"Eu não recearia muito as más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Não há texto de lei que não deixe campo à interpretação.

A lei é morta. O magistrado vivo. É uma grande vantagem que ele tem sobre ela" - Anatole France

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

No processo penal, Ministério Público não é fiscal, é acusador

OPINIÃO


Discute-se de longa data, na doutrina, se o Ministério Público, no processo penal, é parte ou fiscal da lei. A afirmação de que o MP é fiscal da lei é insustentável.
Quem é parte em processo judicial? É parte quem dele participa interessadamente, ou seja, com interesse, pouco importando se o interesse é próprio ou de terceiro. Sim, quem representa terceiro também é parte, pois age no processo interessadamente e, logo, com parcialidade. O interesse provoca a parcialidade, e essa é inerente ao conceito de parte. Incumbe, no processo penal, à acusação velar pelo interesse social de punição dos culpados, e à defesa, o encargo de proteger o interesse social de absolvição dos inocentes. Assim, o MP não é fiscal de lei nem age no processo como custos legis, já que, representando interesse, não é imparcial. Se fosse imparcial, não seria parte. Se fosse imparcial, não precisaria juiz. Imparcial é o juiz. A função de ser imparcial pertence ao juiz, não ao Ministério Público, e não pode esse órgão tentar usurpar a função jurisdicional.
O MP não é, nem pode nem deve, ser imparcial, do contrário não haveria o indispensável contraditório no processo penal. A ação penal, o processo penal, funda-se na dúvida quanto à relação jurídica que vincula o Estado ao acusado, se é aquela relação jurídica em que o Estado detém o direito de punir (se o acusado é culpado — sujeito passivo da relação), ou se é aquela outra em que o acusado detém o direito de liberdade (se o acusado é inocente — sujeito ativo da relação). Havendo essa dúvida, é pacífico, e é da sistemática da ordem processual, o MP deve acusar. Diante da prova duvidosa, deve denunciar. Na dúvida, deve fazer a persecução do delito.
O MP só seria imparcial se, diante da dúvida, estivesse obrigado a pedir a absolvição, ou a recorrer em favor do condenado, o que não ocorre. Excepcionalmente, quando as provas, com um bom grau de certeza, indicam a inocência do acusado, o MP pode pedir a absolvição. Pode até mesmo, nessa hipótese, recorrer em favor do acusado, buscando o reconhecimento de sua inocência. Mas essas faculdades não constituem razões suficientes para considerar o MP como fiscal da lei, já que não são propriamente consequência da lei processual, mas derivam do fato de que ninguém pode ser obrigado a fazer algo que viole a sua própria consciência.
A tudo isso poderia ser acrescentado o aspecto psíquico. O MP acusa com muita frequência (no seu dia a dia), e para acusar é preciso raciocinar de maneira investigativa (é preciso partir de hipóteses de comportamento criminoso), e, sabe-se, essa forma de pensar acaba condicionando o juízo, o que torna muito difícil ao acusador, mesmo que queira, formar convicções isentas de parcialidade (condicionamento semelhante vale para o defensor). É justamente por essas razões de ordem psíquica que o sistema acusatório demonstrou-se no curso da história muito superior ao sistema inquisitivo para chegar mais próximo da verdade do que o inquisitivo (no inquisitivo, para julgar, antes o inquisidor precisa elaborar hipóteses acusatórias e investigar as respectivas provas).
Por todos esses motivos é que não nos convence a ideia de que o MP, mesmo atuando perante o tribunal, figure como custos legis. Essa é uma ficção criada pela doutrina e pela jurisprudência. A prática confirma nosso entendimento, já que a imensa maioria dos pareceres do MP em 2ª instância são no sentido de confirmar e/ou reforçar a tese acusatória apresentada nas razões ou contrarrazões da acusação lançadas em 1ª instância.
Além do mais, o procurador de Justiça ou procurador regional da República que atua perante o tribunal continua sendo membro do Ministério Público, mesma instituição a que pertencem os colegas que firmam as razões recursais. Essa posição, a de pertencer ao MP, instituição encarregada da persecução de delitos, acrescida do fato de que quem oferece razões ou contrarrazões ao recurso ser um colega, retiram do procurador a possibilidade de ser isento.
São compreensíveis as razões de o MP defender a tese de que é fiscal da lei: concede mais credibilidade às suas manifestações. Mas, se formos considerar o MP fiscal da lei, ele o é tanto quanto o defensor. Um fiscaliza a lei que manda punir os culpados, e outro que manda absolver os inocentes. Ambos são xerifes da lei penal. Ambos possuem direito à estrela no peito. O MP é fiscal das tipicidades da lei penal, a defesa dos vácuos existentes entre as tipicidades, e também da efetividade das normas excludentes de tipicidade, de antijuridicidade, de culpabilidade e extintivas de punibilidade. Das tipicidades nasce o direito de punir. Nos buracos negros situados entre os tipos penais brota o direito de liberdade. A propósito, se for para estabelecer comparações, dá para sustentar que a defesa é mais fiscal da lei que o MP. Merece, portanto, uma estrela maior em seu peito.
O que é mais grave? O que viola com maior intensidade a ordem jurídica? Um culpado inocentado ou um inocente condenado e cumprindo pena por algo que não fez? Da resposta dá para extrair a conclusão que o bem jurídico fiscalizado pela defesa (a liberdade do inocente) constitui bem maior do que o fiscalizado pela acusação (a punição do culpado). É conclusão que pode provocar estranheza em alguns, o que é explicável tendo em consideração que se vive ultimamente um período de excepcionalidade, repressivo e punitivo, em que as leis não mais governam os homens, mas alguns poucos homens governam as leis.
 é procurador do Banco Central do Brasil.

Revista Consultor Jurídico, 6 de dezembro de 2017, 6h06

Delegado não comete improbidade só por ter opinião diferente do Ministério Público

INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL


Os delegados de polícia não cometem atos de improbidades administrativa só por apresentarem opinião diferente do Ministério Público ao registrarem crimes. Isso porque os delegados têm competência para analisar e interpretar o caso que lhes é apresentado.
Com esse entendimento, a 1ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo anulou sentença que condenou um delegado à perda de cargo por ter registrado como auxílio ao consumo de drogas um crime que o Ministério Público entendeu como tráfico.
Em primeiro grau, o juiz Bruno Machado Miano, da Vara da Fazenda Pública de Mogi das Cruzes (SP), afirmou ao aplicar a pena que agentes públicos também respondem por improbidade administrativa quando praticam atos baseados em opinião que transborda o lógico e as teses já pacíficas na jurisprudência e nas práticas da carreira.
O crime que motivou a divergência foi cometido por uma mulher flagrada com 40 gramas de maconha ao visitar seu companheiro no Centro de Detenção Provisória da cidade. Ao registrar o crime, o delegado justificou que a acusada apenas tentou levar a droga para o namorado, para que consumissem juntos.
O Ministério Público denunciou o delegado na esfera criminal, sob acusação de prevaricação, e na esfera cível, por improbidade. O réu foi absolvido no primeiro caso, em primeiro e segundo graus, e no outro processo negou dolo ou má-fé.
Para o relator da ação de improbidade na 1ª Câmara, desembargador Marcos Pimentel, destacou que a liberdade funcional de delegados é assegurada por previsão legal e também pela exigência de que sejam bacharéis em Direito. “Isto é, dotados de suficiente e adequado conhecimento jurídico”, afirmou.
“Não se está diante de um autômato, mas, antes, de legítimo operador do Direito, a autorizar a formulação de juízos de valor, sem prejuízo à aplicação das normas jurídicas de regência”, complementou. Mencionou também que as particularidades do caso concreto, ainda mais no Direito Penal, permitem diversas interpretações, “cumprindo ao Delgado de Polícia proceder àquela que, em concreto, reputar adequada”.
Sem improbidade
Segundo o relator, não há improbidade no caso por falta de dolo na atuação do delegado. “À luz dos fatos apresentados, não existe qualquer ilegalidade ou má conduta na sua capitulação pelo crime de ‘auxílio ao consumo de drogas’”, resumiu.

Disse ainda que não há adequação material ao ato de improbidade no caso, pois a norma que rege as punições a esse tipo de delito “tem caráter marcadamente repressivo”, ou seja, focada em punir agentes públicos que enriquecem ilicitamente, causam prejuízo ao erário ou atentem contra os princípios da administração pública.
Explicou por fim que esse ilícito enquadra as condutas que não seguem o bom trato da coisa pública, não diferenças de entendimento. “Não é possível se cogitar da omissão do demandado, já que lavrou o registro que julgara cabível na espécie.”
O delegado da Polícia Civil do Paraná e colunista da ConJur, Henrique Hoffmann, elogiou a decisão. Disse também que “o Delegado é autoridade dotada de independência funcional, possuindo liberdade para realizar sua análise técnico-jurídica sem receio de pressões de qualquer sorte, prerrogativa que protege o próprio cidadão".
"Todo integrante do Ministério Público e do Judiciário deveria saber que inexiste hierarquia entre as diversas carreiras jurídicas, devendo ser rechaçada a tentativa de criação de ilícito de hermenêutica”, complementou ao criticar a atitude do MP.
Processo 1008253-56.2014.8.26.0361
Clique aqui para ler o acórdão.
Revista Consultor Jurídico, 7 de dezembro de 2017, 18h11

Benefício previdenciário não prescreve, mas prestações, sim

A QUALQUER TEMPO


O benefício previdenciário é imprescritível. No entanto, prescrevem as prestações não reclamadas pelo beneficiário no período de cinco anos, em razão de sua inércia. A decisão é da 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que negou recurso no qual o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) alegava estar prescrito o direito de uma trabalhadora rural requerer salário-maternidade.
Segundo o INSS, deveria ser aplicado ao caso o prazo decadencial de 90 dias, conforme o previsto no parágrafo único do artigo 71 da Lei 8.213/91, vigente à época do nascimento dos filhos da autora.
O ministro Napoleão Nunes Maia Filho esclareceu que a Lei 8.861/94 alterou o artigo 71 da Lei 8.213/91, fixando um prazo decadencial de 90 dias após o parto para requerimento do benefício pelas seguradas rurais e domésticas. Entretanto, esse prazo decadencial foi revogado pela Lei 9.528/97.
De acordo com o ministro, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 626.489, com repercussão geral, firmou entendimento de que “o direito fundamental ao benefício previdenciário pode ser exercido a qualquer tempo, sem que se atribua qualquer consequência negativa à inércia do beneficiário, reconhecendo que inexiste prazo decadencial para a concessão inicial de benefício previdenciário”.
Napoleão explicou que os benefícios previdenciários envolvem relações de trato sucessivo e atendem necessidades de caráter alimentar. “As prestações previdenciárias têm características de direitos indisponíveis, daí porque o benefício previdenciário em si não prescreve, somente as prestações não reclamadas no lapso de cinco anos é que prescreverão, uma a uma, em razão da inércia do beneficiário”, disse.
Para o ministro, é necessário reconhecer a inaplicabilidade do prazo decadencial, já revogado, ao caso, ainda que o nascimento do filho da segurada tenho ocorrido durante sua vigência.
“Não se pode desconsiderar que, nas ações em que se discute o direito de trabalhadora rural ou doméstica ao salário maternidade, não está em discussão apenas o direito da segurada, mas, igualmente, o direito do infante nascituro, o que reforça a necessidade de afastamento de qualquer prazo decadencial ou prescricional que lhe retire a proteção social devida”, afirmou.
Napoleão Nunes Maia Filho afirmou ainda que, se a Constituição Federal estabelece a “uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais, não seria razoável admitir-se um prazo decadencial para a concessão de benefício dirigido tão somente às trabalhadoras rurais e domésticas”. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.
REsp 1.420.744
REsp 1.418.109
Revista Consultor Jurídico, 7 de dezembro de 2017, 10h46