"Eu não recearia muito as más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Não há texto de lei que não deixe campo à interpretação.

A lei é morta. O magistrado vivo. É uma grande vantagem que ele tem sobre ela" - Anatole France

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Dano moral não é só sofrimento


A crescente superação do “mero aborrecimento”


Marcos Dessaune, Advogado
Publicado por Marcos Dessaune


Em sua obra “A indústria do mero aborrecimento”, Miguel Barreto (2016) registra que a Emenda Constitucional 45, que foi promulgada em 2004, reformou o Poder Judiciário e criou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em 2009, o CNJ implantou metas de produtividade para o Poder Judiciário, especialmente para reduzir o acervo de processos existentes bem como para que fossem julgados mais processos do que os distribuídos durante o ano.
Barreto acrescenta que, objetivando evitar a multiplicação de processos gerados por condutas repetidamente abusivas de certos fornecedores, naquela época os tribunais brasileiros criaram uma “jurisprudência defensiva”, ora para negar indenizações ora para reduzir seu valor, de modo a desestimular novas ações.
Nesse contexto surgiu a hoje chamada jurisprudência do “mero aborrecimento”, que pode ser resumida neste julgamento de 2009 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Recurso Especial 844.736/DF: “Só deve ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar. Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto tais situações não são intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo”.
Tal entendimento reverbera um conceito antigo de “dano moral”, cujo grande expoente no Brasil é o professor Sergio Cavalieri Filho. Embora já esteja superado pela doutrina contemporânea e pelo próprio autor que atualizou seu entendimento, tal conceito continuou a ser reproduzido indiscriminadamente no Direito brasileiro. Nesse sentido Fernando Noronha (2013) acrescenta, inclusive, que existe uma “tradicional confusão” entre danos extrapatrimoniais e danos morais presente em praticamente todos os autores reputados como “clássicos nesta matéria”.
Sendo assim e com base em diversos autores como os próprios Cavalieri e Noronha, passei a sustentar que os danos extrapatrimoniais, por serem tradicionalmente chamados de “danos morais”, podem ser classificados em duas espécies: dano moral stricto sensu e dano moral lato sensu. O primeiro decorre da lesão à integridade psicofísica da pessoa – cujo resultado geralmente são sentimentos negativos como a dor e o sofrimento –, enquanto o último resulta da lesão a um atributo da personalidade ou da violação à dignidade humana.
Após estudar a problemática na Teoria aprofundada do Desvio Produtivo do Consumidor (DESSAUNE, 2017), cheguei à conclusão que o entendimento jurisprudencial de que o consumidor, ao enfrentar problemas de consumo criados pelos próprios fornecedores sofre “mero dissabor ou aborrecimento” e não dano moral indenizável, revela um raciocínio construído sobre bases equivocadas que, naturalmente, conduzem a essa conclusão errônea. O primeiro equívoco é que o conceito de dano moral enfatizaria as consequências emocionais da lesão, enquanto ele já evoluiu para centrar-se no bem ou interesse jurídico atingido; ou seja, o objeto do dano moral era a dor, o sofrimento, a humilhação, o abalo psicofísico, e se tornou qualquer atributo da personalidade humana lesado. O segundo (equívoco) é que, nos eventos de desvio produtivo, o principal bem ou interesse jurídico atingido seria a integridade psicofísica da pessoa consumidora, enquanto, na realidade, são o seu tempo vital e as suas atividades existenciais – como trabalho, estudo, descanso, lazer, convívio social e familiar, etc. O terceiro (equívoco) é que esse tempo existencial não seria juridicamente tutelado, enquanto, na verdade, ele se encontra protegido tanto no rol aberto dos direitos da personalidade quanto no âmbito do direito fundamental à vida. Por conseguinte o lógico é concluir que as situações de desvio produtivo do consumidor acarretam, no mínimo, dano moral lato sensu indenizável.
Com a disseminação da nova Teoria a partir de 2012, os tribunais brasileiros paulatinamente passaram a adotá-la e a aplicá-la, assim iniciando um processo de gradual transformação daquela jurisprudência defensiva que, até então e em grande medida, não reconhecia a existência de danos morais em casos em que eles estavam claramente presentes, sob o fundamento de haver “mero dissabor ou aborrecimento” normal na vida do consumidor.
O auge da superação da jurisprudência em tela ocorreu em dezembro de 2018, quando o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) revogou por unanimidade de votos, após provocação da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção do Rio de Janeiro (OAB/RJ), o Verbete Sumular 75 que havia sido criado em 2004 e ficara conhecido como a “Súmula do Mero Aborrecimento”. Tanto o pedido da OAB/RJ quanto a decisão do TJRJ basearam-se na Teoria do Desvio Produtivo.
Em dezembro de 2019, desejando avançar ainda mais na defesa constitucionalmente garantida ao vulnerável, a OAB/RJ pediu ao mesmo TJRJ a "sumulação" da Teoria do Desvio Produtivo para trazer mais proteção aos consumidores que, a despeito de todos os recentes avanços doutrinários e jurisprudenciais, ainda são lesados diariamente num de seus bens mais preciosos: o seu tempo vital.
Portanto é lícito concluir que dano moral não é só sofrimento; é também lesão ao tempo – entre outros bens juridicamente tutelados. Afinal, o tempo é o suporte implícito da vida, que dura certo tempo e nele se desenvolve; e a vida, enquanto direito da personalidade e direito fundamental, é constituída de atividades existenciais que nela se sucedem.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Lei dos planos de saúde aplica-se a planos geridos por pessoas jurídicas de Direito Público

Decisão é da 3ª turma do STJ.
quarta-feira, 15 de abril de 2020     
A 3ª turma do STJ definiu que os benefícios assistenciais de saúde disponibilizados por pessoa jurídica de direito público aos seus servidores e dependentes estão submetidos à lei 9.656/98 (lei dos planos de saúde).
O recurso teve origem em ação ajuizada pela contratante de um plano oferecido por uma autarquia municipal, após a negativa do custeio do tratamento domiciliar pleiteado. Os pedidos foram julgados improcedentes nas instâncias de origem, ao argumento de que o contrato celebrado entre as partes, que exclui a cobertura de serviços de enfermagem de caráter particular e de tratamento domiciliar, é válido.
O TJ/PR entendeu que não incidem os dispositivos da lei 9.656/98, porque a operadora é pessoa jurídica de Direito Público, não se enquadrando na hipótese prevista no artigo 1º do referido diploma legal.
Aplicabilidade
t
Em sede recursal, o ministro Ricardo Cueva, redator para o acórdão, considerou que, embora o artigo 1º da lei dos planos declare que estão submetidas às suas disposições as pessoas jurídicas de Direito Privado, o parágrafo 2º amplia a sua abrangência para também incluir outras espécies de entidades que mantenham sistemas de assistência à saúde.
"A utilização das expressões 'entidade' e 'empresas' no parágrafo 2º, conceitos jurídicos amplos e não propriamente técnicos, bem como a inserção das 'cooperativas' com a Medida Provisória 2.177-44, em 2001, denotam a intenção do legislador de ampliar a aplicação da Leis dos Planos a todas as pessoas jurídicas que atuem prestando serviços de saúde suplementar."
O ministro observou que a recorrida, por ser pessoa jurídica de direito público de natureza autárquica, criada por lei municipal, destoa da maioria das entidades criadas por entes públicos para prestar assistência suplementar de saúde a seus servidores, que, em regra, são fundações públicas de direito privado.
Contudo, tal especificidade não a coloca à margem da incidência da lei 9.656/98, nem a exime de observar as disposições mínimas estabelecidas pelo legislador para os contratos dessa natureza.
Com relação ao caso concreto, Cueva destacou que, à luz da norma, a Corte considera abusiva a cláusula que exclui a cobertura de internação domiciliar como alternativa à internação hospitalar. No caso, verificou-se que o tratamento pretendido pela recorrente amolda-se à assistência domiciliar, modalidade de serviço diferente da internação domiciliar, cuja cobertura, por plano de saúde, não é obrigatória.
A decisão do colegiado, desprovendo o recurso, foi por maioria, vencida a relatora Nancy Andrighi.
Veja o acórdão.
Acessado e disponível na Internet no endereço eletrônico -

sábado, 11 de abril de 2020

A Lei Maria da Penha Foi Alterada. Conheça as novas medidas Protetivas

Nesse texto serão realizadas breves considerações sobre as inovações trazidas à conhecida Lei Maria da Penha, que ainda que curtas, apresentam novidades importantes para a aplicação de medidas protetivas que auxiliem tanto a vítima como o agressor.


Em vigor desde o dia 03 de Abril de 2020 a Lei Nº 13.984, sendo a mais recente alteração que ocorreu na Lei nº 11.340, a conhecida Lei Maria da Penha, que passa a obrigar o agressor a frequentar centro de educação e de reabilitação e acompanhamento psicossocial.
Reproduzo aqui a íntegra da alteração, uma vez que é pequeno o texto, e serve para melhor memorizar o conteúdo.
“O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º Esta Lei altera o art. 22 da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para obrigar o agressor a frequentar centro de educação e de reabilitação e a ter acompanhamento psicossocial.
Art. 2º O art. 22 da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 22.

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VI – comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação; e
VII – acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio.
……………………………………………………………………………………………………” (NR)
Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”
A Lei trouxe de inovação a compulsoriedade do tratamento ou acompanhamento do agressor, por profissionais em sua multidisciplinariedade psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, que fornecerão esse cuidado ao indivíduo agressor.
Esse tratamento compulsório firmado na novel legislação, está descrito em duas formas;
Primeiro, comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação. Esses programas são já oferecidos pela justiça estadual, como palestras, oficinas, workshops, entre outros que venham a serem criados, ou se já existentes, indicados pela justiça.
Segundo, acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio. Nesse caso entende-se que o agressor terá que se consultar com psicólogo ou psiquiatra e receber o tratamento. Seja individual ou em grupo como é a determinação do comando legal.
Ressalta-se que essas alterações se deram no artigo 22 da Lei Maria da Penha, que tratam das medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor, isto é, essa inovação, não será aplicada após a sentença, como se condenação fosse, mas já na medida protetiva.
Dessa forma quando a justiça recebe o comunicado da agressão, imediatamente uma das obrigações poderá ser o tratamento/acompanhamento do agressor.
Nesse sentido há que se elogiar a alteração legislativa, pois, muitos relacionamentos podem ser refeitos, como ocorre muito, mesmo após as agressões, quem atua nessa área sabe bem, que o número de reconciliações é muito maior que o de separações.
E, no caso, o agressor, passa a ter um tratamento humanizado por parte da Lei, não apenas a penalização, mas uma espécie de ressocialização, que é o fundamento da Lei e o espírito dessa mudança.
Uma questão que surge é a seguinte, caso o agressor frequente o centro de reabilitação, ou o acompanhamento individual, ele ainda assim terá que cumprir pena caso seja condenado?
A resposta é sim! Veja que as mudanças vieram no rol das medidas protetivas, e nenhuma delas é excludente de ilicitude, mas são medidas que visam cessar o mal contra a vítima da forma mais rápida possível, como afastamento do lar, proibição de aproximação em determinada distância, proibição de contato por qualquer meio, e agora obrigação de frequentar centro de recuperação ou acompanhamento profissional.
Então não há discussão sobre diminuição de pena, ou absolvição, é obrigação de fazer, de cumprir, em matéria de medida protetiva de urgência, não interferindo em nada na sentença condenatória, caso ocorra.
Outro questionamento que se pode levantar é; Caso seja uma falsa comunicação de agressão, e ainda assim seja recebida pela justiça, o suposto agressor, terá que cumprir a medida protetiva?
A resposta é sim. Até que a defesa atue no processo e demonstre serem falsas as acusações imputadas, será necessário o acusado cumprir a medida protetiva. Frisa-se que só quem revoga medida protetiva é o juiz, a pedido da vítima ou se consubstanciada em provas robustas da defesa.
Caso a acusação seja infundada, e defesa atuará no sentido de revogar as medidas protetivas impostas pela autoridade judicial, retirando assim a obrigação de tratamento ou acompanhamento compulsório do suposto autor.
Em nossa opinião, acertada a inovação, vinda do projeto da ex-senadora Regina Sousa, hoje vice-governadora do Piauí, trouxe benefícios enormes tanto ao agressor como a vítima, pois sem dúvida um agressor que passa por acompanhamento terá alguma diferença em seu comportamento que somente haveria com as medidas protetivas já existentes.
A frequência compulsória a cursos, atividades, orientações, tratará a raiva e a agressividade do sujeito que maltrata a mulher, na tentativa de restabelecer comportamento normal e obrigatório de respeito às mulheres.
Essa é uma forma de usar a justiça para tratar da personalidade do agressor, e buscar sua recolocação saudável no seio da família.
Importa frisar que o juiz determinará qual será a obrigação do agressor, não sendo possível escolher, se acompanhamento por profissional ou comparecimento a programas de recuperação.
Pois bem, essas foram as alterações trazidas pela Lei Nº 13.984 de 03 de Abril de 2020, para estabelecer como medidas protetivas de urgência frequência do agressor a centro de educação e de reabilitação e acompanhamento psicossocial.
E você o que achou dessas alterações, deixe seu comentário ou dúvidas sobre essa importante mudança.
Em todo caso, consulte sempre um advogado.
– Dr. Rafael Rocha