"Eu não recearia muito as más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Não há texto de lei que não deixe campo à interpretação.

A lei é morta. O magistrado vivo. É uma grande vantagem que ele tem sobre ela" - Anatole France

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Condenação não pode se valer apenas de delação premiada, decide TJ-SP


INTERROGATÓRIO NÃO É DEPOIMENTO

Condenação não pode se valer apenas 
de delação premiada, decide TJ-SP

A condenação do acusado de um crime não pode tomar como base apenas uma delação, ainda mais quando o autor das alegações é corréu na ação. Assim entendeu o a 5ª Câmara Criminal Extraordinária do Tribunal de Justiça de São Paulo ao absolver um réu que era julgado por receptação de carga roubada.
No caso, o réu havia sido condenado a quatro anos e quatro meses de prisão apenas com base no depoimento do corréu, que tinha afirmado que o sentenciado era o responsável por receber carros que eram enviados ilegalmente. Com a condenação, o acusado, que foi representado pelo advogado Daniel Bialski, apresentou recurso, contestando a prova usada na sentença.
Ao analisar o caso, o relator do processo, desembargador Francisco Bruno, citou o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal Sepúlveda Pertence ao afirmar que o interrogatório não pode ser considerado como depoimento. Segundo o jurista “um ato que, provindo do acusado, não se pode, nem mesmo para certos efeitos, fingir que provenha de uma testemunha. O acusado, não apenas não jura, mas pode até mentir impunemente em sua defesa”.
Ao decidir pela absolvição do acusado, o desembargador voltou a exaltar que as condenações não podem ser fundamentadas somente em declarações de outros envolvidos nos crimes. Com todo o respeito pela opinião divergente, parece-me claro que não se podem aceitar as declarações como presumivelmente verdadeiras, acima de dúvida razoável; agir assim implicaria flagrante desrespeito não só ao princípio do benefício da dúvida como ao do contraditório.
O representante do réu, Daniel Bialski, concorda com a opinião do magistrado e ressalta que a validade da delação premiada também deve considerar onde ela foi prestada e seu conteúdo ainda é sólido depois de ser comparado com as outras provas. Segundo ele, a delação "é somente mais um elemento e deve ser examinada e avaliada em conjunto com o mais que for produzido no processo".
Porém, quando esse instituto é isolado no processo, o advogado afirma que ele não pode ser usado para confundir a livre convicção de arbítrio e condenação com base em mera suspeita. "É inimaginável que uma pessoa possa ser processada e condenada com amparo em delação feita apenas na fase policial. Igualmente, com amparo em delação ainda que feita na fase judicial, mas que resta isolada no processo, não encontrando eco em nada mais que venha a ser produzido", explica.
Bialski também critica as prisões preventivas que, em outros processos e investigações, são consideradas por outros advogados como uma maneira de forçar a delação. O advogado diz que a medida deveria ser sempre usada como última opção. "Com as inovações legislativas, com a inclusão de medidas difusas — artigo 319 do Código de Processo Penal —, a prisão imediata causa insegurança, colocando em extrema dúvida se realmente esse sacrifício de liberdade seria necessário."
"Jamais se pode usar a liberdade como moeda de troca para se conseguir delações. Fere-se a partir daí algo imprescindível para se dar credibilidade àquela declaração — a espontaneidade. E essa forma de agir traz uma enorme dúvida se realmente aqueles que estão presos e querem a liberdade a qualquer custo, falam a verdade", conclui Bialski.
 é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 25 de novembro de 2015, 6h30

Inquérito policial é indispensável na persecução penal


ACADEMIA DE POLÍCIA

Inquérito policial é indispensável na persecução penal

O inquérito policial é certamente um dos mais questionados mecanismos estatais de persecução penal, não faltando especialistas e, principalmente, leigos que lhe atribuam a culpa por todas as mazelas da instrução criminal. A maioria das discussões envolvendo esse procedimento policial é movida antes pela emoção do que por conhecimentos teóricos e empíricos da matéria.

O bombardeio de críticas infundadas não impede o reconhecimento de falhas. Aliás, a persecução penal como um todo, o que abrange não apenas a investigação preliminar, mas também o processo penal, carece de maior efetividade e celeridade, não sendo esse defeito uma exclusividade do inquérito policial. Todavia, a necessidade de melhorias não afasta os necessários elogios ao fundamental papel que exerce num sistema processual penal que se pretenda garantista e democrático.
A par das censuras, fundadas ou descabidas, o fato é que não por acaso esse procedimento policial vem atravessando os séculos como o mecanismo central do Estado para a apuração da verdade na fase pré-processual. Desde a Lei 2.033/1871 e o Decreto 4.824/1871, consolidou-se o inquérito policial como principal instrumento de investigação criminal. Nem o advento da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95), que abriu espaço para o termo circunstanciado de ocorrência, acarretou a perda de seu protagonismo.
O inquérito policial consiste em importante ferramenta de proteção de direitos fundamentais e produção de elementos informativos e probatórios[1], levado a cabo pela polícia judiciária, durante prazo razoável[2] e com incidência mitigada dos postulados do contraditório e ampla defesa[3]. Cuida-se de procedimento eminentemente administrativo (ou processo administrativo penal[4]), o que não exclui o fato de comumente se revestir de alguma judicialidade, expressa na necessária intervenção do Judiciário quanto às medidas restritivas de direitos fundamentais acobertadas sob o mando da cláusula de reserva de jurisdição.
Não se trata de mecanismo unidirecional, como quer fazer parecer parte da doutrina ao iluminar apenas função preparatória, de colheita e acautelamento de provas para que o titular da ação penal ingresse em juízo. Além dessa finalidade subsidiária, que nem sempre ocorre (já que as investigações podem levar à reunião de elementos exclusivamente em favor da defesa), existe a missão preservadora, que é a principal, de inibição da instauração de processo penal temerário, resguardando a liberdade do investigado e evitando custos estatais desnecessários[5].
Essa garantia do cidadão, no sentido de que não será processado temerariamente nem punido arbitrariamente, é tão latente que foi expressa na exposição de motivos do CPP, ao destacar que o inquérito policial traduz uma salvaguarda contra apressados e errôneos juízos, formados antes que seja possível uma precisa visão de conjunto dos fatos, nas suas circunstâncias objetivas e subjetivas. Pertence ao caderno apuratório, e não à fase intermediária de formulação e recebimento da denúncia[6], o verdadeiro papel de evitar acusações infundadas.
Nessa perspectiva, a instrução preliminar pode ser vislumbrada como a ponte que liga a notitia criminis ao processo penal[7]. Retrata a transição do juízo de possibilidade para probabilidade, que autoriza o indiciamento pelo delegado de polícia e a decretação de medidas cautelares e o recebimento da denúncia pelo juiz, ou, de outro lado, a confirmação da completa ausência de justa causa.
Se o processo penal pode ser tomado como um instrumento em prol da aplicação do direito objetivo, o inquérito policial, que ampara o processo, denota uma instrumentalidade qualificada[8]. Nesse ponto, cabe sublinhar que essa instrumentalidade de segundo grau não afeta a natureza garantista da investigação preliminar, porquanto não se pode negar que se trata de formidável ferramenta de tutela de direitos fundamentais, não só da vítima e das testemunhas, mas do próprio investigado[9].
A deflagração de um processo penal e a imposição de sanção estatal não podem ser atos automáticos e açodados. Nesse sentido, o inquérito policial materializa a via pavimentada a ser percorrida pelo Estado para que a atuação restritiva na esfera de liberdades públicas do cidadão não se convole em arbítrio.
Por isso mesmo, sustenta a doutrina que o processo penal sem a investigação preliminar é um processo irracional, uma figura inconcebível e monstruosa que abala os postulados garantistas[10]. No mesmo sentido, afirmamos -verdade-garantir-direitos-fundamentais" target="_blank">anteriormente que a investigação preliminar é o ponto de partida para uma persecução penal bem sucedida, que atenda ao interesse da sociedade de elucidar crimes sem abrir mão do respeito aos direitos mais comezinhos dos investigados.
De fato, há que se reconhecer que no bojo do inquérito policial ocorre grande parte das restrições às liberdades individuais do investigado, seja por decisão do delegado de polícia[11], seja por ordem judicial[12]. Como grifa a doutrina:
Não se pode esquecer que, com base nos atos do inquérito, se pode retirar a liberdade (prisões cautelares) e os bens de uma pessoa (medida assecuratórias), ou seja, com base nessa peça “meramente informativa” (como reducionistamente foi rotulada ao longo de décadas), podemos retirar o “eu” e “minhas circunstâncias” (Ortega y Gasset)...
Sem falar que também serve para condenar pessoas... Ou não? Na medida em que o artigo 155 do CPP autoriza (gostemos ou não) que o juiz se baseie também no inquérito para condenar (não pode é ser “exclusivamente”... O que representa uma fraude conceitual evidente), é claro que ele acaba adquirindo valor probatório. Sem falar no tribunal do júri, em que (absurdamente) os jurados decidem por “íntima e imotivada” convicção. Leia-se: podem condenar exclusivamente com base no inquérito (e até fora dele e do processo...). Alguém vai seguir com o discurso de peça meramente informativa à luz dessa realidade?[13].
Com efeito, o Brasil adotou um sistema de investigação preliminar conduzido pela polícia judiciária, no qual avulta o inquérito policial presidido pelo delegado[14] natural[15] como a principal forma de se descortinar a realidade. Isto é, incumbe à autoridade de polícia judiciária ditar os rumos da investigação criminal por meio dos diversos procedimentos policiais, seja por meio do inquérito policial, do termo circunstanciado de ocorrência ou da verificação preliminar de informações[16], sem olvidar do boletim de ocorrência circunstanciado no caso de atos infracionais.
Daí a confirmação pelas cortes superiores de que a presidência do inquérito policial é incumbência exclusiva do delegado de polícia[17], sendo vedado aos membros de outras instituições, a exemplo do Ministério Público, realizar e presidir o procedimento policial. A doutrina não diverge:
O inquérito policial é conduzido de maneira discricionária pela autoridade policial, que deve determinar os rumos das diligências de acordo com as peculiaridades do caso concreto. (...) O delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, continua conduzindo o inquérito policial de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico[18].
O sistema de investigação preliminar policial caracteriza-se por encarregar à polícia judiciária o poder de mando sobre os atos destinados a investigar os fatos e a suposta autoria (...). É importante destacar que nesse sistema a polícia não é um mero auxiliar, senão o titular (verdadeiro diretor da instrução preliminar), com autonomia para dizer as formas e os meios empregados na investigação e, inclusive, não se pode afirmar que exista uma subordinação funcional em relação aos juízes e promotores[19].
Parece não haver dúvidas de que a instauração do inquérito policial é a principal forma de evitar acusações precipitadas. E por isso mesmo é comum que o Ministério Público, ao receber a notícia de um crime, ainda que já disponha de elementos suficientes para dar suporte à denúncia, prefira encaminhar os documentos à polícia judiciária, requisitando a instauração de inquérito policial. Essa providência nada mais é do que o reconhecimento da instrução preliminar como freio aos excessos da perseguição estatal, para que a persecução penal tenha início perante órgão imparcial antes que o órgão acusador tome frente. É bastante raro encontrar ações penais não precedidas de inquérito policial.
Não se esperaria outra postura do órgão acusador. A polícia judiciária é a instituição constitucionalmente vocacionada a presidir investigações criminais no Brasil[20]. Cuida-se de instituição sem compromisso com a acusação ou a defesa[21], e exatamente por isso o ordenamento jurídico outorgou a condução da instrução preliminar ao delegado de polícia. Ao presidir o inquérito policial, a autoridade policial deve agir com isenção e independência, garantindo os direitos fundamentais de todos os envolvidos e tendo como norte unicamente a busca da verdade.
E justamente por esse motivo, ainda que o Ministério Público possa propor a ação penal sem o inquérito policial, na esmagadora maioria dos casos oparquet não abre mão desse filtro processual.
Não se desconhece que a doutrina[22] vem apregoando há décadas, amparada na literalidade de alguns dispositivos do CPP (artigos 12, 27, 39, parágrafo 5º e 46, parágrafo 1º), que o inquérito policial seria dispensável. Tais dispositivos, lidos apressadamente, levam à falsa percepção de que seria desnecessário o procedimento policial. Todavia, como visto, a exceção é que a ação penal não seja precedida do inquérito policial. Destarte, os estudiosos, baseando-se na extraordinária oferta de denúncia desacompanhada da instrução policial, transmudam a exceção em regra. Nessa esteira, mais adequado é aceitar a indispensabilidade do caderno investigatório.
De mais a mais, não se deve perder de vista que nos crimes de ação penal pública incondicionada a regra é a obrigatoriedade de instauração do inquérito policial (artigo 5º do CPP), e este procedimento deve acompanhar a peça acusatória sempre que servir de suporte à acusação (artigo 12 do CPP).
Destarte, admitir a importância e a imprescindibilidade do inquérito policial não é incompatível com o reconhecimento da possibilidade de imprimir mais eficácia e celeridade às investigações policiais. Da mesma maneira que a defesa do processo judicial como importante instrumento de tutela de direitos em nada prejudica a necessidade de se combater a morosidade processual.
Mister se torna modernizar os procedimentos policiais, algo que já é possível por intermédio da legislação hoje vigente, como por exemplo por meio da realização de atos por meio audiovisual (artigo 405, parágrafo 1º c/c artigo 3º do CPP). Todavia, o comando legal não se tornará realidade sem investimentos suficientes.
Nesse diapasão, já se encontra superado o discurso daqueles que pretendem colocar o inquérito policial como bode expiatório para as máculas estruturais da polícia judiciária, transferindo para o procedimento policial a responsabilidade pelas nefastas consequências do descaso do Estado com a fase inicial da persecução penal, como se a eventual extinção do inquérito policial tivesse o poder de suprir a carência de políticas públicas estatais.
Beira a inocência ou a má-fé reduzir o problema da criminalidade à polícia, mais especificamente à investigação criminal concretizada pelo inquérito policial. Enxergar a questão com essa visão distorcida cria campo fértil para propostas mirabolantes, tais como a militarização da investigação ou a sua atribuição à parte acusadora. Precisa a observação doutrinária:
Lamentavelmente, em tempos atuais, talvez mais por fatores de conveniência política e interesses corporativos, há uma orquestrada anatematização (até mesmo em segmentos da doutrina pátria) do inquérito policial como peça de instrução penal preliminar, com argumentações pouco justificadas em rigor científico e amparadas unicamente nas deficiências estruturais e históricas das polícias judiciárias. Porém, sequer conseguem formular uma proposição alternativa que consolide a substituição do inquérito policial (...)[23].
Nesse prisma, o inquérito policial, principal procedimento investigativo pátrio, sobressai-se como imprescindível ferramenta de busca da verdade na persecução penal. A admissão de sua indispensabilidade não fecha as portas para as necessárias mudanças com o desiderato de modernizar e imprimir mais agilidade à investigação criminal, sem descurar da carta constitucional de liberdades individuais.
Parafraseando a célebre frase de Winston Churchill sobre a democracia, o inquérito policial é a pior de todas as formas de investigação preliminar, excetuando-se as demais.

[3] STF, Inq 2.266, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DP 13/02/2012; Súmula Vinculante 14 do STF.
[4] PEREIRA, Eliomar da Silva. In: DEZAN, Sandro Lucio; PEREIRA, Eliomar da Silva (Org.). Investigação criminal conduzida por delegado de polícia. Curitiba: Juruá, 2013, p. 22.
[5] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 107.
[6] LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 51.
[7] LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 41.
[8] DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 261.
[9] CARNELUTTI, Francesco. Derecho procesal civil y penal. México: Episa, 1997, p. 338/346.
[10] LOPES JUNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. XXI.
[11] Tal como o afastamento do servidor público de suas funções como efeito automático do indiciamento em crimes de lavagem de capitais, segundo inteligência do artigo 17-D da Lei 9.613/98.
[12] Como a prisão temporária (artigo 2º da Lei 7.960/89), prisão preventiva (artigo 311 do CPP), medidas assecuratórias (artigos 125/144 do CPP) e interceptação telefônica (artigo 1º da Lei 9.296/96).
[14] Artigo 144, parágrafo 4º da CF; artigo 2º, caput e parágrafo 1º da Lei 12.830/13; artigo 4º do CPP.
[16] Sobre o reconhecimento da VPI como procedimento policial, já tivemos oportunidade de expor aqui o amparo da legal, doutrinário e jurisprudencial.
[17] STF, Tribunal Pleno, ADI 1570, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 22/10/2004; STF, Tribunal Pleno, RE 593.727, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 14/05/2015; STJ, HC 45.057, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 21/09/2009.
[18] LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 177/180.
[19] LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 63-64/154.
[20] Basta conferir o artigo 144, parágrafos 1º e 4º da Constituição Federal, bem como as discussões da Assembleia Constituinte de 1988, na qual o constituinte originário teve a oportunidade de adotar modelo diverso e transferir o protagonismo da investigação criminal para outros órgãos, mas optou expressamente por mantê-lo nas mãos da polícia judiciária.
[21] A polícia judiciária, ao lado do Poder Judiciário, são os únicos órgãos imparciais a atuar na persecução penal.
[22] ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. v. 1. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1960; LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. Salvador: Juspodivm, 2014.
[23] GOMES, Amintas Vidal. Manual do Delegado: teoria e prática. 9. ed. rev. Atual. e ampl. Rodolfo Queiroz Laterza. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 48.
 é delegado de Polícia Civil do Paraná, mestrando em Direito pela Uenp, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UGF e em Segurança Pública pela Uniesp. Também é professor convidado da Escola Nacional de Polícia Judiciária, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná, da Escola da Magistratura do Paraná e da Escola do Ministério Público do Paraná e professor-coordenador do Curso CEI e da pós-graduação em Ciências Criminais da Facnopar.
Revista Consultor Jurídico, 1 de dezembro de 2015, 8h05

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Novo Código de Processo Civil quebra paradigma das "condições da ação"


Novo Código de Processo Civil quebra paradigma das "condições da ação"

O presente artigo busca, de maneira sintética, esclarecer as principais alterações acarretadas pelo novo Código de Processo Civil no que tange às condições da ação.
Para tanto, estabeleceremos o conceito, natureza jurídica e espécies de condições da ação, quais sejam: a legitimidade de parte, interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido.
Devidamente conceituadas as condições da ação, passaremos a analisar como se inseriam na sistemática do Código de Processo Civil de 1973. Explicaremos a Teoria Eclética da Ação, bem como as duas principais correntes que se formaram ante a problemática surgida em relação a seus efeitos práticos — a Teoria da Apresentação e a da Asserção.
Por fim, discorreremos acerca do tratamento dado à matéria pelo novo Código de Processo Civil e do encerramento da celeuma doutrinária encabeçada pelas duas teorias supracitadas.
Condições da ação: conceito, natureza jurídica e espécies
Condições da ação são requisitos processuais essenciais para o regular trâmite processual e eventual julgamento do mérito. Em caso de ausência de qualquer uma das condições da ação, teremos a carência da ação, causa de extinção do processo sem julgamento de mérito (art. 267, VI, CPC/73). Note-se, contudo, que tal regra foi e vem sendo mitigada pela teoria da asserção, a qual analisaremos mais à frente.

A Teoria Geral do Processo costuma compreender as condições da ação como uma categoria fundamental do processo moderno, localizada entre os pressupostos processuais e o mérito da causa.
Entendemos, no que tange o processo civil, condições da ação como um feixe composto por três institutos, quais sejam: legitimidade ad causam, interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido.
Legitimidade ad causam nada mais é do a pertinência subjetiva da ação, ou seja, qualidade expressa em lei que autoriza o sujeito (autor) a invocar a tutela jurisdicional. Nessa lógica, será réu aquele contra qual o autor pretender algo.
Para a compreensão do interesse de agir (artigo 3° CPC/73), devemos cingir o conceito em três acepções:
a) Necessidade: traduz-se na idéia de que somente o processo é o meio hábil à obtenção do bem da vida almejado pela parte;
b) Utilidade: significa que o processo deve propiciar, ao menos em tese, algum proveito ao demandante;
c) Adequação: por ele, entende-se que a parte deve escolher a via processual adequada aos fins que almeja.
Significativa parte da doutrina critica esta última acepção do interesse de agir, vez que, nas palavras de Fredie Didier Jr.[1]:
“O procedimento é a espinha dorsal da relação jurídica processual. O processo, em seu aspecto formal, é procedimento. O exame da adequação do procedimento é um exame de sua validade. Nada diz respeito ao exercício do direito de ação.
“Não há erro na escolha do procedimento que não possa ser corrigido, por mais discrepantes que sejam o procedimento indevidamente escolhido e aquele que se reputa correto. Um exemplo talvez sirva para expor o problema: se o caso não é de mandado de segurança, pode o magistrado determinar a emenda da petição inicial, para que o autor providencie a adequação do instrumento da demanda ao procedimento correto. Não existisse o inciso V do art. 295, que expressamente determina uma postura do magistrado no sentido aqui apontado, sobraria a regra da instrumentalidade das formas, prevista nos arts. 244 e 250 do CPC, que impõe o aproveitamento dos atos processuais, quando houver erro de forma.”
Nessa toada, podemos conceituar interesse de agir como o binômio necessidade/utilidade.
A possibilidade jurídica do pedido, por fim, terceiro e último instituto da classificação clássica das condições da ação, consubstancia a aptidão — implícita ou explícita — no ordenamento jurídico, de que a demanda do autor possui para ser julgada procedente.
Ilustremos com exemplo doutrinário pedestre, mas didático: carece de possibilidade jurídica do pedido aquele que busca ajuizar ação de divórcio em país que expressamente o veda em seu ordenamento legal.
Teoria Eclética da Ação e suas controvérsias
Inicialmente, devemos deixar claro que as condições da ação, embora expressamente previstas no Código de Processo Civil de 1973, nunca foram matéria doutrinariamente pacífica ou unânime.

As condições da ação são fruto de uma teoria encabeçada por Liebman que informa todo o CPC de 1973: a Teoria Eclética da Ação.
Considera citada teoria que, para o exercício regular do direito de ação, imprescindível o preenchimento de certos requisitos (legitimidade ad causam, interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido), que formariam a categoria denominada “condições da ação”. Não preenchidas estas condições, estaríamos diante da carência da ação.
Ocorre que, na realidade processual, o magistrado não realiza um juízo específico de análise das condições da ação, e sim um juízo de admissibilidade e um juízo de mérito.
Nessa toada, verifica-se que as condições da ação não são analisadas autonomamente, recaindo, portanto em um desses dois juízos. Dessa forma, tem-se que as condições da ação ou seriam questões de admissibilidade ou questões de mérito.
Diante desse problema, duas correntes se formaram.
A primeira é a Teoria da Apresentação, capitaneada por Cândido Rangel Dinamarco. Sustenta, na linha do disposto no §3°, artigo 267, CPC, que “o juiz conhecerá a qualquer tempo ou grau de jurisdição, enquanto não proferida sentença de mérito, as matérias constantes nos incisos VI (...)”. O inciso VI, por sua vez, trata justamente da extinção do processo sem resolução de mérito por ausência de “possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual”.
A segunda corrente consubstancia-se na adoção da chamada Teoria da Asserção.
Tal teoria cinge o momento e os efeitos do reconhecimento de ausência de qualquer das condições da ação.
Primeiramente, o magistrado verificará, abstratamente, a presença das condições da ação na fase postulatória. Caso averigue a ausência de qualquer uma delas, extinguirá o feito sem resolução de mérito, nos termos do artigo 267, VI, CPC.
Se, contudo, a ausência de uma das condições da ação for averiguada após o início da fase instrutória, extinguirá o feito com resolução do mérito, julgando improcedente o pedido.
Os efeitos de tais decisões, como podemos imaginar, são absolutamente distintos. No primeiro caso teremos carência da ação, permitindo-se sua repropositura, não sendo apta, tal decisão, a gerar coisa julgada. O exato oposto ocorre no segundo caso. Estaremos diante sentença que resolve o mérito, apta, portanto, à coisa julgada. Do mesmo modo, incabível a repropositura da ação, devendo o autor irresignado perseguir a procedência de sua demanda pelas vias recursais.
De fato, parece-nos correta a aplicação da Teoria da Asserção, inclusive por privilegiar os princípios da efetividade e da celeridade.
Verifica-se, contudo, que com o surgimento do novo Código de Processo Civil, tal teoria perdeu a razão de ser.
O Código de Processo Civil de 2015 e as condições da ação
O Código de Processo Civil de 2015 extinguiu, como categoria, as condições da ação. Note-se: o instituto foi extinto, mas seus elementos permaneceram intactos, tendo sofrido, contudo, um deslocamento.

Tomando-se o fato de que o magistrado realiza dois juízos (de admissibilidade e mérito), o novo CPC buscou separar os elementos integrantes das condições da ação alocando-os em pressupostos processuais (relativos ao juízo de admissibilidade da ação) e como questão de mérito.
Nos informa o artigo 17 do CPC 2015: “Para postular em juízo é necessário ter interesse e legitimidade”. Temos, portanto, que o interesse de agir e a legitimidade ad causam passaram a ser tratados como pressupostos processuais.
Dessa forma, verificando o juiz, ao receber a inicial, que se encontram ausentes interesse de agir ou legimidade ad causam, indeferirá a petição inicial. Nesse sentido:
Art. 330.  A petição inicial será indeferida quando:
(..)
II - a parte for manifestamente ilegítima;
III - o autor carecer de interesse processual;
Caso for verifique-se a ausência de um desses pressupostos após a fase postulatória, será declarada a carência da ação. Afirma o art. 485. CPC 2015:
Art. 485.  O juiz não resolverá o mérito quando:
(...)
VI - verificar ausência de legitimidade ou de interesse processual;
A possibilidade jurídica do pedido, por sua vez, passou a ser considerada questão de mérito. Nada mais coerente. De fato, quando a parte apresenta demanda de manifesta impossibilidade jurídica, por certo não se trataria de carência da ação, mas sim de uma verdadeira improcedência do pedido, resolvendo-se, assim, o mérito.
Art. 487.  Haverá resolução de mérito quando o juiz:
I - acolher ou rejeitar o pedido formulado na ação ou na reconvenção;
Concluímos, assim, louvando o tratamento dado pelo novo Código de Processo Civil à legitimidade de parte, interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido. Pôs-se um fim a um debate doutrinário de mais de quarenta anos e quebrou-se o paradigma das “condições da ação” que, muitas vezes, era alçada a um status ontológico. 

Referências
- DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. vol. I, ed. 11. Ed. Juspodivm.

- GRINOVER, Ada Pellegrini; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 29. ed. São Paulo: Malheiros Ed.

[1] DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. vol. I, ed. 11. Ed. Juspodivm. Salvador: 2009, p. 199.
 é advogado em São Paulo.
Revista Consultor Jurídico, 30 de novembro de 2015, 9h45