os problemas do projeto de novo Código Penal. “Aprovado nos termos em que está, teremos a maior demonstração de que o poder penal, no Brasil, não se exerce em nome do povo, mas contra ele”, pontua.
Leia a entrevista:
ConJur — O senhor diz que esse é o pior projeto de Código Penal da nossa história. O que te leva a essa conclusão?
Alaor Leite — Este é, sob todos os pontos de vista, o pior projeto de nossa história. Há equívocos metodológicos, ligados à forma de condução da reforma, e há equívocos materiais, que dizem respeito ao conteúdo técnico do texto final. Do ponto de vista metodológico, a reforma se caracteriza pela afobação imprudente e pela clandestinidade. Do ponto de vista material, os defeitos técnicos são tais e tantos, que é impossível listá-los todos — daí ter sido necessário um livro de 265 páginas para contemplá-los, recém-publicado. Que a pressa tenha conduzido a esses equívocos de conteúdo, parece evidente. 

ConJur — O processo legislativo foi errático?
Alaor Leite — As críticas foram muitas, e o projeto foi várias vezes alterado por alguma comissão clandestina, já que a comissão de juristas que elaborou a primeira versão já está extinta há dois anos. Eu não sei quem são os juristas que produziram a última versão do projeto, sei apenas que o procurador da República Douglas Fischer auxiliou o senador Pedro Taques, mas estou certo de que não redigiu o texto sozinho. De lá para cá, o projeto já contou com dois relatores no Senado, Pedro Taques (PDT-MT, hoje governador de estado) e Vital do Rego (PMDB-PB, hoje conselheiro do TCU), e aguarda a designação de um terceiro. Às escuras, houve tentativa, pouco noticiada, de votar o PLS 236 no dia 17 de dezembro do ano passado, revelando as estranhas intenções dos reformadores. Agora, querem votar o projeto em sessão extraordinária, ainda nesta semana.

ConJur — Qual o efeito disso?
Alaor Leite — A maioria da população, embora conheça em detalhes a “operação lava-jato”, mal sabe que há uma reforma penal em curso. Assusta, portanto, que a votação se dê do dia para a noite, em sessão extraordinária. Haveria algo a ser escondido? O que vai para a votação em sessão extraordinária não é uma alteração pontual, não se resume à criminalização desta ou daquela conduta. Não se trata de um novo “pacote de medidas”, mas de documento que almeja viver por décadas e que altera todas as leis penais do país. Apenas aqueles que participaram da reforma é que conseguem defendê-la, como um pai cego aos descaminhos do filho. Apegados a slogans, os reformadores repetem que a “corrupção será crime hediondo”, que o “caixa dois” virará crime, e reduzem levianamente o alcance geral da reforma. O presidente do Senado, senador Renan Calheiros,afirmou recentemente ter interesse na tramitação com urgência

ConJur — E quais os problemas técnicos mais evidentes?
Alaor Leite — Na Parte Geral, a parte puramente técnica de um Código, o PLS 236 é infinitamente inferior ao Código atual. Resolveu-se alterar matérias altamente polêmicas e com grande repercussão prática, como a regulação sibilina das regras de autoria e participação, adotando um arremedo de teoria do domínio do fato que, tal como está definido nos artigos 36 e seguintes do Projeto, instaura no Direito brasileiro uma forma de responsabilidade penal pela ocupação de uma posição dentro de uma hierarquia. Também há regulação apressada da delação premiada, um tema que merece um maior aprofundamento no debate. A única solução razoável é que deixem a Parte Geral como está, na medida em que os institutos de Direito Penal não são produto exclusivo da lei, mas nascem do diálogo intenso entre lei, jurisprudência e ciência. Nosso reformador demonstra arrogância ao ignorar 200 anos de desenvolvimento científico e, ao tentar ser moderno, atingiu um título de que não poderá se orgulhar: produziu o maior entulho legislativo da história de nossa República. Nosso Código de 1830 foi elogiado internacionalmente. A reforma da Parte Geral em 1984 corrigiu vários dos equívocos do Código Penal de 1940. Do PLS 236/12 podemos apenas nos envergonhar.

ConJur — Observando o atual momento do Direito brasileiro, em que o chamado Direito Penal do Inimigo e o punitivismo ganham força, o senhor acha que é a hora de o Congresso discutir um novo código penal?
Alaor Leite — Grandes decisões exigem parcimônia. Ao juízo de qualquer cidadão racional, não, este não é o momento indicado para reformar toda a legislação penal de um país. Mas o nosso reformador desdenha da razão. Em qualquer outra situação, os viscerais equívocos técnicos existentes e o ambiente político conturbado do país seriam suficientes para interromper a reforma e reiniciar os debates. Os ventos políticos, todavia, sopram noutra direção. A relação entre os Poderes da República está declaradamente estremecida. O PLS 236 foi gestado originariamente no Poder Legislativo, e não no Executivo, como tradicionalmente ocorre entre nós. Isso é um dado relevante ao se observarem os recentes demonstrativos de força do Poder Legislativo em face do Poder Executivo, como a malsinada PEC da Bengala e as controvérsias em torno da sabatina do professor Luiz Edson Fachin, indicado para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal pela presidente. O que a razão desaconselha, parece ser interpretado como uma chance política pelos interessados no projeto. Por isso, a combinação é explosiva: a reforma é tecnicamente ruim, mas politicamente viável. Os reformadores não seguem o exemplo do velho marinheiro, que, durante o nevoeiro, leva o barco devagar. O nevoeiro, ao revés, parece ser a condição climática ideal para o disparate em forma de lei. Que a nau afunde à frente, não parece importar. Nela, como sempre, os direitos do povo brasileiro. Aprovado nos termos em que está, teremos a maior demonstração de que o poder penal, no Brasil, não se exerce em nome do povo, mas contra ele.

ConJur — O professor Miguel Reale Júnior, em entrevista à ConJur, apontou incongruências do projeto, como o Artigo 394, que, prevê pena de um a quatro anos para quem encontra um animal em estado de perigo e não presta socorro. No mesmo texto, omitir socorro a criança extraviada, abandonada ou pessoa ferida prevê pena de um mês. Qual é o risco de aprovar um código assim?
Alaor Leite — O professor Miguel Reale Júnior escolheu apenas um exemplo entre as várias incoerências e contradições existentes do Projeto. O reformador vociferou aos quatro cantos que era preciso reunir todas as leis penais no Código, de modo a evitar desproporções entre as penas. O resultado, todavia, contradiz a promessa. Há incriminações incompreensíveis, como o crime de “ingressar a entrada indevida (?) de aparelho telefônico em estabelecimento prisional” do artigo 311; há crimes previstos duas vezes, como o de incêndio em matas e florestas, previsto com penas diferentes, nos artigos 196, parágrafo 1º, V, e 415; há penas desproporcionais: a pena mínima das lesões corporais seguidas de morte é idêntica à das lesões graves de 3º grau (artigo 129, parágrafos 4º e 3º, respectivamente), conquanto nestas últimas a vítima sobreviva; há dispositivos ociosos: o projeto segue mencionando a ação penal pública condicionada à requisição do Ministro da Justiça (artigo 97, parágrafo 1º), embora a Parte Especial do PLS 236/12 não preveja um só crime cuja persecução esteja sujeita a tal condição... Há fartos exemplos em artigo que escrevi em conjunto com Gustavo Quandt, publicado na ConJur. Tudo após três anos de supostos trabalhos revisionais, o que apenas pode ser definido como desleixo. De minha parte, nunca autorizaria que um engenheiro pouco técnico e desleixado construísse a minha casa.

ConJur — A solução é mudar o projeto ou começar do zero?
Alaor Leite — São tantas as falhas metodológicas e de conteúdo que a única solução razoável é o arquivamento. O reformador, incrivelmente, é inacessível ao argumento. A ciência produziu farto material desde o início da reforma, mas o reformador crê tratar-se de “questão de gosto, de opção”, como quem escolhe entre praia ou montanha para passar as férias. Assim semanifestou, por exemplo, o ex-relator da comissão de juristas, Luiz Carlos Santos Gonçalves. Não. O PLS 236 contém erros e disparates que custarão dias, meses e anos de vida ao cidadão brasileiro. Esse é o preço da vaidade dos reformadores. Em nenhum outro papel as palavras possuem tanto poder: insculpidas no Código Penal, enviam pessoas de carne osso para a viagem — sempre só de ida — às masmorras do sistema penitenciário brasileiro. Fossem humildes, olhariam ao menos para a reforma penal em curso na Argentina e que, ainda que contenha falhas como qualquer lei, é fruto de uma discussão racional e o produto final é compatível com o estado atual das discussões sobre crimes e penas. Há duas leituras possíveis da situação, a primeira, generosa, a segunda, realista: ou os reformadores simplesmente não enxergam os equívocos escandalosos do PLS 236, ou os enxergam muito bem, mas os ignoram, pois prescindem da razão no exercício do poder. Se a primeira leitura for correta, o adiamento da votação prevista é a única medida razoável e a ciência jurídica brasileira estará disposta a conversar, tenho certeza. Se a aprovação ocorrer, não restará nada, senão lembrar do dito inscrito na ilustração de Goya, segundo o qual “o sono da razão produz monstros”. A razão dorme em nossa Casa das Leis.

ConJur — Houve obscurantismo no desenvolvimento do projeto?
Alaor Leite — Algo muito grave está para acontecer: o pior projeto de nossa história está em vias de ser votado em tempo recorde, sem verdadeira discussão pública. Em vez de discutir com a ciência que se manifesta em público, o reformador preferiu adotar sugestões enviadas por e-mail, não debatidas publicamente. Está em voga um certo “lirismo funcionário público com livro de ponto, expediente, protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor”, e que nessa reforma encontrou seu equivalente tecnológico em e-mails, tão educados quanto subservientes, enviados aos reformadores. Ciência e reforma devem ser feitas em público. Ser contra esta reforma não é questão de gosto, mas de virtude e de conhecimento técnico. Ser a favor desta reforma, ao contrário, é ser cúmplice no atentado anunciado contra os direitos de liberdade do povo brasileiro. Não nos deixemos enganar: o empreendimento jurídico-penal, no Brasil, mata, qual queda de avião e desabamento de prédio. 

ConJur — Precisamos de um novo código penal?
Alaor Leite — Precisamos discutir vários temas penais. De minha parte, creio que, apesar de um ou dois defeitos, os dispositivos mais técnicos de nossa Parte Geral, reformados em 1984, estão satisfatórios. Os equívocos podem ser corrigidos via estudos científicos e interpretação judicial. No futuro, pode ser que novos dispositivos ligados à aplicação da lei penal no tempo e no espaço e sobre as formas de responsabilização criminal sejam necessários. Esses dispositivos deverão, todavia, ser elaborados após longa e detalhada discussão, em que todos os atores do sistema de justiça criminal tomem parte. Para ficar com um exemplo: o Código Penal alemão atual, de 1975, é fruto de discussões que se iniciaram na década 50 do século passado. Foram 20 anos de debates, todos documentados. A alteração do regime de aplicação e execução de penas exigiria um estudo prévio, de natureza criminológica, que indicasse o impacto carcerário de cada alteração. Esse estudo seria bem vindo. Somos um país que pune muito, e muito mal.

ConJur — Quais temas devem conduzir os debates?
Alaor Leite — Há alguns grupos de crimes de crimes que exigem, sim, uma revisão. Há temas polêmicos que ocupam o debate público, como o aborto e a criminalização da posse de drogas para uso próprio. Há temas, especialmente sensíveis em nosso país, que merecem igualmente atenção, como os crimes de corrupção no setor público e privado e outros delitos econômicos, como o delito de infidelidade patrimonial, também no setor público e privado. Todos esses temas merecem a atenção do legislador penal — mas de um legislador acessível à razão, que trabalhe em público e que não seja afoito. Nesse empreendimento não poderemos contar com o PLS 236/12. Mais do que isso, uma discussão racional dos temas penais relevantes pressupõe o arquivamento dessa peça legislativa que envergonha o nosso país.
 é chefe de redação da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 13 de maio de 2015, 17h51