"Eu não recearia muito as más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Não há texto de lei que não deixe campo à interpretação.

A lei é morta. O magistrado vivo. É uma grande vantagem que ele tem sobre ela" - Anatole France

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Por trás da baixa elucidação de crimes no Brasil


FERNANDO CAPANO

Por trás da baixa elucidação de crimes no Brasil


Ouvir o texto

A baixa taxa de elucidação de crimes no Brasil é frequentemente discutida quando se fala na eficiência das políticas de segurança pública. De acordo com os números divulgados pelo Governo Federal, menos de 8% dos crimes são solucionados no país.
o tema não ficou fora do Seminário Internacional de Segurança Pública ocorrido recentemente na Câmara dos Deputados em Brasília, ocasião em que foi defendido o chamado "ciclo completo de polícia", modelo em que todas as Polícias exercem o poder de investigação, cuja atribuição constitucional hoje em dia cabe apenas à Polícia Civil.
Antes de mais nada, é preciso alertar que a adoção do 'ciclo completo de polícia' demandaria um novo marco legislativo que mudasse os valores contemplados no artigo 144 da Constituição Federal. Neste sentido, seria necessário discutir e aprovar uma PEC, com todas as dificuldades inerentes a uma mudança de lógica constitucional. Em outras palavras, a solução, pela via legislativa, não é tão simples como parece.
O legislador constituinte, por ocasião do nosso Pacto Social de 1988, preferiu conceder competências bem específicas para cada umas das polícias. Assim, grosso modo, à Polícia Civil cabe a atividade de polícia judiciária, responsável prioritária pela condução das investigações e do inquérito policial. De outro lado, a atividade policial ostensiva-repressiva, cujo foco é a prevenção de delitos e a manutenção da ordem pública destina-se à Polícia Militar.
A nosso ver, a estrutura atual do serviço de segurança pública não nos permitiria adotar com vantagem o 'ciclo completo de polícia'. A razão é a mesma do ditado popular que nos ensina que "cachorro de dois donos, morre de fome", uma vez que o risco de ter as polícias cuidando de tudo (atividade repressiva e atividade judiciária) poderia ocasionar, ao revés do pretendido pelos defensores da ideia, a falta de atendimento regular e organizado das áreas cujas competências estão hoje bem definidas.
A baixa percentagem de elucidação de crimes está essencialmente ligada à falta de aparelhamento das Polícias em suas atividades-fim, sejam elas civis ou militares. Exemplo disso é o que ocorre no Estado de São Paulo, em que menos de 20% dos investigadores da Polícia Civil, de acordo com dados apurados pelos órgãos de classe da categoria, está de fato exercendo a atividade de polícia judiciária, elucidando a autoria dos crimes cometidos.
A grande maioria dos investigadores está, em verdade, envolvida em atividades que fogem completamente de seu mister, servindo como motoristas, datilógrafos, telefonistas ou até mesmo fazendo a segurança da Delegacia, visto temerem assaltos por parte dos criminosos.
A solução não é mudar a lógica constitucional, eliminando a separação de atribuições em que tudo ficaria a cargo de todos e sim um maior investimento no material humano e aparelhamento das Polícias. Em países como Estados Unidos, a taxa de elucidação de crimes é alta muito mais pela valorização da instituição policial, do que por contar com o ciclo completo de polícia.
Pergunte a algum cidadão norte-americano médio acerca de sua percepção sobre a Polícia e perceba, no mais das vezes, o grau de respeitabilidade, inclusive do ponto de vista cultural, que gozam os policiais naquela sociedade. Faça a mesma pergunta aqui no Brasil e, a exceção talvez da Polícia Federal, corremos o risco de ouvir, em uníssono, na melhor das hipóteses: - Coxinhas!
No Brasil, segundo dados do governo federal, o fato de apenas 10% dos 5.570 municípios contarem com delegacias de polícia, com os policiais em verdadeira penúria, diz muito mais sobre a baixa taxa de elucidação de crimes do que a ausência do modelo do 'ciclo completo de polícia'.
Até agora, quer seja nas discussões em fóruns de segurança pública, quer seja em resoluções, normas ou leis editadas pelos governos, não se tem tocado o 'dedo na ferida'. Assim, a falta de aparelhamento, os baixos vencimentos (em razão inversamente proporcional ao risco assumido pelos policiais) e a ausência de investimento no material humano, não são, nem de longe, assuntos que parecem de fato preocupar nossas autoridades. Frequentemente, as propostas se baseiam na criação de soluções aparentemente mágicas, sem levar em consideração problemas comezinhos como os aqui mencionados.
São louváveis as tentativas de melhorar nossa política estatal de segurança pública. No entanto, para além da simples mudança legislativa, ainda que de âmbito constitucional, é preciso combater as causas que estão levando nossos órgãos policiais à falência.
FERNANDO CAPANO, 37, é especialista em Segurança Pública, sócio do Capano, Passafaro Advogados e membro da Comissão Estadual de Direito Militar da OAB-SP
*
PARTICIPAÇÃO
Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@uol.com.br.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. 


Acessado e disponível na Internet em 02/09/2015 no endereço - 
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2015/09/1674572-por-tras-da-baixa-elucidacao-de-crimes-no-brasil.shtml

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Nacionalidade portuguesa: dispensa de comprovação da ligação efetiva

Nacionalidade portuguesa: dispensa de comprovação da ligação efetiva

Publicado por Rui da Fonseca e Castro - 1 dia atrás
6

O critério da “ligação efetiva”

O maior obstáculo com que determinadas pessoas se deparam quando está em causa a aquisição da nacionalidade portuguesa traduz-se no critério da “ligação efetiva”.

Situações abrangidas

Como se sabe, estão sujeitas ao crivo da “ligação efetiva”, nos termos do disposto no artigo 9.º da Lei da Nacionalidade, as situações de aquisição da nacionalidade por efeito da vontade e da adoção, o que significa que se encontram abrangidos os seguintes casos:
aquisição por filhos menores ou incapazes de mãe ou pai que adquira a nacionalidade portuguesa (artigo 2.º da Lei da Nacionalidade);
aquisição em caso de casamento ou união de fato (artigo 3.º da Lei da Nacionalidade);
aquisição após perda da nacionalidade portuguesa (artigo 4.º da Lei da Nacionalidade);
aquisição na sequência de adoção plena (artigo 5.º da Lei da Nacionalidade).
Mais recentemente, a Lei Orgânica n.º 9/2015, de 29 de julho, veio conferir aos netos de portugueses o direito à nacionalidade portuguesa originária, mediante a comprovação de uma “ligação efetiva” com Portugal, a qual, porém, ainda não se encontra em vigor (vigorando, por enquanto, relativamente aos netos, a aquisição por naturalização).

O que é a “ligação efetiva”?

ligação efetiva é uma cláusula geral, ou seja, um conceito indeterminado, que funciona como requisito do direito à nacionalidade portuguesa, consubstanciando-se na necessidade do interessado possuir laços de pertença à comunidade portuguesa.

Evolução legislativa

Na sua versão original, o artigo 9.º, alínea a), da Lei da Nacionalidade, dispunha que“constituem fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa: a) A manifesta inexistência de qualquer ligação efectiva à comunidade nacional”.
No âmbito de tal regime, entendia a jurisprudência portuguesa que caberia ao Estado, através do Ministério Público, provar que o requerente manifestamente carecia de qualquer ligação efetiva à comunidade nacional. Noutras palavras, no âmbito de ação judicial de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, era do Ministério Público o ônus da prova do fato impeditivo do direito, cabendo apenas ao requerente do processo administrativo declarar que possuía tal ligação efetiva.
Uma importante alteração veio a ser introduzida pela Lei n.º 25/94, de 19/08, passando o artigo 9.º da Lei da Nacionalidade a dispor que constituía fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa “a não comprovação, pelo interessado, de ligação efectiva à comunidade nacional”. O artigo 22 do Regulamento da Lei da Nacionalidade Portuguesa foi também concomitantemente alterado no sentido de estabelecer a necessidade do interessado instruir o procedimento com meios de prova referentes à sua ligação efetiva com a comunidade portuguesa.
Finalmente, a Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril, veio proceder a uma nova inversão da questão do ônus da prova do preenchimento do critério da ligação efetiva. Com efeito, o referido artigo 9.º da Lei da Nacionalidade voltou a ser alterado, desta vez no sentido de passar a constituir fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa “a inexistência de ligação efectiva à comunidade nacional”. Paralelamente, o Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de dezembro, aprovou um novo Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, o qual, no respectivo artigo 57, n.º 1, estabelece que “quem requeira a aquisição da nacionalidade portuguesa, por efeito da vontade ou por adopção, deve pronunciar-se sobre a existência de ligação efectiva à comunidade nacional”, não estipulando qualquer necessidade de instrução do procedimento com elementos de prova referentes ao mencionado critério.
Portanto, de acordo com o atual regime, o interessado limita-se a pronunciar-se, por declaração, sobre a existência de ligação efetiva à comunidade Portuguesa, não se lhe exigindo que comprove essa ligação.
Caberá, assim, ao Ministério Público instaurar ação de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, cabendo-lhe alegar e provar fatos que demonstrem que o requerente (réu na ação) não possui ligação efetiva à comunidade portuguesa.
Este entendimento tem vindo a ser seguido pela jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal Administrativo português, podendo exemplificar-se com os Acórdãos de 28/05/2014 e 18/06/2014 e 25/06/2015, proferidos no âmbito dos processos, respectivamente, 01548/14, 01053/14 e 0618/15, os quais podem ser consultados em www.dgsi.pt.

Efeito prático

O grande efeito prático deste cenário é a desnecessidade do interessado comprovar a sua ligação efetiva à comunidade portuguesa, cabendo ao Ministério Público, se assim entender, instaurar ação de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, devendo, para o efeito, alegar e provar fatos constitutivos da inexistência da ligação efetiva.
Tendo em conta que ainda não existe acórdão uniformizador de jurisprudência sobre esta questão, não são nulas as possibilidades de procedência da ação instaurada pelo Ministério Público, mas trata-se, cada vez mais, de um risco residual.
Desta forma, casos que anteriormente eram considerados inviáveis, pois o interessado não tinha maneira de comprovar uma ligação efetiva com Portugal, ganham agora uma nova esperança.
Amplie seu estudo

Acessado e disponível na Internet em 01/09/2015 no endereço -
http://ruicastro.jusbrasil.com.br/artigos/225966785/nacionalidade-portuguesa-dispensa-de-comprovacao-da-ligacao-efetiva

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Solução para a crise carcerária tem significativo reflexo orçamentário

CONTAS À VISTA

Solução para a crise carcerária tem significativo reflexo orçamentário

A situação carcerária no Brasil é um problema antigo, grave e recorrente. A questão voltou ao debate no mundo jurídico com a decisão do último dia 13 de agosto em que o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário 592.581, nos termos do voto do relator, ministro Ricardo Lewandowski, determinou ao Poder Executivo a realização de obras em estabelecimento prisional, dadas as condições extremamente precárias em que se encontrava[1].Uma decisão interferindo diretamente em política pública que envolve montantes expressivos de recursos públicos, tendo, portanto, significativos reflexos orçamentários.

As políticas públicas voltadas à administração penitenciária estão entre as que mais dependem de recursos públicos para serem bem-sucedidas, fazendo dos instrumentos financeiros à disposição do Estado as “armas” no combate aos permanentes problemas que afligem o setor, o que traz os orçamentos públicos para o centro do debate.
E estão entre as mais complexas no âmbito da administração pública, por envolver os entes da Federação e a participação de todos os poderes, o que, evidentemente, exige uma nem sempre fácil “engenharia” para viabilizar a cooperação entre entes, órgãos e instituições dotados de autonomia, tornando necessária uma integração intersetorial, interinstitucional e federativa na sua concepção, organização, implementação, gestão e execução, esperando-se dos entes federados “um indispensável senso de cooperação”, como bem colocado pelo ministro Gilmar Mendes[2]. O próprio governo federal reconhece que “a situação carcerária é uma das questões mais complexas da realidade social brasileira (...). O equacionamento de seus problemas exige, necessariamente, o envolvimento dos três Poderes da República, em todos os níveis da Federação, além de se relacionar diretamente com o que a sociedade espera do Estado como ator de pacificação social[3]”.
A administração do sistema prisional coloca à prova a capacidade de o Estado fazer valer a Constituição, uma vez que nela está expresso, entre os direitos e garantias fundamentais, que “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral” (Constituição, artigo 5º, XLIX), além de impedir penas cruéis (artigo 5º, XLVII) e estabelecer que a pena seja cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, idade e sexo do apenado (artigo 5º, XLVIII), entre outros. E não é o que se tem observado, diante das muitas constatações de situações degradantes, como o próprio acórdão citado menciona. Estando o encarcerado sob a custódia do Estado, este se torna integralmente responsável por fazer valer os direitos fundamentais previstos na Constituição. O que não é fácil e exige do Poder Público que, sem prejuízo das inúmeras e legítimas demandas de toda a sociedade, em áreas prioritárias como saúde, educação, segurança pública e outras que também importam em elevado aporte de recursos, não possa descuidar dessa que é uma determinação constitucional voltada a assegurar direitos fundamentais para pessoas que estão sob sua exclusiva guarda e responsabilidade, colocando nos ombros dos governantes o ônus de fazer as chamadas “escolhas trágicas”.
A adequada alocação dos recursos públicos, associada à gestão eficiente, de forma cooperativa entre os entes federados e os poderes, torna-se fundamental para que se possa dar uma solução para a situação carcerária. Convém não esquecer que resolver esse problema não é somente essencial para manter a dignidade daqueles que estão presos, mas também uma forma de permitir que a pena seja efetivamente um instrumento de ressocialização, e consequente pacificação social, em benefício de toda a sociedade.
No âmbito financeiro, as políticas públicas voltadas à situação carcerária abrangem a participação de todos os entes da Federação, especialmente a União e os Estados[4], havendo aporte de recursos dos orçamentos de todos os entes federados envolvidos. Releva destacar também a intersetorialidade das políticas públicas do setor, que incluem questões de saúde pública, educação, segurança e outras, exigindo também uma coordenação de várias áreas da administração pública.
Destaca-se como principal instrumento financeiro o Funpen (Fundo Penitenciário Nacional), criado pela Lei Complementar 79, de 7 de janeiro de 1994[5], fundo de natureza contábil que integra o orçamento fiscal da União, e principal fonte de recursos para as ações governamentais de grande parte dos entes federados, por meio de transferências voluntárias, via convênios e, no caso de obras pública, por contratos de repasse[6]. Faz dos fundos e transferências intergovernamentais voluntárias os instrumentos por excelência que permitem operacionalizar o financiamento desta política pública de forma mais eficiente em nosso federalismo cooperativo.
Chama a atenção saber que boa parte do orçamento deste fundo não é executada. Ante a atual situação de precariedade do nosso sistema prisional, não há como se admitir que, havendo recursos disponíveis, não sejam utilizados, o que se constata pelo frequente contingenciamento das dotações orçamentárias do Funpen, que já vem de longa data[7]. Põe por terra eventuais argumentações pela aplicação da teoria da reserva do possível como justificativa para o não atendimento das necessidades do setor, não somente em razão da evidente prioridade ante as situações de flagrante violação do princípio da dignidade humana, como também pela impossibilidade de se alegar falta de recursos que estão contemplados no orçamento público.
Além da melhor adequação na captação e distribuição dos recursos, nunca se pode esquecer o aperfeiçoamento na gestão pública, repleta de falhas nesse setor, por deficiência no planejamento, ausência de boa governança, ações improvisadas, desinteresse político, falta de capacitação específica de gestores, somando-se fatores que levam a uma situação caótica, como reconheceram recentemente vários especialistas no tema[8]. Pouco vale destinar mais recursos se forem mal utilizados, tornando a gestão mais eficiente uma necessidade tão premente quanto o maior aporte de dinheiro[9].
Há necessidade de se dar especial atenção ao problema, que é potencialmente muito grave, dado o crônico déficit de vagas no sistema carcerário[10], que pode se agravar muito, se não forem implementadas ações estruturais de grande porte e alto custo. Ainda que se tenham tomado medidas recentes de grande relevância em termos de Justiça, e colaborado para reduzir o encarceramento indevido, como os mutirões carcerários e as recém-implantadas audiências de custódia[11], responsáveis, respectivamente, por não deixar pessoas presas indevidamente, liberando-as quando cabível, e evitando que fossem encarceradas desnecessariamente, o problema persiste. Principalmente por se constatar haver dezenas de milhares de mandados de prisão não cumpridos[12], e uma maior eficiência da administração pública na captura de fugitivos levaria a um colapso do sistema, que já conta com mais de 600 mil presos, segundo levantamento recente[13].
A persistência dessa situação insustentável sob todos os pontos de vista — humano, social, jurídico etc. — levou mais uma vez o Poder Judiciário a ser chamado para interferir na gestão pública, compelindo o Poder Executivo a promover as ações governamentais necessárias para assegurar os direitos fundamentais violados. E respondeu asseverando, em repercussão geral, que “é lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais para dar efetividade ao postulado da dignidade da pessoa humana e assegurar aos detentos o respeito à sua integridade física e moral, nos termos do que preceitua o art. 5º, XLIX, da Constituição Federal, não sendo oponível à decisão o argumento da reserva do possível nem o princípio da separação dos poderes” (RE 592.581, relator ministro Ricardo Lewandowski, j. 13.8.2015).
Mas não é só. Recentemente protocolada[14], está em tramitação a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347, movida pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Mais uma oportunidade para que o Poder Judiciário se pronuncie, dessa vez para declarar o “estado de coisas inconstitucional” do sistema penitenciário brasileiro e, ao final, compelir o Poder Público a tomar uma série de medidas, de natureza cautelar e em caráter definitivo, voltadas a equacionar as “gravíssimas violações dos direitos fundamentais dos presos brasileiros, em seu proveito e em prol da segurança de toda a sociedade”. Entre elas se destacam, no pedido inicial, as medidas de natureza financeira, como impor “o imediato descontingenciamento das verbas existentes no Fundo Penitenciário Nacional – Funpen, e vede à União Federal a realização de novos contingenciamentos, até que se reconheça a superação do estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro”; determinar ao governo federal que elabore, em três meses, um plano nacional visando a superação dos problemas levantados, no prazo de três anos, plano esse que deve conter a previsão de recursos necessários para a implementação de suas propostas; em seguida, determinar aos Estados que elaborem os respectivos planos, para execução em dois anos, também contemplando a previsão de recursos e cronograma de efetivação das propostas.
Iniciativa ousada e pioneira no Brasil, a medida judicial já foi tomada em outros países, com destaque para a Colômbia, onde a Corte Constitucional já se pronunciou favoravelmente em pedidos análogos, estabelecendo parâmetros e reconhecendo o “estado inconstitucional de coisas” para rejeitar a alegação de insuficiência orçamentária como justificativa para se abster de proteger direitos fundamentais e determinando que sejam tomadas medidas administrativas e financeiras voltadas a tornar efetivos esses direitos fundamentais[15].
Seria melhor que Constituição estivesse sendo cumprida, sem necessidade de recorrer ao Poder Judiciário para que se façam valer e ver respeitados os direitos e as garantias fundamentais nela previstos. No entanto, ante a inércia estatal, que nesse caso vem de longa data e se mostra evidente, com graves consequências sociais, é um caminho que se mostra plausível e viável, e pode colaborar em muito para que se avance em direção à solução desses graves problemas, como já se tem observado nas áreas da saúde e da educação.

[1]Por unanimidade, a Corte Suprema cassou o acórdão do Tribunal de origem (TJ-RS), que havia decidido não competir ao Poder Judiciário determinar ao Poder Executivo a realização de obras em estabelecimento prisional, por configurar invasão indevida em seu campo decisório, e manteve a decisão do juízo de primeiro grau, reconhecendo a procedência do pedido formulado pelo Ministério Público.
[2]Segurança Pública e Justiça Criminal, in Consultor Jurídico, publicada e disponível desde 4 de abril de 2015.
[3]BRASIL. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento nacional de informações penitenciárias – INFOPEN. Brasília: Ministério da Justiça – DEPEN, junho de 2014, p. 6.
[4]Compreendendo-se sempre, ao mencionar os Estados, também o Distrito Federal.
[5]E regulamentado pelo Decreto 1093, de 23 de março de 1994.
[6]Ainda que não represente, em termos quantitativos, os valores mais expressivos, tendo em vista que não incluem as despesas com pessoal, como já destaquei em coluna anterior (Financiamento da segurança pública precisa de atenção, publicada em 6 de maio de 2014).
[7]Apesar do déficit de 200 mil vagas, Fundo Penitenciário tem R$ 1 bi em caixa  dinheiro não é o problema principal em crise do sistema penitenciário, por Jailton de Carvalho, in O Globo, em 16.1.2014; Fundo penitenciário é alvo de contingenciamentos do governo, in Folha de S. Paulo, em 20.2.2001.
[8]Sistema penitenciário é exemplo de gestão ineficiente no País, in Estadão, em 17.3.2015.
[9]Questão para a qual já chamei a atenção na coluna Não falta dinheiro à administração pública, falta gestão, publicada em 31 de julho de 2012.
[10] A crise do sistema prisional, in Estadão, em 9.6.2015. Atualmente o déficit de vagas é de 194.650, segundo o Ministério da Justiça (http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMID364AC56ADE924046B46C6B9CC447B586PTBRNN.htm).
[11]Entre outras medidas, como a realização de campanhas em favor da ressocialização, estabelecimento de parcerias com a sociedade civil para apoiar as ações de reinserção, criação de banco de oportunidades de trabalho, educação e capacitação profissional e o acompanhamento dos indicadores e metas de reinserção, e a efetiva participação do Conselho Nacional de Justiça nessa área, como bem destacado pelo ministro Gilmar Mendes (MENDES, Gilmar. Segurança pública e a responsabilidade do Judiciário, in Consultor Jurídico, publicada e disponível desde 5 de abril de 2014). E também a realização de audiências por videoconferência, a imposição de penas alternativas, possibilidade de parcerias público-privadas na construção de presídios, todas sendo medidas que podem colaborar para se observar a economicidade na gestão pública neste setor, como já mencionei na coluna anteriormente citada (Financiamento da segurança pública precisa de atenção). 
[12]Segundo informações do Conselho Nacional de Justiça em 2013, havia à época mais de 192 mil mandados de prisão aguardando cumprimento (http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/59868-brasil-tem-mais-de-192-mil-mandados-de-prisao-aguardando-cumprimento).
[13]O Brasil conta com uma população prisional de 607.731 pessoas, segundo o Infopen, já citado anteriormente, p. 12.
[14]PSOL pede intervenção do Supremo no sistema carcerário, in Consultor Jurídico, publicada e disponível desde 28 de maio de 2015.
[15]Como bem explicitado pelo jurista argentino Horacio Corti (CORTI, Horacio G. Derechos fundamentales y pressupuesto público: uma renovada relación em el marco del neoconstitucionalismo periférico. In CONTI, José Mauricio; SCAFF, Fernando F. Orçamentos públicos e Direito Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, especialmente páginas 170-174). Veja-se também a petição inicial da citada ADPF 347.

 é juiz de Direito em São Paulo, professor associado da Faculdade de Direito da USP, doutor e livre-docente em Direito Financeiro pela USP
Revista Consultor Jurídico, 25 de agosto de 2015, 8h00