"Eu não recearia muito as más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Não há texto de lei que não deixe campo à interpretação.

A lei é morta. O magistrado vivo. É uma grande vantagem que ele tem sobre ela" - Anatole France

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

STF permite averbação e proíbe a indisponibilidade de bens pela Fazenda

 

EXECUÇÃO ADMINISTRATIVA


Por 

A Fazenda Pública pode averbar, mas não pode decretar a indisponibilidade de bens sem decisão judicial ou direito ao contraditório. O entendimento foi firmado pela maioria do Supremo Tribunal Federal, nesta quarta-feira (9/12), ao declarar inconstitucional trecho da Lei 13.606/2018, que permite a medida. 

Supremo afasta trecho que permitia Fazenda Pública declarar indisponibilidade de bens
Rosinei Coutinho/STF

Ao todo, seis ações questionaram a constitucionalidade do artigo 25 da Lei 13.606/2018, que inseriu na Lei do Cadin (Lei 10.522/02) o artigo 20-B. Nele, é previsto que a Fazenda poderá, em caso de não pagamento do crédito inscrito em dívida ativa, "averbar, inclusive por meio eletrônico, a certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora, tornando-os indisponíveis".   

Relator, Marco Aurélio votou para determinar a inconstitucionalidade dos dispositivos. Para ele, a lei promoveu um desvirtuamento do sistema de cobrança da dívida ativa da União e está "em desarmonia com as balizas constitucionais no sentido de obstar ao máximo o exercício da autotutela pelo Estado".

Marco Aurélio citou artigo do professor Fernando Facury Scaff em coluna na ConJur, no qual o tributarista explica que o dispositivo "cria uma espécie de 'execução fiscal administrativa', que se iniciará com a constrição dos bens, para posterior análise judicial — se isso ocorrer".  

"O sistema não fecha, revelando-se o desrespeito aos princípios da segurança jurídica, da igualdade de chances e da efetividade da prestação jurisdicional, os quais devem ser observados por determinação constitucional, em contraposição à ideia da 'primazia do crédito público'", afirmou o relator. Seu voto foi seguido por Nunes Marques e Luiz Edson Fachin.

Barroso sugeriu caminho médio adotado pela maioria; será redator do acórdão
Nelson Jr./STF

Luís Roberto Barroso inaugurou a linha de entendimento de que a averbação é legítima e prevista em lei, mas a indisponibilidade não pode ser automática e exige reserva de jurisdição. "A intervenção drástica sobre o direito de propriedade exige a atuação do poder Judiciário."

Votaram da mesma forma os ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Luiz Fux. Gilmar também validou a averbação e apontou que a indisponibilidade de bens poderá ser eventualmente alcançável, mas precisa contar com a atuação do Judiciário. Ele votou pela inconstitucionalidade somente do trecho "tornando-os indisponíveis" da lei.

Constitucionalidade da norma
Inaugurando a divergência, o ministro Dias Toffoli entendeu que o dispositivo não ofende a cláusula de reserva de jurisdição, ao contraditório e à ampla defesa.

Também afastou a alegada ofensa ao artigo 5º, XXXV, porque “inexiste necessidade de acionar o Judiciário para averbação pré-executória, já que ela consiste em mero ato de registro''. A averbação não afasta a possibilidade do devedor ir à Justiça, segundo Toffoli.

Votando pela constitucionalidade da indisponibilidade de bens pela Fazenda, Toffoli também entendeu que não há ofensa ao princípio da livre iniciativa, porque sendo o devedor pessoa jurídica, “a averbação recairá sobre bens e direitos de sua propriedade”.

Toffoli afastou alegações de que a lei ofende a livre iniciativa, a cláusula de reserva de jurisdição, o contraditório e a ampla defesa.

Para Toffoli, a lei impugnada buscou aprimorar a eficiência da cobrança do crédito inscrito em dívida ativa. Alexandre de Moraes concordou com Toffoli e explicou seu entendimento de que a norma não representa expropriação de bens, mas apenas a indisponibilidade temporária. 

Também compuseram essa corrente as ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia.

As ações
A primeira ADI questionando a norma foi protocolada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), que alegou afronta aos princípios constitucionais do devido processo legal, da reserva de jurisdição, do direito de propriedade e da isonomia.

De acordo com o PSB, a medida institui o Programa de Regularização Tributária Rural, o Refis do Funrural, e não ajuda o Fisco a combater devedores que se valem de subterfúgios para esconder seus bens, afetando apenas aqueles que têm dívidas, mas agem legalmente.

Outra ação foi protocolada pelo Conselho Federal da OAB, que sustenta que a lei contém duas previsões inconstitucionais. A primeira trata da possibilidade de a Fazenda Pública comunicar o nome dos contribuintes inscritos em dívida ativa aos órgãos que operam bancos de dados e cadastros específicos relativos a consumidores e aos serviços de restrição ao crédito.

A segunda permite que o Fisco torne indisponíveis bens particulares à revelia do Poder Judiciário, fazendo o bloqueio com o pretexto de não frustrar a satisfação dos débitos tributários. 

A Procuradoria-Geral da República manifestou pela declaração de inconstitucionalidade do trecho da lei. As outras ações foram ajuizadas pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, pela Associação Brasileira de Atacadistas e Distribuidores de Produtos Industrializados (Abad), pela Confederação Nacional do Transporte e pela Confederação Nacional da Indústria.

Clique aqui para ler o voto do relator
Clique aqui para ler o voto de Fachin
ADIs 5.881, 5.932, 5.886, 5.890, 5.925 e 5.931




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 é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 9 de dezembro de 2020, 19h03

Os novos elementos do tipo penal de denunciação caluniosa.

 


Por 

A Lei 14.110, de 18/12/2020, alterou a redação do artigo 339 do Código Penal, que tipifica o crime de denunciação caluniosa.

Algumas alterações realizadas corrigiram deficiências técnicas que existiam na redação anterior. Assim é que o novo dispositivo substituiu o elemento objetivo investigação policial por inquérito policial e procedimento de investigação criminal; investigação administrativa por processo administrativo disciplinar. Além disso, incluiu infração ético-disciplinar e ato ímprobo como elementos objetivos do tipo.

O dispositivo, com sua nova redação, diz que:

"Dar causa à instauração de inquérito policial, de procedimento investigatório criminal, de processo judicial, de processo administrativo disciplinar, de inquérito civil ou de ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime, infração ético-disciplinar ou ato ímprobo de que o sabe inocente: Pena. Reclusão, de dois a oito anos, e multa."

Com essas alterações foram supridas omissões e contradições existentes no tipo, que geravam confusão e dúvidas na interpretação da norma penal.

O bem jurídico tutelado é a administração da justiça no seu sentido mais amplo. Condutas como as retratadas no dispositivo atrapalham o normal desenvolvimento de investigações e processos, na área cível, criminal e administrativa.

À primeira vista pareceria que o delito não poderia ser cometido por agentes públicos, o que não é verdade. O crime é comum. Por isso, pode ser praticado por qualquer pessoa, inclusive por delegado de polícia e promotor de Justiça, desde que saibam que a pessoa a quem imputam o cometimento da infração é inocente (dolo direto).

Aliás, o artigo 27 da Lei 13.869/2019, que trata dos crimes de abuso de autoridade, traz norma especial sobre o tema. Cometerá abuso de autoridade o agente público competente que: "Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Parágrafo único. Não há crime quando se tratar de sindicância ou investigação preliminar sumária, devidamente justificada".

Também comete abuso de autoridade, de acordo com o artigo 30 da Lei 13.869/2019, o agente público competente que: "Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente: Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa".

As duas normas previstas na Lei de Abuso de Autoridade são especiais e, no caso de conflito com a norma geral prevista no Código Penal, serão aplicadas, não obstante cominem pena mais amena.

Cuidando-se de ação penal pelo delito falsamente imputado pública condicionada ou privada, só os titulares deste direito (representação, requisição ou queixa) é que poderão ser o sujeito ativo do delito em apreço, porque somente com a iniciativa dessas pessoas é que poderá haver a instauração de investigação criminal ou ação penal.

Não apenas o Estado será a vítima deste delito. Também é sujeito passivo secundário a pessoa atingida pela falsa imputação.

A conduta típica consiste em dar causa à instauração de inquérito policial, de procedimento investigatório criminal, de processo judicial, de processo administrativo disciplinar, de inquérito civil ou de ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime, contravenção penal, infração ético-disciplinar ou ato de improbidade administrativa, de que o sabe inocente.

O agente, sabedor de que uma pessoa é inocente (dolo direto), imputa a ela a prática de crime, contravenção penal, infração ético-disciplinar ou ato ímprobo que não cometeu ou que sequer existiu, provocando a instauração de procedimento investigativo (inquérito policial, procedimento investigatório criminal ou inquérito civil), processo administrativo disciplinar, processo judicial criminal ou por ato de improbidade administrativa.

Inquérito policial é o procedimento inquisitivo instaurado pela polícia Judiciária para apuração de infrações penais. Não há necessidade da instauração formal do procedimento, bastando que ocorra o início de uma investigação, como quando são ordenadas diligências para apuração preliminar sobre a existência de determinado fato.

Procedimento investigatório criminal, mais conhecido como PIC, é a investigação criminal realizada no âmbito do Ministério Público para a apuração de infração penal de natureza pública [1].

Antes do advento da Lei 10.028/2000, que inseriu no tipo a investigação administrativa, o inquérito civil e a ação por ato de improbidade administrativa, pacífico se mostrava o entendimento de que o processo judicial a que alude a norma era apenas o de natureza penal. Atualmente, também está abrangido o processo civil decorrente da propositura de ação civil pela prática de ato de improbidade administrativa. Como a simples instauração do inquérito civil já é ato configurador do delito, com muito mais razão também deve ser o processo decorrente da propositura de uma ação de improbidade administrativa.

Processo administrativo é aquele que tramita perante a administração pública para apuração de uma infração ético-disciplinar. A nova redação do dispositivo não mais contempla a mera sindicância administrativa ou procedimento similar, que normalmente antecedem a instauração do processo administrativo disciplinar e servem para angariar indícios da prática da infração administrativa.

Inquérito civil é o procedimento administrativo e inquisitivo instaurado no âmbito do Ministério Público para apuração de fatos que importem violação a interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos. Geralmente, ele antecede a propositura de uma ação civil pública que é movida para a tutela desses interesses. No caso, o inquérito civil deve ter sido instaurado para a apuração da prática de ato de improbidade administrativa, como deixa claro a parte final do tipo penal.

Ação de improbidade administrativa é a movida para o reconhecimento de infração de natureza civil descrita na Lei 8.429/1992, que pode ensejar ao funcionário público a perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao seu patrimônio, reparação integral do dano, quando houver, a perda da função pública, a suspensão dos direitos políticos, a proibição de contratar com o Poder Público por determinado tempo e o pagamento de multa. Também pode atingir o particular, inclusive empresa, que age em concurso com o funcionário público ou do ato ímprobo se beneficie direta ou indiretamente.

A nova redação dada ao tipo penal supriu a lacuna normativa existente. Pela redação anterior, o processo ou o procedimento a que alude o tipo devia ter sido instaurado em decorrência da falsa imputação de crime ou de contravenção. Se houvesse a instauração para a apuração da prática de infração disciplinar ou de ato de improbidade administrativa, que não correspondessem a uma infração penal, não haveria o delito.

Pela atual redação, o ato de improbidade administrativa e a infração ético-disciplinar passaram a ser elementos objetivos do tipo, cessando a celeuma existente.

A imputação pode ser de fato que realmente existiu ou fictício, mas feita a pessoa determinada. A imputação pode dar-se por qualquer meio (oral, escrito, notícia anônima, por interposta pessoa etc.).

Não haverá o crime se a imputação for parcialmente verdadeira, sendo que o erro exclui o dolo e o crime.

Também não haverá a denunciação caluniosa se em decorrência do fato imputado houver a absolvição ou o arquivamento do inquérito policial ou do procedimento investigatório criminal em virtude da extinção da punibilidade (prescrição, anistia etc.), ou se for reconhecida alguma causa excludente da ilicitude ou da culpabilidade. Isso porque havia fato típico sujeito a investigação da autoridade policial ou do membro do Ministério Público, ou, ainda, de ação da autoridade Judiciária.

Não é porque o inquérito policial ou procedimento investigatório criminal foram arquivados ou adveio a absolvição que ocorrerá a denunciação caluniosa. Para a caracterização do delito é exigida a falsa imputação dolosa da infração penal (dolo direto).

Advindo a absolvição por estar provada a inexistência material do fato ou que o acusado não foi o seu autor ou partícipe, o crime em estudo poderá estar configurado, desde que tenha havido a falsa imputação dolosa da infração (crime ou contravenção).

Do mesmo modo que ocorre com a infração penal, advindo o arquivamento do inquérito civil ou do processo administrativo, ou a improcedência da ação de improbidade administrativa por insuficiência de provas, não ocorrerá denunciação caluniosa, que pressupõe dolo direto de imputar falsamente a prática do ato ilícito.

Também ocorrerá o delito se o sujeito aumentar a gravidade do crime originalmente praticado. Como exemplo, se o sujeito sabe que Fulano praticou fato definido na lei penal como furto, mas leva ao conhecimento da autoridade policial a ocorrência de fato caracterizador do delito de roubo, dando causa à instauração do inquérito policial, ocorrerá denunciação caluniosa.

A denunciação caluniosa absorve a calúnia, que é sua elementar, mas não a difamação e a injúria, que são com ela compatíveis.

Há sensível diferença entre este delito e a calúnia. Nesta última, há somente a falsa imputação de crime. Na denunciação caluniosa, o agente imputa o fato ilícito falsamente e dá causa à instauração de procedimento investigativo (inquérito policial, procedimento investigatório criminal ou inquérito civil), processo administrativo disciplinar, processo judicial criminal ou por ato de improbidade administrativa.

Por outro lado, se a imputação for à pessoa indeterminada de crime ou contravenção que não ocorreu, o delito será o de falsa comunicação de crime ou contravenção, desde que tenha havido provocação da ação da autoridade (Código Penal, artigo 340).

Na teoria, para que seja proposta a ação penal por este delito, não há necessidade do arquivamento ou julgamento do feito cuja imputação falsa o deflagrou, haja vista não haver questão prejudicial. Todavia, na prática é recomendável, isso para que não ocorram decisões conflitantes. De tal forma, antes de ser proposta a ação penal por este delito, deve-se aguardar o arquivamento do procedimento investigativo, processo administrativo disciplinar ou a sentença da ação judicial oriundas da falsa imputação do crime, contravenção, infração ético-disciplinar ou ato de improbidade administrativa.

Ocorre a consumação do delito com a instauração do inquérito policial, do procedimento investigatório criminal, do inquérito civil, do processo judicial ou do processo administrativo disciplinar (crime material). Inclusive, basta que a autoridade (delegado, promotor etc.) inicie as investigações sem a necessidade de instauração formal do procedimento. Admite-se a tentativa, quando, embora tenha havido a falsa imputação, o crime não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.

A norma possui uma causa de aumento e outra de diminuição de pena previstas nos parágrafos 1º e 2º.

Se o agente se servir de anonimato ou de nome suposto para a prática do delito, a pena será aumentada de sexta parte (parágrafo 1º). Cuida-se de conduta mais severa porque é mais difícil apurar a autoria do delito e a culpabilidade do agente é mais acentuada.

A imputação pode ser da prática de crime ou contravenção. No caso de contravenção, a pena é diminuída da metade (parágrafo 2º). Como contravenção é infração penal mais amena, haverá a redução da reprimenda obrigatoriamente.

As alterações trazidas são muito bem-vindas porque solucionaram dúvidas doutrinárias a respeito do tema.

Ademais, esta modalidade de delito traz inegável prejuízo aos órgãos de investigação e à Justiça, posto que são instaurados procedimentos para a apuração de fatos praticados por outra pessoa ou que não ocorreram, além de causar sérios transtornos e gravames àquele que é investigado ou processado indevidamente.


[1] O Ministério Público possui poder de investigação criminal decorrente de suas próprias atribuições constitucionais, dentre elas a titularidade da ação penal pública (artigo 129 da Constituição). Não é preciso muita divagação para entender que se o Ministério Público pode o mais, que é propor a ação penal pública, também pode o menos, que é investigar para trazer melhores subsídios para o processo a fim de obter a procedência de seu pedido (teoria dos poderes implícitos). O poder de investigação criminal do Ministério Público foi reconhecido por praticamente todos os tribunais brasileiros, inclusive pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal ao julgar o Recurso Extraordinário 593.727 em 14.05.2015, que teve reconhecida repercussão geral. Nesse julgamento ficou assentado que o Ministério Público dispõe de atribuição para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias de que assistem a qualquer indiciado ou pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos os advogados (Lei 8.906/94, artigo 7º, notadamente os incs. I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX), sem prejuízo da possibilidade – sempre presente no Estado Democrático de Direito – do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (Súmula Vinculante 14), praticados pelos membros dessa instituição.




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 é procurador de Justiça do MP-SP.

Revista Consultor Jurídico, 25 de dezembro de 2020, 18h31

Fazer pagamento de funcionário fantasma não é crime, diz STJ

 

SANÇÃO CIVIL OU ADMINISTRATIVA


Por 

O funcionário público que recebe remuneração e, supostamente, não exerce a atividade laborativa que dele se espera não pratica crime. Da mesma forma, pagar salário não constitui desvio ou apropriação da renda pública, pois é obrigação legal. Eventuais fraudes podem ser alvo de sanções administrativas ou civis, mas não de sanção penal.

Eventuais fraudes no caso de funcionário público que recebe, mas não trabalha, podem ser alvo de sanções administrativas ou civis, mas não de sanção penal
123RF

Com esse entendimento, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça trancou ação penal contra o prefeito de Ilha das Flores (SE), Christiano Rogério Rego Cavalcante, e contra um funcionário fantasma que teria sido contratado por ele, mas, segundo o Ministério Público, jamais desempenhou qualquer serviço público para o Município.

Ambos foram denunciados por pela prática do crime previsto no artigo 1º, inciso I, do Decreto-Lei 201/1967. A norma diz que comete crime de responsabilidade o prefeito que apropria-se de bens ou rendas públicas, ou desvia-os em proveito próprio ou alheio.

Primeiro, o STJ concedeu a ordem em Habeas Corpus para trancar a ação penal em relação ao servidor, por considerar que a não prestação de serviços não configura o crime indicado pelo MP.

Segundo o relator, ministro Sebastião Reis Júnior, a conduta descrita sequer poderia ser enquadrada no artigo 312 do Código Penal, que tipifica o ato de “apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio”.

Configuração, em tese, de falta disciplinar ou de ato de improbidade administrativa, disse o ministro Sebastião Reis Júnior
Rafael Luz/STJ

“Afinal, está pacificado o entendimento de que servidor público que se apropria dos salários que lhe foram pagos e não presta os serviços atinentes ao cargo que ocupa não comete peculato. Configuração, em tese, de falta disciplinar ou de ato de improbidade administrativa”, entendeu.

Posteriormente, Christiano Rogério Rêgo Cavalcante pediu extensão da decisão de HC com base no artigo 580 do Código de Processo Penal. A norma diz que, no caso de concurso de agentes, a decisão do recurso interposto por um dos réus, se fundado em motivos que não sejam de caráter exclusivamente pessoal, será aproveitada aos outros.

O pedido foi negado porque os corréus estão em situação distinta na ação. Um foi denunciado na condição de nomeado para exercício de função pública. O outro, na condição de gestor público, prefeito, responsável pela nomeação.

“Nessas condições, a denúncia até poderia descrever conduta do requerente no intuito contratar, às expensas do erário, funcionário privado, isto é, para utilizar o servidor público nomeado para a realização de serviços privados ao prefeito, mas isso não ocorreu. Assim, na minha visão, é caso de concessão da ordem de Habeas Corpus, de ofício”, concluiu.

A concessão cita jurisprudência da turma segundo a qual “pagar ao servidor público não constitui desvio ou apropriação da renda pública, tratando-se, pois, de obrigação legal. A forma de provimento, direcionada ou não, em fraude ou não, é questão diversa, passível inclusive de sanções administrativas ou civis, mas não de sanção penal”.

HC 466.378




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 é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 26 de dezembro de 2020, 14h26