"Eu não recearia muito as más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Não há texto de lei que não deixe campo à interpretação.

A lei é morta. O magistrado vivo. É uma grande vantagem que ele tem sobre ela" - Anatole France

sábado, 22 de agosto de 2015

Desmilitarizar a segurança pública é garantir a vida no Estado de Direito

Desmilitarizar a segurança pública é garantir a vida no Estado de Direito

Se o Estado é de Direito, a segurança pública não pode ser militarizada. As democracias exigem, de fato, clara distinção entre as funções dos órgãos policiais e das Forças Armadas[1]. Afinal de contas, a guerra é atividade de militares, nunca o policiamento cidadão. Por óbvio, a segurança pública, em um Estado Democrático de Direito, só pode ser de natureza civil.

É bem verdade que o autoritarismo estatal festeja a militarização do controle social. Não por outra razão essa lógica de combate foi tão reforçada durante os períodos de exceção. Vale lembrar a reformulação na segurança pública brasileira promovida pelo golpe de 1964, com a transferência do policiamento ostensivo das corporações civis para as militares[2], o que permanece até hoje, além da participação direta das Forças Armadas em funções policiais e punitivas[3], dentre outras medidas adotadas para a repressão dos inimigos (políticos) à época.
Nesse contexto, militarização representa o processo de adoção e emprego de modelos, métodos, conceitos, doutrinas, procedimentos e pessoal militar em atividades de natureza policial, conferindo assim natureza bélica às questões de segurança pública[4].
Vê-se, portanto, mesmo nesta leitura preliminar, que militarização não se restringe ao uso de farda ou de armas, à existência de patentes ou ao modelo disciplinar hierárquico de certa instituição. O núcleo da lógica militar reside no extermínio, na ideia de combate ao inimigo (antes político, agora criminoso). A política de segurança, nessa lógica militarizada, transforma-se em tática de guerra, e os órgãos policiais passam a atuar segundo paradigma bélico[5]. As Forças Armadas e as polícias parecem, então, mudar de papel e esquecer as suas diferenças fundamentais[6].
Um breve esclarecimento. É preciso reconhecer que a militarização policial não foi invenção da ditadura brasileira. Até mesmo porque alguns estudos fazem referência a organizações policiais militares em território brasileiro no século XVI e outros no século XIX, quando de fato se criou a primeira unidade de policiamento ostensivo regular e em tempo integral, que foi a Guarda Real de Polícia, em 1809, bastante subordinada ao Exército Nacional. Há ainda quem identifique o início do processo de militarização das polícias brasileiras com o Decreto 3.598/1866, que promove a divisão das instituições em civil e militar; fenômeno posteriormente intensificado pelos trabalhos da Missão Militar Francesa, em 1906, com as forças policiais paulistas na reformulação de sua disciplina, militarização e formação de uma nova cultura[7].
Contudo, inegável o reforço ao viés militarizado da segurança pública, conforme lógica bélica de combate e extermínio de inimigos, durante o período da ditadura (ou “exceção brasileira”)[8]. Esse foi, sem dúvida, o momento de consolidação da militarização do controle social e da violência estatal. O “inimigo comunista” demandou alteração radical na estrutura de segurança, cuja mostra evidente fora a subordinação de todas as polícias estaduais ao controle e coordenação do Exército, conforme dispunha o Decreto-Lei 667/69[9]. Explica Soares que “a ditadura militar e civil de 1964 simplesmente reorganizou os aparatos policiais, intensificou sua tradicional violência, autorizando-a e adestrando-a, e expandiu o espectro de sua abrangência, que passou a incluir militantes de classe média”[10].
Ocorre que esse primado autoritário foi incorporado pela Constituição de 1988, tida como “cidadã”, na forma de “exceção permanente na segurança pública”[11]. Forças Armadas e segurança pública foram reunidas sob o mesmo título na estrutura normativa constitucional, atualmente denominado Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas. Manteve-se a autonomia das Forças Armadas, consideradas última instância de garantia dos poderes republicanos (artigo 142, caput, da CRFB), bem como o controle do Exército, ainda que parcial, sobre as Polícias Militares (artigo 144, parágrafo 6º, da CRFB). Essas, por sua vez, permaneceram como responsáveis pelo policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública (artigo 144, parágrafo 5º, da CRFB) ao mesmo tempo em que constituem força auxiliar e reserva do Exército (artigo 144, parágrafo 6º, da CRFB).
Vale lembrar que o contrário também poderá ocorrer. A LC 97/99, que dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas, permite a sua atuação, “na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais”, nos termos das “diretrizes baixadas em ato do presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no artigo 144 da Constituição” (artigo 15, parágrafo 2º, da referida Lei). Prevê, ademais, como atribuições subsidiárias das Forças Armadas, ações preventivas e repressivas de segurança, na faixa de fronteira, contra “delitos transfronteiriços e ambientais”, o que pode incluir, dentre outras, atividades de “patrulhamento” e “revista de pessoas, de veículos terrestres, de embarcações e de aeronaves” (artigo 16-A da referida Lei).  
A tragédia normativa só não é pior que o drama de sua realidade prática, marcada por flagrante desrespeito aos direitos fundamentais e elevado nível de incivilidade mediante perniciosa simbiose autoritária entre órgãos do Poder Judiciário, Ministério Público, polícia e Forças Armadas.
As famosas Operações de Garantia da Lei e da Ordem[12], já realizadas em território nacional e admitidas oficialmente pelo governo brasileiro, podem ser tomadas como exemplo. A ocupação militarizada de espaços territoriais, normalmente acompanhada de medidas típicas de exceção, transforma-se em política de segurança pública em face da população de “consumidores falhos” (Bauman) que marcam a “ralé brasileira” (Jessé Souza). Revistas indiscriminadas, conduções coercitivas para averiguação, mandados de busca e apreensão coletivos e outros abusos constituem os meios operacionais do Estado de Exceção (Agamben) militarizado no Brasil, cujos efeitos genocidas podem ser facilmente percebidos na atual política de “guerra às drogas”.
Sublinhe-se a questão central. O problema da militarização na segurança pública brasileira não se limita às polícias, tampouco a um ente específico. É evidente que a polícia precisa ser desmilitarizada, como destaca a Anistia Internacional em seu respeitado informe sobre O Estado dos Direitos Humanos no Mundo (versão 2014/2015) e reconhecem os próprios policiais brasileiros em pesquisa recente, mas não é só. É preciso afastar, na realidade, a “militarização ideológica da segurança pública”[13]. A efetiva desmilitarização está para além da substituição de nomenclatura da Polícia Militar ou mesmo de sua completa desvinculação em relação ao exército.
Segundo Karam, um debate sério sobre desmilitarização não pode se concentrar apenas na ação dos estigmatizados policiais e blindar a esfera de responsabilidade do Ministério Público, do Poder Judiciário, de governantes e legisladores, da mídia, da sociedade como um todo[14]. O desafio está em romper com esse “verdadeiro habitus militarizado nas questões que envolvem tanto o direito à segurança quanto a segurança dos direitos”[15]. Ou seja: superar a completa negação da alteridade que informa uma política de segurança pública entorpecida pelo ideal militar[16].
Esse é o ponto fulcral para o estabelecimento de qualquer tipo de resistência democrática. É preciso operar um verdadeiro giro paradigmático conforme o primado da razão ético-crítica. Isso significa estruturar, no âmbito normativo e prático, um sistema de segurança pública desmilitarizado pela consideração maior da vida humana. Vida humana que, segundo Dussel, “não é um conceito, uma ideia, nem um horizonte abstrato, mas o modo de realidade de cada ser humano concreto, condição absoluta da ética e exigência de toda libertação”[17]. Em suma: trata-se de uma fuga do paradigma da guerra e da morte para se estabelecer a partir da cidadania e da vida.   

[1] ZAVERUCHA, Jorge. Relações Civil-Militares: o Legado Autoritário da Constituição Brasileira de 1988. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 52.
[2] ZAVERUCHA, Jorge. Relações Civil-Militares..., p. 56.
[3] SCHWARCZ, Lilia Mortiz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 467, 468.
[4] CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Questões preliminares para a discussão de uma proposta de diretrizes constitucionais sobre a segurança pública. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 6, nº. 22, p. 139-182, 1998.
[5] L’HEUILLET, Hélène. Alta Polícia, Baixa Política. Cruz Quebrada, Portugal: Editorial Notícias, 2001, p. 199.
[6] ZACCONE, Orlando. Indignos de Vida: a forma juridica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. 1 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2015, p. 210.
[7] PEDROSO, Regina Célia. Estado Autoritário e Ideologia Policial. Coleção Histórias da Intolerância. São Paulo: FAPESP, 2005. p. 130.
[8] TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 10.
[9] SILVEIRA, Felipe Lazzari da. Reflexões sobre a Desmilitarização e Unificação das Polícias Brasileiras. In: IV Congresso Internacional de Ciências Criminais da PUC-RS, 2013, Porto Alegre. Anais do IV Congresso Internacional de Ciências Criminais. Porto Alegre: EDIPUC/RS, 2013.
[10] SOARES, Luiz Eduardo. Por que tem sido tão difícil mudar as polícias?. In: ____ (et. al). Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 28.
[11] ZACCONE, Orlando. Indignos de Vida..., p. 248.
[12] BRASIL. Portaria Normativa n. 186/MD, de 31 de Janeiro de 2014,publicada no Diário Oficial da União n. 23, de 03 de Fevereiro de 2014. Disponível em: <www.defesa.gov.br/arquivos/2014/mes02/md33_m_10_glo_2ed_2014.pdf>. Acesso em 05.04.2014.
[13] SILVA, Jorge da. Militarização da Segurança Pública e a Reforma da Polícia. In: Bustamante, Ricardo; Sodré, Paulo César (Org.). Ensaios Jurídicos: o direito em revista. Rio de Janeiro: Ibaj, 1996, p. 497-519.
[14] KARAM, Maria Lucia. Violência, Militarização e “Guerra às Drogas”. In: ____ (et. al). Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 34 - 38.
[15] CASARA, Rubens R.R.. Militarização da Segurança: um sintoma da tradição autoritária brasileira. In: SILVA, Givanildo Manoel de.Desmilitarização da Polícia e da Política: uma resposta que virá das ruas. Uberlândia: Pueblo, 2015, p. 149.
[16] CASARA, Rubens R.R.. Militarização da Segurança..., p. 152.
[17] DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação na Idade da Globalização e da Exclusão. 4 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012, p. 11.
 é delegado de polícia civil em Santa Catarina, mestrando em Direito pela UFPR, especialista em Direito Penal e Criminologia, além de professor de Direito Processual Penal em cursos de graduação e pós-graduação.

Revista Consultor Jurídico, 11 de agosto de 2015, 8h01

Ação sobre autonomia da DPU já conta com 12 amici curiae

INTERESSE NA CAUSA

Ação sobre autonomia da DPU já conta com 12 amici curiae

A ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber admitiu nesta sexta-feira (14/8) a participação dos estados do Acre e do Espírito Santo comoamicus curiae na ação que discute a autonomia da Defensoria Pública da União. Com isso, já são doze amici curiae aceitos na causa.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade foi movida pela Presidência da República contra a Emenda Constitucional 74/2013, que deu autonomia administrativa e financeira à DPU e, consequentemente, a deu poderes para a entidade propor alterações legislativas em seu nome.
De acordo com a inicial da ADI, a Emenda 74, que se originou da Proposta de Emenda à Constituição 207/2012, padece de vício de iniciativa. Diz a ação que a Constituição Federal diz que o presidente da República tem “competência privativa” para “a proposição de leis que disponham sobre regime jurídico de servidores públicos da União”. A PEC 207 é de autoria de um parlamentar e, portanto, tem origem no Legislativo, e não no Executivo Federal.
Em entrevista à revista Consultor Jurídico, o advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, criticou a ideia de que a autonomia administrativa resolve todos os problemas e os objetivos dessa medida. “A prática dessa autonomia tem sido não para a finalidade do órgão, mas para a concessão de benefícios. É o exercício da finalidade da autonomia para fins internos. Na Defensoria Pública da União, as resoluções que estão propondo são só para aumento, férias, salário, auxílio etc”, disse então.
Por outro lado, DPU, a Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadef) e a União dos Advogados Públicos Federais do Brasil (Unafe), ao pedirem para ser amici curiae na mesma ação, alegaram que a iniciativa do Executivo busca apenas interromper o processo de fortalecimento da Defensoria e evitar o pagamento de novos benefícios.
Já a Apadep, que representa os defensores públicos paulistas, apontou que a EC 74/2013 não viola a Constituição, pois “é cristalino o entendimento de que não existe iniciativa privativa no processo legislativo das emendas constitucionais”.  
Veja a lista de amicus curiae aceitos na ADI 5.296
Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (Anadef)
Defensoria Pública da União (DPU)
União dos Advogados Públicos Federais do Brasil (Unafe)
Partido Popular Socialista (PPS)
Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz) 
Defensoria Pública do Distrito Federal
Associação Nacional de Defensores Públicos (Anadep)
Solidariedade
Associação Nacional dos Advogados da União (Anauni)
Estado de São Paulo
Estado do Acre
Estado do Espírito Santo
ADI 5.295
Revista Consultor Jurídico, 16 de agosto de 2015, 13h00

MPF denuncia policiais que apontaram erros e problemas na operação "lava jato"

FOGO AMIGO

MPF denuncia policiais que apontaram erros e problemas na operação "lava jato"

Um delegado e um agente da Polícia Federal foram denunciados criminalmente por terem apontado a existência de grampos ilegais na cela do doleiro Alberto Youssef, preso na operação "lava jato", e vícios na sindicância aberta para conduzir o caso, de acordo com o blog do jornalista Fausto Macedo, do O Estado de S. Paulo.
O Ministério Público Federal denunciou o delegado Mário Renato Castanheira Fanton e o agente Dalmey Fernando Werlang criminalmente por calúnia e difamação.  Eles são acusados de se associarem “para ofender a honra dos colegas”. 
Segundo a denúncia, os policiais acusados tinham como objetivo desestabilizar as apurações e tentar algum tipo de nulidade legal na condução do caso, que investiga denúncias de corrupção na Petrobras
O MPF afirma que nenhuma das irregularidades apontadas pelos dois acusados existiram.  “Ao contrário do que insistem os acusados em dizer, não houve nenhuma espécie de coação″, diz a acusação, que toma ares de defesa da "lava jato". 
A denúncia narra que, em março de 2015, o delegado Fanton, lotado na delegacia da PF em Bauru (SP), foi para Curitiba para cumprir “missão” de “conteúdo sigiloso” na Superintendência da Polícia Federal no Paraná. Mas não foi dada continuidade à missão e ele teve que retornar a Bauru.
Nesse período, o agente Werlang atuava no Núcleo de Inteligência da PF (NIP), em Curitiba, comandado pela delegada Daniele Rodrigues, que, segundo o MPF, também seria alvo das supostas calúnias.
Os acusados teriam se encontrado entre os dias 2 e 3 de maio, “imediatamente após o afastamento de Fanton”. “Após esses encontros, associaram-se para ofender a honra dos colegas que entendiam ser os responsáveis pelo afastamento”, registra a denúncia. 
A partir de então, passaram a apontar problemas no caso da escuta colocada na cela de Alberto Youssef e na sindicância que apurou o caso. Eles teriam se envolvido em um suposto plano que incluiria um depoimento colhido de forma ilegal de um agente. Em depoimento à Corregedoria da PF, Fanton afirmou ter havido coação a um terceiro agente envolvido no episódio da escuta na cela de Youssef, chamado Romildo.
O delegado Fanton levou ao Ministério Público Federal acusação de que três delegados das investigações da "lava jato" haviam cometido “coação no curso do processo”. Na Corregedoria-Geral da Polícia Federal, Fanton também disse que um agente federal sofreu algum tipo de pressão para não indicar eventuais culpados “no decorrer da sindicância”.
Na denúncia, o procurador do Grupo de Controle Externo da Atividade Policial do MPF defende o órgão e diz que “ao contrário do que insistem os acusados em dizer, não houve nenhuma espécie de coação sobre o agente Romildo no que diz respeito ao seu depoimento perante a sindicância realizada no ano de 2014″. 
Revista Consultor Jurídico, 15 de agosto de 2015, 19h19