"Eu não recearia muito as más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Não há texto de lei que não deixe campo à interpretação.

A lei é morta. O magistrado vivo. É uma grande vantagem que ele tem sobre ela" - Anatole France

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Assessor jurídico de município pode emitir parecer favorável a licitação

ROTINA DO ADVOGADO

Assessor jurídico de município pode emitir parecer favorável a licitação

O fato de um advogado que atua como assessor jurídico de um município emitir parecer favorável a uma licitação, por si só, não configura crime. A decisão é da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que ressaltou que a emissão de pareceres faz parte da rotina de um advogado de ente público em âmbito administrativo.
Seguindo o voto do relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, o colegiado concedeu Habeas Corpus para trancar ação penal contra um advogado denunciado por fraude em licitação e lavagem de dinheiro no município de Senador Pompeu (CE).
De acordo com a denúncia, o advogado, na qualidade de assessor jurídico do município, emitiu parecer opinativo em licitação recomendando a homologação do procedimento.
A defesa alegou inépcia da denúncia em razão de não ter sido apontada qual seria sua participação na atividade ilícita nem apresentadas provas de seu envolvimento no suposto esquema.
O ministro Reynaldo Soares da Fonseca acolheu os argumentos da defesa. Ele reconheceu que o nome do advogado não foi citado na individualização das condutas dos denunciados e que a denúncia apenas apontou que ele emitiu parecer favorável à licitação, sem nenhuma circunstância que o vincule, subjetivamente, ao crime.
“Tal deficiência, à evidência, prejudica o exercício da defesa, porquanto emitir pareceres faz parte da rotina de um advogado de ente público em âmbito administrativo, de forma que a descrição desse ato, por si só, não é suficiente para a configuração de nenhum dos crimes imputados ao recorrente, o que revela, de forma patente e manifesta, a inépcia da exordial com relação a todos os crimes imputados”, disse o ministro. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.
RHC 44.582
Revista Consultor Jurídico, 8 de junho de 2017, 16h40

O princípio do contraditório e os limites da motivação aliunde ou per relationem

OPINIÃO


O presente artigo pretende analisar os limites impostos pelo princípio do contraditório à motivação aliunde ou per relationem no âmbito do processo administrativo.
É assente que as decisões administrativas devem ser devidamente fundamentadas, sob pena de nulidade[1]. Exige-se que “sejam explicitados tanto o fundamento normativo quanto o fundamento fático da decisão, enunciando-se, sempre que necessário, as razões técnicas, lógicas e jurídicas que servem de calço ao ato conclusivo, de molde a poder-se avaliar sua procedência jurídica e racional perante o caso concreto”[2].
A Lei 9784/1999[3] prevê expressamente que a motivação constitui condição de validade da decisão proferida em sede de processo administrativo, determinando que a administração pública deve obedecer ao princípio da motivação[4], que deverão ser indicados os “pressupostos de fato e de direito que determinarem a decisão”[5] e que as decisões proferidas no julgamento de recursos administrativos deverão ser motivadas, “com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos”[6], prevendo, ainda, que “[o]s elementos probatórios deverão ser considerados na motivação do relatório e da decisão” e que a motivação das decisões “constará da respectiva ata ou de termo escrito”[7].
Entre as espécies de motivação admitidas no processo administrativo está a motivação aliunde ou per relationem, que pode ser definida como a motivação por meio de remissão a outras manifestações ou peças constantes nos autos e cujos fundamentos justificam e integram o ato decisório. A adoção da motivação aliunde ou per relationem é expressamente autorizada pela Lei 9.784/1999, que prevê que a motivação pode “consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato”[8]. Vale anotar que, na motivação aliunde ou per relationem, a remissão deve ser expressa, não se admitindo remissão implícita[9].
Não obstante, no âmbito do processo administrativo, a motivação aliunde ou per relationem apresenta limites específicos diante da necessária observância dos princípios que orientam o processo administrativo, entre os quais o princípio do contraditório.
O princípio do contraditório está expressamente consagrado na Constituição Federal, que garante o contraditório aos litigantes em processo administrativo[10]. No mesmo sentido, a Lei 9.784/1999 determina que a administração pública deve obedecer ao princípio do contraditório[11].
Pois bem, o princípio do contraditório exige que a decisão enfrente os argumentos manejados pelo administrado.
Com efeito, o conteúdo mínimo do princípio do contraditório abrange a possibilidade de as partes participarem no resultado do processo[12], influenciando de modo ativo e efetivo na formação das decisões[13]. A garantia do contraditório exige que as partes conheçam os fundamentos que conduzem o órgão julgador na formação do provimento, que possam debatê-los, num exercício dialético que conduzirá à formação da decisão[14]. O princípio do contraditório exige a possibilidade de as partes desenvolverem atividade processual em sustentação a suas razões; de se manifestarem, de forma efetiva e eficaz, em todos os atos relevantes do processo; de se pronunciarem sobre questões que possam influir na decisão; de deduzirem suas pretensões e defesas; de agirem no processo para a tutela de seus interesses, valendo-se de poderes e faculdades aptos a influir na convicção do julgador[15]. O princípio do contraditório assegura às partes a possibilidade efetiva e plena de sustentarem suas razões e produzirem suas provas, enfim, de colaborarem concretamente na formação da convicção do julgador[16]. Para que seja eficaz, o princípio do contraditório deve compreender a participação crítica das partes na formação da convicção do órgão julgador[17]. O princípio do contraditório, portanto, abarca necessariamente o direito do administrado de influir no resultado do processo e na decisão que será proferida.
Por isso, o princípio do contraditório assegura ao administrado o direito de ser ouvido e de ver suas razões apreciadas. O direito do administrado de falar no processo implica necessariamente o dever do órgão julgador de escutar suas razões. Ao direito do administrado de produzir provas e sustentar razões jurídicas, corresponde o dever do órgão julgador de apreciá-las e valorá-las quando do julgamento[18].
Esse é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, que afirma que as garantias constitucionais de defesa — entre as quais o princípio do contraditório — “implicam o direito à consideração das razões deduzidas em juízo”[19], “o direito de ver seus argumentos contemplados pelo órgão incumbido de julgar”[20]; que a garantia do contraditório inscrita no inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal contém o “direito de ver seus argumentos considerados”[21], que corresponde “ao dever do juiz ou da Administração de a eles conferir atenção”, de “considerar, séria e detidamente, as razões apresentadas”[22]; que cabe ao órgão julgador analisar os argumentos do administrado com a atenção necessária e cotejá-los com as razões levantadas pela administração[23]; e que “[é] da obrigação de considerar as razões apresentadas que deriva o dever de fundamentar as decisões”[24].
Deve-se destacar que a própria Lei 9.784/1999 consagra essa concepção do princípio do contraditório, incluindo entre os direitos do administrado perante a administração pública, o direito de ver suas alegações serem consideradas pelo órgão julgador, determinando que as alegações formuladas pelo administrado e os documentos por ele apresentados “serão objeto de consideração pelo órgão competente”[25].
Deve-se recordar, outrossim, que a Lei 9.784/1999, ao admitir a motivação aliunde ou per relationem, prevê expressamente que essa motivação deve ser “congruente”, a indicar que a motivação deve guardar relação com a defesa manejada pelo administrado no processo, abarcando todos os argumentos por ele produzidos[26].
Nesse sentido é o entendimento da doutrina, que ensina que a motivação “exige congruência interna ao texto da decisão e relativa ao conteúdo do processo, provas e pleitos dos interessados”[27] e que “deve possuir nexo para com as provas e as pretensões constantes no processo administrativo em que é processada”[28]. Afirma, ainda, a doutrina, que da exigência de congruência deriva a necessidade de a decisão “observar uma relação harmônica, lógica e razoável entre os fatos que deram origem ao processo, os requerimentos deduzidos pelos interessados (deferidos ou não), as provas produzidas e o fundamento jurídico da decisão”[29], e de “aquilatar, acolhendo ou rejeitando, as teses fundamentais das partes”[30]. Por fim, a doutrina salienta o dever do órgão julgador de “examinar todos os elementos trazidos e, além disso, justificar seu afastamento ou acolhimento”, e que, “no conteúdo da motivação dos atos conclusivos dos processos administrativos deve constar, obrigatoriamente, o exame de cada elemento trazido pelo administrado e a justificativa de seu acolhimento ou afastamento na decisão tomada”[31].
Por fim, deve-se apontar que essa diretriz teve reforço com o advento do inciso IV do parágrafo 1º do artigo 489 do Código de Processo Civil, que afirma não se considerar fundamentada a decisão que “não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”.
Assim, para que se possa ter o princípio do contraditório por atendido, é fundamental que o administrado possa influir na decisão, o que só se verificará se suas razões forem devidamente analisadas pelo órgão julgador.
Nesse sentido é a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, como ilustra o acórdão proferido no julgamento do Recurso Especial 1.622.386 – MT, cuja ementa consignou que o órgão julgador tem “o dever, dentre outros, de enfrentar todas as questões pertinentes e relevantes, capazes de, por si sós e em tese, infirmar a sua conclusão sobre os pedidos formulados, sob pena de se reputar não fundamentada a decisão proferida”, e que se mostra deficiente a fundamentação da decisão em que se mantém a decisão recorrida “sem a apreciação das questões suscitadas no recurso”.
Assim, a motivação aliunde ou per relationem somente será suficiente se os documentos ou peças processuais a que a decisão fizer referência enfrentarem todos os argumentos apresentados pelo administrado em sua defesa ou em seu recurso. Se isso não ocorrer, a decisão carecerá da necessária fundamentação, padecendo de nulidade.

[1] Nesse sentido é a jurisprudência do STJ: Recurso Especial 52.574 – PE; Recurso em Mandado de Segurança 13.617 – MG; Embargos de Declaração no Recurso em Mancado de Segurança 13.617 – MG; Agravo Regimental no Recurso em Mandado de Segurança 15.350 – DF; Mandado de Segurança 9.944 – DF; Recurso em Mandado de Segurança 35.033 – RS.
[2] BANDEIRA DE MELLO, p. 513-515.
[3] Anote-se que, ausente lei local específica, a Lei 9.784/99 pode ser aplicada de forma subsidiária no âmbito dos estados e municípios, tendo em vista que se trata de norma que deve nortear toda a administração pública, servindo de diretriz para seus demais órgãos. Nesse sentido é pacífica a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial 263.635 – RS; Agravo Regimental no Recurso Especial 1.092.202 – DF; Agravo Regimental no Recurso Especial 1.261.695 – SC; Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 1.196.717 – DF; Agravo Regimental no Recurso Especial 979.926 – RN; Recurso Especial 610.464 – DF; Agravo Regimental no Recurso Especial 715.037 – RS; Recurso em Mandado de Segurança 21.894 – RS; Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 935.624 – RJ; Recurso Especial 852.493 – DF; Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 683.234 – RS.
[4] Lei 9.784/1999, artigo 2º, caput.
[5] Lei 9.784/1999, artigo 2º, caput, parágrafo único, inciso VII.
[6] Lei 9.784/1999, artigo 50, inciso V.
[7] Lei 9.784/1999, artigo 50, parágrafo 3º.
[8] Lei 9.784/1999, artigo 50, parágrafo 1º, parte final.
[9] MARTINS, p.267.
[10] CF, artigo 5º, inciso LV.
[11] Lei 9.784/1999, artigo 2º, caput.
[12] ALVARO DE OLIVEIRA, 1994, p. 10; ALVARO DE OLIVEIRA, 1998, p. 12-13; BARBOSA MOREIRA, 1994, p. 5; CABRAL, p. 112; GRINOVER, p. 19; MITIDIERO, MARINONI e SARLET, p. 648; TROCKER, p. 370 e 450.
[13] ALVARO DE OLIVEIRA, 1994, p. 10; ALVARO DE OLIVEIRA, 1998, p. 12-13; BARBOSA MOREIRA, 1994, p. 5; GRINOVER, p. 19; TROCKER, p. 370 e 450.
[14] ALVARO DE OLIVEIRA, 1994, p. 5; ALVARO DE OLIVEIRA, 1998, p. 12-13; GRINOVER, p. 19; TROCKER, p. 467.
[15] ALVARO DE OLIVEIRA, 1998, p. 12-13; CAPPELLETTI, p. 634; GRINOVER, p. 5 e 19; MIRANDA, p. 37; TROCKER, p. 370, 371, 451, 646 e 682.
[16] DINAMARCO, p. 135; GRINOVER, p. 2.
[17] ALVARO DE OLIVEIRA, 1998, p. 15-6.
[18] BARBOSA MOREIRA, 1980, p. 88; GRINOVER, p. 31 e 34-5; TROCKER, p. 371, 451, 457 e 657.
[19] Recurso Extraordinário 163.301 – AM.
[20] Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 31.661 – DF.
[21] Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 31.661 – DF; Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 426.147 – TO.
[22] Mandado de Segurança 24.268 – MG.
[23] Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 31.661 – DF.
[24] Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 31.661 – DF.
[25] Lei 9.784/1999, artigo 3º, inciso III.
[26] Lei 9.784/1999, artigo 50, parágrafo 1º.
[27] MOREIRA, p. 374.
[28] HEINEN, SPARAPANI e MAFFINI, p. 309.
[29] MOREIRA, p. 374.
[30] OSÓRIO, p. 408.
[31] BACELLAR FILHO e MARTINS, p.270.

Bibliografia
ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. O juiz e o princípio do contraditório. Revista de Processo. São Paulo. n. 73, p. 7-14, jan./mar., 1994.
ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. A garantia do contraditório. Revista da Faculdade de Direito Ritter dos Reis. Canoas. v. 1. p. 7-27, 1998.
BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; MARTINS, Ricardo Marcondes. Tratado de Direito Administrativo: ato administrativo e procedimento administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014 (Tratado de Direito Administrativo. v. 5. Coord. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella).
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de Direito Processual: segunda série.São Paulo: Saraiva, 1980.
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de Direito Processual: quinta série.São Paulo: Saraiva, 1994.
CABRAL, Antônio do Passo. Nulidades no processo moderno. 2. ed., 2010.
CAPPELLETTI, Mauro e VIGORITI, Vincenzo. I diritti costituzionali delle parti nel processo civile italiano. Rivista de Diritto Procesuale. Padova. v. 26, p. 604-50, 1971.
DINAMARCO, Cândido R. Fundamentos do processo civil. 2. ed, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1987.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do Direito Processual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990.
HEINEN, Juliano; SPARAPANI, Priscilia; MAFFINI, Rafael. Comentários à Lei Federal do Processo Administrativo: Lei n° 9.784/99. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015.
MARTINS, Ricardo Marcondes. Tratado de Direito Administrativo: ato administrativo e procedimento administrativo. v. 5. Coord. PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
MIRANDA, Jorge. Constituição e processo civil. Revista de Processo. São Paulo. a. 25, n. 98, p. 29-42, abr./jun. 2000.
MITIDIERO, Daniel; MARINONI; Luiz Guilherme; SARLET; Ingo Wolfgang.Curso de Direito Constitucional, 2012.
MOREIRA, Egon Bockmann. Processo Administrativo: Princípios Constitucionais e a Lei 9.784/1999. 4. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010.
OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.
TROCKER, Nicolò. Processo civile e constituzione. Milão: Giuffrè, 1974.
Henry Gonçalves Lummertz é sócio do Souto Correa Advogados e especialista em tributação.

Revista Consultor Jurídico, 12 de junho de 2017, 6h31

Quem combate o positivismo tem poucas alternativas a oferecer. Será?

OPINIÃO


Otto Pfersmann professor da Universidade Paris 1 – Sorbonne é um importante jurista. Quando estes falam, ouvimos, e quando discordamos somos impelidos a expor as razões da(s) divergência(s). Faz parte do “jogo”. Assim, quando discorremos sobre a necessidade de um constrangimento epistemológico[1], não se pode olvidar que este pressupõe o reconhecimento do outro e de que existe a possibilidade de ele estar certo, ou não. Longe de ser uma postura arrogante, é, diferentemente, uma posição séria e responsável diante da realidade. Bem, esse é um dos preços que se paga por andar na contramão do ceticismo. Dito isso, vamos aos argumentos.
Pfersmann, em 2014, esteve em nosso país ministrando um curso na ABDConst e concedeu uma entrevista para a Gazeta do Povo (ler aqui). Antes que nos digam que isso é antigo e que, por isso, perdemos o timing, entendemos que, como a matéria continua disponível on-line, há uma atualidade ainda que extemporânea. Como os leitores poderão perceber, Pfersmann fez algumas afirmações categóricas a respeito da Teoria do Direito. Em consequência, apresentaremos alguns excertos a seguir, que por fins expositivos, contrapomos logo em sequência.
1) “Um estudo dos fenômenos existentes segundo métodos testáveis pode ser qualificado como positivista. Aqueles que combatem o positivismo têm em geral poucas alternativas a oferecer, porque, para decidir não aplicar o direito positivo em um caso concreto, é necessário que se conheça o direito. Logo, é uma atitude incoerente (...)”.
A Crítica Hermenêutica do Direito (CHD) tem se perguntado há tempos: o que é isto — o positivismo jurídico? A resposta ainda está em construção, mas algumas percepções já estão estabelecidas, uma delas é o empirismo, que por sua vez possibilita uma racionalidade matematizante sobre o mundo. Assim, Pfersmann acerta ao afirmar que uma posição positivista necessita de métodos testáveis, que podem ser repetidos, observados e falseados. Todavia, há um equívoco no restante. Dizer que as teorias não/anti/pós-positivistas tem pouco a oferecer, pois têm que conhecer o Direito Positivo e que, por isso, haveria uma incoerência, constitui-se em um equívoco. Isso seria correto se o positivismo fosse a única epistemologia jurídica possível; como não é, esse argumento se fragiliza. Demais teorias fundadas adequadamente em paradigmas epistêmicos distintos têm sempre algo a dizer, ainda que não os reconheçamos. A CHD, por exemplo, tem como ponto central a preservação da autonomia do Direito e sua identificação. Não esqueçamos a vasta gama de critérios identificatórios que a CHD oferece, incluídas as seis hipóteses explicitadas em Verdade e Consenso e outras obras.
2) “Somente o positivismo permite dar um lugar verdadeiro à filosofia moral por relação com o direito. O antipositivismo não faz isso. Para dizer que uma lei ou uma decisão judicial é injusta, é preciso que primeiro eu a possa identificar como objeto jurídico e para isso recorro à metodologia positivista”.
Há aqui uma falácia que constantemente passa despercebida. O positivismo jurídico, mesmo enquanto uma postura “puramente” descritivista e limitada a conhecer o Direito, já é uma posição moral. Nem adentramos no mérito acerca da possibilidade desse descritivismo neutro (ponto arquimediano). O que estamos argumentando é que uma teoria jurídica que rejeita elementos avaliativos, assume, ainda que indiretamente, que o raciocínio prático poderia ser tanto para um lado como para o outro. Esse silêncio tem implicações morais, ainda que não os almeje. Logo, o positivismo jurídico não coloca analiticamente a Filosofia Moral em seu devido lugar, pois, como já dissemos acima, ainda que se esconda, este representa uma perspectiva moral. Ademais, identificar o direito não é uma tarefa somente possível pela metodologia positivista, não estamos negando a sua relevância, mas apenas a sua exclusividade. O professor francês esquece-se de uma coisa: sua tese vai bem enquanto permanece no plano da descrição e identificação da natureza do Direito; ele se enfraquece ao não falar/tratar da aplicação a ser feita pelo juiz. E nisso não há controle sobre os juízes. Ou seja: o professor vai bem no plano descritivo cindindo Direito e Moral; só que essa Moral acaba entrando pela via da aplicação — e, ao que tudo indica, sem controle.
3) “O que nós chamamos, no final do século 19, de positivismo jurídico não é uma visão positivista. É uma visão representada na Alemanha por um autor chamado Gustav Radbruch, que afirmava que a lei deveria ser seguida mesmo se a considerarmos injusta, porque é a lei. Aí você tem o positivismo como uma posição que não enxerga o direito como nada além da lei. Esse mesmo autor, depois da queda do regime nazista, afirmou que o positivismo é um horror porque ensinou aos juristas que a lei deve ser aplicada mesmo se for injusta. Ele se tornou antipositivista. Nos dois casos, não são posições positivistas, mas moralistas. A primeira é moralista porque ensina a obedecer à lei, e o positivismo não manda obedecer à lei, ele quer conhecer a lei(...)”.
Essa abordagem é, no mínimo, controversa. Há dezenas de autores que explicam o positivismo do século XIX de outro modo, confrontando-se com o que diz o professor francês. Historicamente, sedimentou-se uma leitura entre jusfilósofos de várias tradições no sentido de reconhecer no século XIX o positivismo jurídico em sua primeira versão. Tanto é que Norberto Bobbio — e nos parece uma boa fonte — cunhou a expressão positivismo ideológico caracterizando posições que defendiam à obediência a lei pelo simples fato de ser lei. Concordaríamos com Pfersmann que temos, sobretudo, após Kelsen um juspositivismo muito distinto, mas não que as experiências anteriores também não fossem positivistas. Parece-nos que existem traços básicos comuns que foram sendo repisados e reconfigurados ao longo do tempo, de forma que temos positivismos dentro do guarda-chuva do Positivismo Jurídico. Por outro lado, também é controversa a questão desse “antipositivismo” de Radbruch. Assim o é se o positivismo for uma coisa simples e dicotômica: só que isso seria simplificar e ignorar todas as formas de positivismo pós-kelsenianos.
4) “O positivismo é conhecido na sua versão simplificada. Para entender ontologia de normas e epistemologia, certo conhecimento científico me parece indispensável. É uma pena que isso não seja ensinado nas faculdades de direito. Os juristas não compreendem que o saber deles é, em primeiro lugar, um saber linguístico. Em nenhum lugar do mundo, ensina-se o direito como linguística aplicada. Os juristas pensam que o texto jurídico pode ser conhecido diretamente, sem saber como funciona a língua através da qual se exprimem as normas. É como fazer física sem conhecer matemática. Mais conhecimento em filosofia analítica e da linguagem ajudariam o operador do direito”.
Nada de novo. De fato, o positivismo jurídico no Brasil é conhecido de modo muito superficial e em muitos casos de forma equivocada. Temos tanto a necessidade de maiores aprofundamentos nos clássicos como Kelsen e Hart, como também nos juspositivistas contemporâneos. Estamos de acordo que o saber jurídico é linguístico. Todavia, a partir dessa afirmação, seguimos caminhos opostos. Um juspositivista olha para a linguagem de modo analítico, formal. Deste modo, saber Direito seria saber operar com este universo abstrato. Pfersmann chega ao ponto de comparar o conhecimento da linguagem para o Direito, como o da Matemática para a Física. A CHD não nega a existência de uma dimensão enunciativa da linguagem, mas reconhece também a dimensão hermenêutica, que lhe é condição de possibilidade. Há uma dobra na linguagem (Ernildo Stein), posições teóricas que se assentam em apenas um destes lados tendem a ser mais limitadas, pois deixariam mais da realidade para fora de suas reflexões. Mesmo sabendo que sempre haverá algo que nos escapa, não nos parece adequado deixar de reconhecer o que se desvela em nossa experiência. Este é um dos maiores problemas do Juspositivismo: o reducionismo. Por isso, talvez, que às vezes juristas positivistas tornam-se ferrenhos antipositivistas, pois, devido à ausência de ar em seu pensamento, procuram derrubar todas as paredes, quando abrir algumas janelas já seria suficiente.
À comunidade jurídica: Terminamos com um convite ao diálogo. Agora, nos dias 29 e 30 de junho, estaremos reunidos com juristas de renome no II Colóquio de Crítica Hermenêutica do Direito: Às voltas com o Positivismo Jurídico Contemporâneo. As inscrições estão acabando, mas ainda há vagas. Por fim, respondemos à pergunta do título. Não, muitos que combatem o Juspositivismo têm bastante a oferecer. Há vida para além desse horizonte.

[1] Nesse sentido, ver verbete Constrangimento Espistemológico, in Streck, L.L. Dicionário de Hermenêutica. BH, Editora Casa do Direito, 2017.
 é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
Daniel Ortiz Matos é mestre e doutorando em Direito Público na Unisinos.

Revista Consultor Jurídico, 12 de junho de 2017, 6h53