"Eu não recearia muito as más leis, se elas fossem aplicadas por bons juízes. Não há texto de lei que não deixe campo à interpretação.

A lei é morta. O magistrado vivo. É uma grande vantagem que ele tem sobre ela" - Anatole France

terça-feira, 5 de abril de 2016

Quanto vale o sossego? Minha paz não tem preço


DIREITO DE PERSONALIDADE


Quem me dera poder viver na “vila do sossego”, de Zé Ramalho, ou mesmo numa “sonífera ilha”, dos Titãs, para poder desfrutar da paz e tranquilidade sonora, porque desta “Cidade do Barulho”, dos Demônios da Garoa, o que eu mais quero, como dizia Tim Maia, é sossego...
A palavra “sossego” significa “ato ou efeito de sossegar; ausência de agitação; tranquilidade; calma, quietude, paz” (Ferreira, 611). É, pois, um estado de fato, que configura a tranquilidade e paz em um determinado tempo e local. Não quer dizer, pelo bom senso, ausência de barulho, mas sim, de ruído além daquele permitido, reiterado (no sentido de prolongado), prejudicial à saúde e à vida do cidadão.
Juridicamente falando, consiste em um direito da personalidade, decorrente do direito à vida e à saúde. Ou, de outra maneira, é “direito que tem cada indivíduo de gozar de tranquilidade, silêncio e repouso necessários, sem perturbações sonoras abusivas de qualquer natureza” (Guimarães, p. 514). O direito ao sossego, em um segundo plano, decorre também do direito de vizinhança e também da garantia de um meio ambiente equilibrado.
Desse conceito, então, é possível afirmar que toda pessoa tem direito ao sossego. É direito absoluto, extrapatrimonial e indisponível. Por conseguinte, a sua transgressão pode acarretar responsabilidade jurídica, em tese, tanto na esfera cível quanto em matéria criminal, passando pelas áreas ambiental e administrativa. Contudo, abordaremos aqui somente as responsabilidades penal e cível, ainda que sucintamente.
Em se tratando de matéria criminal, a responsabilidade daquele que produz barulho excessivo pode ser enquadrada em duas situações distintas: a) como contravenção penal, pelo artigo 42 (perturbação do trabalho ou do sossego alheios) ou pelo artigo 65 (perturbação da tranquilidade), ambos do Decreto-Lei 3.688/41; ou b) como crime ambiental, disposto no artigo 54 da Lei 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais). A exposição, como dito, será breve, sem a intenção de esgotar a questão.
Abrindo-se um breve parêntesis, é importante ressaltar que é possível a caracterização de outros delitos, como, por exemplo, crime ambiental de “maus-tratos” (artigo 32, da Lei dos Crimes Ambientais), em relação aos ruídos emitidos por animais de estimação, quando derivados de abuso, mutilação, ferimento, maus-tratos dos animais. Porém, tal situação deverá ser verificada caso a caso.
Para caracterizar a contravenção penal de perturbação do sossego alheio (art. 42, LCP), é necessário que alguém perturbe o trabalho ou o sossego alheios a) com gritaria (berros, brados) ou algazarra (barulheira), b) exercendo profissão incômoda ou ruidosa em desacordo com as prescrições legais, c) abusando de instrumentos sonoros (equipamentos de som mecânico ou não) ou sinais acústicos, ou d) provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal que tem a guarda. A pena é de quinze dias a três meses de prisão simples ou multa. Sobre o assunto, eis o magistério de Silvio Maciel:
“A conduta é perturbar (incomodar, atrapalhar) o trabalho (qualquer atividade laboral) ou o sossego (repouso; descanso; tranquilidade; calma) alheios (de várias pessoas). Veja-se que a expressão ‘sossego’ não está tutelando apenas o descanso ou repouso, mas também o direito à tranquilidade das pessoas. Ninguém é obrigado a suportar barulho excessivo e ininterrupto provocado por vizinhos, bares, lanchonetes, locais de culto apenas porque o som é provocado antes do horário de repouso. Em outras palavras, a contravenção pode ocorrer também durante o dia.
A expressão alheios indica que a perturbação do trabalho ou do sossego de uma única pessoa não configura a contravenção. Somente se configura se atingir várias pessoas” (Maciel, p. 108).

Com relação à contravenção penal de perturbação da tranquilidade, incorrerá nela quem “molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável” (art. 65, LCP). Assim, aquele que incomodar a vítima (uma só pessoa, diferente do tipo penal acima), por acinte (intencionalmente, para contrariar a vítima), ou por outro motivo reprovável, pode ser responsabilizado penalmente por essa contravenção, à pena de prisão simples, de quinze dias a dois meses, ou multa.
A propósito, interessante a lição de Sérgio de Oliveira Médici:
“Todo homem tem direito à tranquilidade, no ambiente social em que vive, livre de incômodos descabidos, de achincalhe e de tantas perturbações semelhantes. É bem verdade que no mundo conturbado de hoje tal direito está cada vez mais afastado do ponto considerado ideal. A mecanização do homem, as grandes concentrações populacionais e outros fatores provocados pelo progresso descontrolado, fazem com que o desrespeito, a falta de cortesia, a má educação se tornem uma constante. Mas nem por isso a prática de atos definidos no artigo 65 da Lei das Contravenções Penais deixa de configurar uma infração punível. Pelo contrário: o dispositivo legal visa garantir a tranquilidade pessoal, cada vez mais difícil de ser obtida” (Médici, p. 214).

Sobre o crime ambiental de poluição sonora, dispõe o artigo 54 da LCA, que aquele que causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos a saúde humana, ou que provoquem a mortalidade de animais ou a destruição significativa da flora, a pena é de reclusão de um a quatro anos, e multa. A poluição, no caso deste estudo, é a sonora, caracterizada pela degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população e/ou lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos (artigo 3º, inciso III, alíneas “a” e “e” da Lei 6.938/81).
Todavia, há entendimento diverso, abraçado pela corrente do direito penal mínimo, no sentido de que inexistem tais infrações penais (v.g. a conduta é atípica). Isto é, essas transgressões penais foram “revogadas” diante da aplicação do princípio da intervenção mínima (ultima ratio). Tanto as contravenções penais, quanto o crime ambiental de poluição sonora, para essa teoria, podem ser solucionados por outros ramos do direito, como o direito civil (cessação do barulho, indenização etc.), o direito administrativo (multas e demais sanções administrativas) e o direito ambiental (restauração do status quo ante), sendo desnecessária a intervenção do poder punitivo do Estado para apuração desse tipo de responsabilidade penal.
Passando à responsabilidade civil, o fato é que o barulho excessivo fere o direito à personalidade, gerando danos morais e/ou materiais, ante aos danos à saúde e à vida, do ofendido.
Verificado o barulho excessivo produzido pelo ofensor, a parte lesada pode ajuizar ação cível para cessar o ruído (cessado o barulho, a ação é meramente indenizatória). Cito dois exemplos de ações individuais, cumuladas ou não com indenização por danos morais e/ou materiais, que podem ser ajuizadas na esfera cível: a tutela inibitória (nos termos do artigo 461 e parágrafos do Código de Processo Civil) e a ação de dano infecto (baseada no artigo 1.277 do Código Civil). Há outras ações, como a ação coletiva (ação civil pública – artigo 1º, inciso I, da Lei 7.347/1985, vide, por exemplo, Ap. Cív. 626.953-8, TJPR, Rel. Rosene Arão de Cristo Pereira, julg 02.03.2010 e Ap. Cív. 724.917-6. TJPR, Rel. Leonel Cunha, julg. 15.02.2011, interpostos pelo Ministério Público) ou a ex delicto, mas nos restringiremos às duas hipóteses anteriormente citadas.
Primeiro, vamos falar sobre a ação de dano infecto. Decorrente do direito de vizinhança, a actio infectum damni consiste na demanda para interromper a interferência prejudicial, no caso do estudo, ao sossego e à saúde dos moradores, provocados pela utilização de propriedade vizinha.
Nesse sentido, observem-se as palavras de Silvio de Salvo Venosa:
“A ação de dano infecto encontra sua estrutura também nos artigos 554 e 555 do Código anterior. O artigo 1.277 é genérico e diz respeito a qualquer nocividade ocasionada ao vizinho. O artigo 1.280 é exclusivo da relação edilícia. Essas situações têm por pressuposto a futuridade de um dano. Dano iminente. Não o dano já ocorrido, mas a possibilidade e potencialidade de vir a ocorrer (Venosa, p, 288).”
Em outras palavras, essa ação de dano infecto é utilizada para cessar dano iminente, entre prédios (no sentido amplo) vizinhos.
Já a ação inibitória é tutela específica da obrigação de fazer ou não fazer, com a finalidade de assegurar, ao ofendido, no caso, resultado prático equivalente, sob pena de multa diária ao réu, a fim de fazer interromper o ilícito causado e proteger o direito do ofendido. Luiz Guilherme Marinoni ensina que essa tutela é “essencialmente preventiva, pois é sempre voltada para o futuro, destinando-se a impedir a prática de um ilícito, sua repetição ou continuação” (Marinoni, p. 442).
Sobre o tema, eis o ensinamento de Nelson Nery JR e Rosa Maria de Andrade Nery:
“Tutela inibitória. Destinada a impedir, de forma imediata e definitiva, a violação de um direito, a ação inibitória, positiva (obrigação de fazer) ou negativa (obrigação de não fazer), ou, ainda, para tutela das obrigações de entrega de coisa certa (...) é preventiva e tem eficácia mandamental (Nery, p. 671, item 3).”
No caso, o pleito inibitório pode ser utilizado independentemente do dano em si. Basta a ocorrência ou a iminência de lesão ao direito (ou seja, ato ilícito), acrescidas da verossimilhança da alegação para que a tutela seja concedida. Há quem diga que a tutela inibitória é somente espécie de antecipação dos efeitos da tutela. Contudo, há sustentação, por outro lado, de que a tutela inibitória, neste caso, é espécie autônoma de impugnação do ilícito, de obrigação de fazer ou não fazer, em que engloba não somente o direito de vizinhança, mas também o resguardo do direito da personalidade, admitindo-se sua interposição contra toda espécie de injusto, independentemente de dano.
As duas ações, como dito acima, podem ser cumuladas com danos morais e/ou materiais. Ou pode, também, ser interposta unicamente a ação de reparação/indenização. Como há transgressão ao direito de personalidade (direito ao sossego, à saúde, à paz e à vida), nasce ao ofendido o direito de reparação por danos morais. Haverá danos materiais, caso demonstrado prejuízo material (ou mesmo lucros cessantes) com o barulho excessivo.
Para as ações cíveis, entendo, embora haja posicionamento diverso, que é desnecessária a realização de perícia. A prova do barulho excessivo, em desconformidade à legislação local (há municípios que possuírem sua lei sobre os limites toleráveis de ruídos, como, por exemplo, em Curitiba/PR, insculpida pela Lei Municipal 10.625/02) ou aos usos e costumes ou à analogia (quando da ausência de Lei Municipal, como em Ponta Grossa/PR – demonstrado pela Apelação Cível 3.0127208-2, do TJPR, rel. Domingos Ramina, julg. 15.12.1998), pode ser feita por testemunhas, provas documentais (gravações de vídeos ou áudios, boletins de ocorrência), indícios (como, por exemplo, comparação de filmagem de barulho oriundo de uma britadeira e estudo existente sobre o volume do barulho produzido por este equipamento), e outros meios de prova (artigos 342 e seguintes do CPC), admitindo-se, inclusive, a inversão do ônus da prova, quando cabível.
Sobre o tema, eis a jurisprudência:
“Ação de reparação. Danos morais. Direito de vizinhança. Perturbação do sossego. Danos morais caracterizados. Dever de reparar configurado. (...) 3. Diversas ocorrências policiais foram registradas dando conta da perturbação em decorrência de cantorias, utilização de instrumentos musicais, equipamentos de som, gritarias, reiteradamente e nos mais diversos horários. As testemunhas ouvidas também confirmam a ocorrência de tais fatos e o CD juntado aos autos apenas corrobora o que já foi comprovado. 4. Assim tem-se que os danos morais restaram devidamente configurados, pois a situação a qual foram submetidos os autores, efetivamente, ultrapassa a seara do mero aborrecimento, configurando verdadeira lesão à personalidade, passível, pois de reparação. (TJRS. Rec. Inom. 71002781334. Rel. Eduardo Kraemer. 3a. T. Recursal. Julg. 14.07.2011).”

Indenização – Danos morais – Excesso de ruídos – (...) – Dano configurado – Quantum indenizatório (...) A perturbação ao sossego é fato suficiente para causar dano moral, prejudicando a paz e o descanso do cidadão e resultando em aborrecimentos e desconforto à vizinhança (...) (TJMG. Ap. Cív. 1.0145.07.378752-8/001. Rel. Des. Evangelina Castilho Duarte. 14a. Câm. Cível, julg. 10.07.2008).”
O barulho, no entanto, deve ser diverso da normalidade (deve ser verificado de acordo com as circunstâncias que se deram: por exemplo, se ocorreu em data festiva – carnaval, ano novo – ou dia útil, se foi em horário noturno ou na hora do rush, se ocorreu no interior do apartamento ou em via pública etc.). Caracterizado o barulho excessivo, é possível, portanto, requerer, na esfera cível, a sua cessação como também a indenização por eventuais danos sofridos.
Consigne-se que o barulho não pode ser qualquer um. Deve ultrapassar o mero aborrecimento, do homem médio, por isso, excessivo. Deve ser uma circunstância anormal que, diante da gravidade do ilícito, venha causar incômodo às pessoas próximas (vizinhos/moradores, visitantes, trabalhadores etc.) do local.
Urge ressaltar também que “o abuso sonoro reconhecido nas ações judiciais, independe do fato de, por acaso, ter sido autorizado pela autoridade competente” (Nunes). Ou seja, mesmo que haja autorização (rectius, “alvará”) para o funcionamento (como, por exemplo, para construção de um imóvel, funcionamento de heliporto, shows e comícios etc.), é possível o ajuizamento da ação, pois a violação ao direito ao sossego, acarreta também a violação aos direitos à saúde, à vida e à paz, direitos da personalidade, intransmissíveis e indisponíveis.
Assim, não se pretendeu aqui fazer uma análise exauriente do direito ao sossego e suas consequências jurídicas. Apenas, mostrou-se de forma singular a existência do direito ao sossego, decorrente do direito à saúde, à vida e à paz, portanto, parte do direito da personalidade e suas implicações no campo penal e civil.
Agora posso voltar tranquilo às minhas músicas e leituras cotidianas ou o que mais eu quiser fazer, sem barulho excessivo, sem qualquer transgressão ao meu direito ao silêncio, ao sossego, à minha saúde. Bem versou o cantor Chorão do Charlie Brown Jr., que já sabia desde antes deste estudo: Quanto vale a paz? Quanto vale o sossego? Valor inestimável, minha paz não tem preço.
Referências
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Disponível em www.tjmg.jus.br. Acesso em 01.11.2011.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Disponível em www.tjpr.jus.br. Acesso em 01.11.2011.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em www.tjrs.jus.br. Acesso em 01.11.2011.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. São Paulo: Nova Fronteira/Folha, 1994.
GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri. Dicionário Técnico Jurídico. 9. ed. São Paulo: Rideel, 2007.
MACIEL, Silvio. Contravenções penais. In Legislação Criminal Especial. Col. Ciências Criminais, v. 6. Coord. Luiz Flávio Gomes e Rogério Sanches Cunha. São Paulo: RT, 2009.
MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil: processo de conhecimento. 7. ed. São Paulo: RT, 2008, v. 2.
MÉDICI, Sérgio de Oliveira. Contravenções penais. Bauru/SP: Jalovi, 1988.
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 10. ed. São Paulo: RT, 2007.
NUNES, Rizzatto. O direito ao sossego: uma garantia violada. In Terra. Publ. Em 30.03.2009. Disponível em http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI3666991-EI11353,00-O+direito+ao+sossego+uma+garantia+violada.html. Acesso em 01.11.2011.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: direitos reais. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2009, v. 5.
 é advogado criminalista e especialista em Direito Criminal.
Revista Consultor Jurídico, 22 de fevereiro de 2013, 8h40

quinta-feira, 31 de março de 2016

Contagem de prazos nos juizados especiais deve obedecer regra do novo CPC


OPINIÃO

Contagem de prazos nos juizados especiais deve obedecer regra do novo CPC

O novo tem que ser visto com os olhos do novo, aconselharam Lenio Luiz Streck e Dierle Nunes já na véspera da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil.[1]
A comunidade jurídica processual civil vê-se, desde 2009, quando se concebeu o Anteprojeto de CPC por iniciativa do Senado Federal, às voltas com acaloradas e riquíssimas discussões acerca da capacidade, ou não, de uma nova codificação processual civil produzir amplos e consistentes resultados no sentido de reduzir-se o tempo de tramitação das ações judiciais.
Este, não nos iludamos, é um dos mais visíveis desejos da sociedade civil quando se escuta falar da entrada em vigor de um novo CPC. O jurisdicionado, que em geral é leigo, almeja, fundamentalmente, a redução do tempo exigido para que se ponha termo à questão debatida em juízo.
Pessoalmente, cremos que o novo CPC representa, positivamente, um potente elemento de atualização da legislação processual, fundamentalmente porque permitiu, durante absolutamente democrático processo legislativo, colher dos mais variados setores da comunidade jurídica sugestões e proposições que permitiram assumirmos um resultado pungentemente satisfatório: temos, enfim, um CPC plural, porque rico em influências de diversos matizes e naturezas, provenientes de órgãos da magistratura, da advocacia privada, da advocacia pública, do Ministério Público, de setores acadêmicos relevantes com distintas origens geográficas e de diferentes orientações doutrinárias.
A implementação de um sistema de criação e de observância de precedentes, o estabelecimento da conciliação e da mediação como premissas básicas quando do processamento de uma ação, a criação de um rito obrigatório a ser observado relativamente à desconsideração da personalidade jurídica (em evidente e necessário respeito ao devido processo legal), a simplificação e a organização das formas de requerimento e de concessão das tutelas de urgência, dentre outras figuras, perfazem demonstrações de quão numerosos são os aspectos positivos deste nosso novo CPC.
A despeito de enxergarmos nosso novo CPC com muito otimismo e com sincera esperança de dias melhores, parece-nos que o problema do tempo do processo não perpassa, em termos de resolução, por uma nova codificação. Um novo CPC poderá representar, sim, potente analgésico para os males decorrentes do tempo processual, porém não nos parece que estamos diante da cura definitiva de tal patologia.
Ipso facto, um novo CPC não corrige, per se, dificuldades materiais, administrativas, organizacionais e de recursos humanos que assolam a estrutura judiciária e que, de tal arte, respondem, estas sim em caráter preponderante, pela maldição do tempo processual, se assim podemos chamar a incrível morosidade que acoima a tramitação de causas na Justiça.
Tais problemas são, e assim nos parece, em grande parte resolúveis em âmbito administrativo, correcional, orçamentário. O Conselho Nacional de Justiça e sua indefectível Meta 2 não nos deixam mentir: em virtude de tal iniciativa do CNJ, de color administrativo evidente, ocorreram impactos sobremaneira positivos na redução do tempo de um sem número de demandas que jaziam nos escaninhos forenses e que foram iniciadas antes de 2006.
Goste-se ou não, o fato é que temos um novo CPC. O momento de lamuriar a respeito e de vociferar por não ter esta ou aquela proposição levada adiante durante o processo legislativo respectivo já é superado. Temos a codificação processual nova, e tratar este novo CPC sem o menor laivo de boa vontade a respeito perfaz, e pedimos escusas aos que pensam diferente, mero exercício de masoquismo processual, afinal o nosso novo CPC não será: Jé é!
E seguimos asseverando que, da mesma forma que acreditamos que o novo CPC não pode suportar um encargo de impossível desincumbência para si (aceleração do processamento de causas), pensamos que o oposto é igualmente verdadeiro: nas situações em que o novo CPC dilargou prazos (novo CPC, artigo 219, cômputo de prazos em dias úteis apenas) ou estabeleceu recessos (20 de dezembro a 20 de janeiro), tais aspectos não podem, em absoluto, ser responsabilizados por atentar contra a razoável duração do processo.
A este respeito, somos convidados, pelas circunstâncias recentemente verificadas, a analisar criticamente a Nota Técnica 01/2016, emitida pelo Fórum Nacional de Juizados Especiais (Fonaje) em 4 de março de 2016.
De conformidade com tal nota técnica, aos prazos dos juizados especiais cíveis não se aplicaria o disposto no artigo 219 do novo CPC, que estabelece a contagem de prazos processuais apenas em dias úteis, desconsiderando-se os dias não úteis. Em suma, de conformidade com a nota técnica em relevo, haveria incompatibilidade entre o princípio da celeridade dos Juizados Especiais e o cômputo de prazos apenas em dias úteis (novo CPC, artigo 219), além de não se aplicar o artigo 219 do novo CPC à Lei 9.099/95 por ausência de expressa precisão a respeito no primeiro.
Com a devida vênia a quem pensa de maneira distinta, não procedem ambas as justificativas aduzidas pelo Fonaje em sua Nota Técnica 01/16 para afastar do rito da Lei 9.099/95 o cômputo de prazos apenas em dias úteis.
A primeira das justificativas erguidas na Nota Técnica 01/2016, qual seja, a de que princípio da celeridade que norteia a aplicação da Lei 9.099/95 a tornaria incompatível com a aplicação do cômputo de prazos exclusivamente em dias úteis, peca pela falta de amparo na razoabilidade e na verificação da prática quotidiana do que sucede no âmbito dos juizados especiais cíveis.
De fato, não é razoável ponderar que contar apenas dias úteis para fins de cumprimento de prazos no âmbito da Lei 9.099/95 tornaria o rito desta moroso, ou ainda mais moroso (pragmaticamente falando). É de domínio público que as ações judiciais que tramitam nos juizados especiais cíveis Brasil afora exigem meses e anos para que atinjam sua conclusão, meses e anos estes que não deixarão de ser, com o perdão pela repetição, meses e anos porque alguns poucos dias não úteis foram excluídos do cômputo de prazos!
Semelhante debate estabeleceu-se quando da tramitação do Projeto de novo CPC na Câmara dos Deputados: algumas poucas vozes levantaram-se contra o desprezo aos dias não úteis para fins de contagem de prazos sob a justificativa de que tal atrasaria o tramitar dos feitos. Manteve-se, porém, a regra do cômputo de prazos apenas em dias úteis pois considerou-se, com acentuada maioria de opiniões, que excluir alguns poucos dias não úteis do cômputo de prazos não ocasionaria demora, protelação ou morosidade dignas de nota, e não seriam estes parcos dias não úteis não computados que retardariam a atividade jurisdicional.
O que prevaleceu a respeito, aliás, foi a ideia de que é por vezes absurdamente desumana, para o jurisdicionado e para seu advogado, a prática de se considerar dias não úteis no cômputo de prazos processuais, pois tal conduta, por não relevar que em dias não úteis não há expediente em repartições públicas ou em muitas particulares (para fins de obtenção de cópias e de elementos de prova, por exemplo), pode representar nefasto cerceamento de acesso à justiça. Ou alguém duvida do que ora se afirma quando se está diante do temível — e absurdo — início do prazo de cinco dias às quartas-feiras para a prática de determinado ato processual, caso em que, a rigor, de cinco dias totais temos, quando muito, dois ou três úteis integrais, excluindo-se o dia da publicação, o dia da prática do ato e o final de semana?
E, se o processo for físico e tramitar em comarca longínqua, por vezes em outro Estado, o problema só faz agigantar, exigindo trabalho hercúleo para a parte e para seu advogado.
O segundo argumento erigido na nota técnica 01/2016 do Fonaje, no sentido de que as disposições do CPC novo apenas se aplicarão ao rito da Lei 9.099/95 nas hipóteses de expressa previsão permissiva a respeito (artigos 1063 a 1066 do novo CPC, em que não se inclui qualquer referência à contagem de prazos em dias úteis, apenas) igualmente nos parece robustamente equivocado, vênia concessa.
Dizer que a Lei 9.099/95 é imune ao cômputo dos prazos em dias úteis apenas (como determina o Novo CPC) porque se trata de lei específica e informada pelos princípios da celeridade e da razoável duração do processo, que não consistiriam em princípios informativos do novo CPC,[2] perfaz rematado equívoco, notadamente à luz do artigo 4º da nova codificação, cuja clareza é solar: “Art. 4º As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.”
Notem bem: hoje, induvidosamente, não é de maneira alguma possível afirmar-se que apenas a Lei 9.099/95 seria balizada pelo princípio da razoável duração do processo, e não o seria o novo CPC. Em face da clareza do artigo 4º do CPC novo, cujo teor foi acima reproduzido, é forçoso concluir que ambos, Lei 9.099/95 e novo CPC, têm como bússola os princípios da celeridade e da razoável duração do processo, o que elide qualquer adução de que seriam diplomas legislativos dotados de balizas díspares ou colidentes.
E há mais a ponderar: a Lei 9.099/95, como consta do teor da própria nota técnica 01/2016 que ora questionamos, não conta com disposições expressas acerca do cômputo de prazos apenas em dias úteis.[3]
Não contando com disposições expressas acerca dos prazos (a não ser o prazo de dez dias para interposição de recurso inominado e o de cinco dias para oposição de embargos de declaração), e especialmente não contando com regras expressas sobre como se contam os prazos, a Lei 9.099/95forçosamente socorre-se do regime geral do CPC para fins de estabelecimento de critérios de cômputo de prazos!
E desde 1995 funciona assim: os prazos inerentes ao rito da Lei 9.099/95 são computados obedecendo-se à regra geral de cômputo de prazos do CPC. E, se tal regra geral modificou-se, passando a ser considerados apenas os dias úteis (artigo 219 do Novo CPC), não se afigura admissível, casuisticamente e sob premissas inválidas, aduzir que a regra geral de cômputo de prazos do novo CPC não se aplicará ao rito dos Juizados Especiais Cíveis.
E, de remate, cumpre-nos trazer à discussão o disposto no artigo 1º do novo CPC: “O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código.”
As disposições do CPC hoje vigente, conforme seu primeiro artigo, são ordenatórias, disciplinadoras e balizadoras do processo civil como um todo, de maneira orgânica, assumindo verdadeira função organizadora do processo civil, não se aplicando apenas e tão-somente quando houver disposição expressa a respeito em sentido contrário, o que não ocorre na Lei 9.099/95 relativamente ao cômputo de prazos, dado ser tal lei omissa a respeito.
E, sendo omissa a Lei 9.099/95 a respeito de como se contam os prazos, obviamente deve ser aplicada a regra geral constante do artigo 219 do novo CPC, a saber, contam-se apenas os dias úteis!
Não se pode interpretar o novo com os olhos dirigidos ao que foi e não mais é. Não é intelectualmente admissível que se continue a divorciar o novo CPC da Lei 9.099/95 como se fossem diplomas legislativos contrastados em termos de princípios informativos: são, a rigor, diplomas positivamente conectados em termos de celeridade e razoável duração do processo, e o primeiro serve de fonte informadora à segunda, inexistindo qualquer descompasso entre ambos.
No que uma é omissa (Lei 9.099/95, no tocante à regra de cômputo de prazos), o outro lhe preenche, dando-lhe diretriz (o Novo CPC e seu art. 219), como sempre ocorreu naquilo que não contasse com contrariedade expressa na Lei 9.099/95 relativamente ao CPC.
Para perceber o novo, e devemos realmente percebê-lo, tem-se que usar a lente correta, a lente nova, desembaçada e com boa vontade, senão vai-se ver o novo como se velho fosse. E ver não é perceber, pois perceber é algo além, é extrair do objeto de atenção toda sua riqueza e sua razão de ser, é captar sua inteligência. E temos que perceber o nosso novo Código de Processo Civil.

1 STRECK, Lenio Luiz, e NUNES, Dierle. CPC: conclamamos a que olhemos o novo com os olhos do novo!, disponível em
2 Neste sentido, confira-se a seguinte passagem da nota técnica n. 01/2016, do FONAJE: “Desde sua entrada em vigor, a Lei 9.099 veio convivendo com o CPC de 1.973 sem que o procedimento nela estatuído sofresse influências da lei processual comum codificada, posto sustentar-se esta em princípios absolutamente inconciliáveis com os aludidos critérios informadores. Estabeleceu-se, assim, a convicção de que as disposições codificadas não se aplicam ao rito dos processos que tramitem em sede de Juizados Especiais Cíveis em sua fase de conhecimento, mas tão só - e no que couber - à fase de execução (cumprimento) de sentença, assim como, subsidiariamente, à execução de título extrajudicial (...) Todavia, forçoso é concluir que a contagem ali prevista não se aplica ao rito dos Juizados Especiais, primeiramente pela incompatibilidade com o critério informador da celeridade, convindo ter em mente que a Lei 9.099 conserva íntegro o seu caráter de lei especial frente ao Novo CPC, desimportando, por óbvio, a superveniência deste em relação àquela.”
3 Colhe-se da nota técnica 01/2016 a seguinte passagem a respeito do assunto: “Consabidamente, não há prazos legais previstos pela Lei 9.099 para a fase de conhecimento, de modo que todos os prazos são judiciais. A única exceção é relativa ao Recurso Inominado, para o qual prevê o prazo de 10 dias.”
 é advogado, professor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), da Escola Superior de Advocacia da OAB-SP e da PUC/SP, conferencista e escritor. Vice-presidente do Conselho do Centro de Estudos Avançados de Processo (Ceapro).
Revista Consultor Jurídico, 31 de março de 2016, 6h07

sexta-feira, 4 de março de 2016

Delegado de polícia tem legitimidade para celebrar colaboração premiada


A colaboração premiada consubstancia-se hodiernamente num dos principais mecanismos estatais para a efetividade da persecução penal. Prevista em diversas leis especiais, tais como a Lei 8.072/90 (artigo 8º), a Lei 9.613/98 (artigo 1º, §5º), a Lei 11.343/06 (artigo 41) e a Lei 9.807/99 (artigos 13 e 14), e até mesmo em tratados internacionais (devendo ser citadas a Convenção de Palermo e a Convenção de Mérida), teve sua disciplina inicialmente vinculada apenas à delação de coautores e partícipes. Mais recentemente, o legislador autorizou outras formas de auxílio, deixando claro que a delação premiada é apenas uma das espécies do gênero colaboração premiada. O instituto também evoluiu quanto aos prêmios legais: inicialmente restrito à redução de pena, hoje permite até mesmo o perdão judicial.
O regramento mais pormenorizado encontra-se hospedado na Lei 12.850/13. Essa técnica especial de investigação criminal (meio de obtenção de prova) [1] ganhou enorme notoriedade em virtude da operação "lava jato”, e tem sido bastante utilizada pelos investigados e réus para auxiliar na descoberta da verdade. Por isso mesmo, fica evidente sua natureza dúplice, que não se resume a mero instrumento persecutório do Estado-Investigação e Estado-Acusação, consistindo também em estratégia de defesa.
Pois bem. Uma questão discutida recentemente pela doutrina e cercada de alguma polêmica refere-se à possibilidade do delegado de polícia promover a famigerada colaboração premiada. Essa legitimidade, estampada de maneira inequívoca no artigo 4º, §§2º e 6º da Lei 12.850/13, e acolhida pelas cortes superiores e doutrina majoritária, vem sendo questionada especialmente pelos autores oriundos do Ministério Público. Sustentam que tais dispositivos da Lei de Organização Criminosa seriam inconstitucionais por ferirem o sistema acusatório [2]. Isso pois nenhuma providência probatória poderia ser efetivada sem a provocação das partes, em especial quando o titular da ação penal ainda não tiver se manifestado a opinio delicti.
Dentro do estudo do Direito, é essencial a leitura e reflexão sobre pontos de vista diferentes, uma vez que, não raro, os argumentos dos opositores servirão para embasar uma mudança de opinião ou, como no caso, reforçar os seus próprios argumentos. Nesse sentido, vejamos a posição do promotor Eduardo Araújo da Silva:
A lei é inconstitucional ao conferir tal poder ao delegado de polícia, via acordo com o colaborador, ainda que preveja a necessidade de parecer do Ministério Público e de homologação judicial, pois não pode dispor de atividade que não lhe pertence, ou seja, a atividade judicial de busca da imposição penal em processo-crime, vinculando o entendimento do órgão responsável pela acusação.[3]
Percebe-se que, talvez por uma influência corporativista, visando um indevido protagonismo do MP na investigação criminal, os autores citados invocam argumentos frágeis e que não encontram amparo em nosso ordenamento jurídico. Ora, se nenhuma providência probatória pudesse ser tomada sem a consulta do titular da ação penal, então nem o inquérito policial poderia ser instaurado pelo delegado de polícia, que também não poderia requisitar perícia, ouvir testemunhas, apreender objetos, etc. Se prevalecesse esse entendimento, a própria existência do inquérito policial perderia sentido.
Parece-nos que os defensores dessa tese se equivocam no próprio conceito de investigação preliminar, que objetiva, justamente, reunir elementos sobre a existência da infração penal e sua provável autoria, prescindindo, nesse contexto, de qualquer parecer do titular da ação penal, devendo desenvolver-se de maneira autônoma e imparcial, sem qualquer compromisso com as partes do processo, mas apenas com a verdade e com a justiça[4].
A presidência do inquérito policial é exclusividade da Polícia Judiciária, como não se cansa de afirmar a Suprema Corte.[5] O Tribunal da Cidadania caminha na mesma trilha no sentido de que a presidência do inquérito policial cabe tão somente ao delegado de polícia, sendo vedado aos membros de outras instituições, a exemplo do Ministério Público, presidir o procedimento.[6]
Sendo assim, atento ao fato de que o delegado de polícia é o titular do inquérito policial, o legislador lhe conferiu as ferramentas necessárias para o exercício desse mister. Desse modo, sempre que a autoridade de polícia judiciária vislumbrar a necessidade da adoção de uma medida cautelar, que, em regra, só pode ser concedida pelo juiz, ele deve se valer de uma representação para provocá-lo.
Nesse sentido, o representante do Ministério Público deverá ser ouvido nos casos em que houver representação do delegado de polícia pela decretação de alguma medida dessa natureza. Isso significa que o órgão ministerial deverá ofertar um parecer, vale dizer, emitir uma mera opinião sobre o caso representado, sem que, com isso, o Poder Judiciário fique vinculado à sua manifestação.
Aliás, tendo em vista o caráter imparcial do inquérito policial, o desenvolvimento de suas atividades ficou sob a incumbência de uma instituição sem qualquer vínculo com o processo posterior, o que garante a independência e a legitimidade das investigações. Afinal, como poderia o Ministério Público, como parte da relação processual, conduzir a investigação com a devida isenção se ele já tem em mente uma futura batalha a ser travada durante o processo?
E não se utilize o malfadado argumento da “parte imparcial” para sustentar uma ilusória imparcialidade do parquet. Como ressaltado pelos tribunais superiores, o Ministério Público, embora seja entidade vocacionada à defesa da ordem jurídica, não atua de forma imparcial no âmbito penal, dada a parcialidade que lhe é inerente.[7]
Com efeito, é bastante perigoso o discurso de que esse sujeito processual é imparcial e sempre representará a solução justa e correta, e acaba por enfraquecer o postulado da presunção de inocência.[8] Considerar o MP ao mesmo tempo um “advogado sem paixão” e “juiz sem imparcialidade”, nas expressões de Calamandrei[9], não parece ser positivo para a garantia de um processo penal verdadeiramente democrático.[10]
O delegado de polícia, como presidente do inquérito policial, é a autoridade mais indicada para saber quais as necessidades da investigação em desenvolvimento, sendo que a utilização de medidas cautelares constitui um dos possíveis caminhos a serem trilhados na busca pela verdade. Desse modo, se a adoção de tais medidas ficasse condicionada ao parecer do Ministério Público, isso significaria que a própria investigação ficaria vinculada a este órgão e sob o seu controle, sepultando a um só tempo o artigo 144 da CF e a Lei 12.830/13.
Consigne-se, ainda, que, para formar seu convencimento jurídico acerca dos fatos, a autoridade policial precisa das ferramentas necessárias para a investigação. Desse modo, se condicionarmos a sua representação ao parecer favorável do titular da ação penal, nós estaríamos, por via oblíqua, impedindo-o de encontrar os fundamentos indispensáveis para a formação da sua decisão final, alijando por completo a investigação.
Com o objetivo de reforçar os argumentos exposto, entendemos que a teoria dos poderes implícitos, sempre invocada pelo Ministério Público para sustentar a sua legitimidade em realizar atos de investigação criminal, serve para demonstrar a desvinculação entre a representação do delegado de polícia e o parecer do dominus litis. Ora, se a titularidade da investigação criminal foi conferida às polícias judiciárias, tendo em vista que a adoção de medidas cautelares constitui ferramenta indispensável ao correto desenvolvimento desse mister, condicioná-las ao parecer favorável do Ministério Púbico seria a mesma coisa que retirar as ferramentas imprescindíveis à investigação, fazendo com que a própria existência de uma polícia investigativa perca o seu sentido. Em outras palavras, se o legislador constituinte incumbiu às polícias civil e federal o protagonismo na investigação de infrações penais (atividade-fim), implicitamente ele também lhes conferiu os meios para o desempenho de tão importante missão (representação pela decretação de medidas cautelares como, por exemplo, a interceptação telefônica, a prisão preventiva e a colaboração premiada), como grifado pelas cortes superiores. [11]
Ao tentar defender uma tese aparentemente institucional, os autores citados asseveram que o delegado de polícia não é parte no processo, não possuindo, destarte, qualquer encargo probatório. De fato, a autoridade policial não tem o ônus da prova no processo, justamente porque não é parte, mas uma autoridade imparcial compromissada apenas com a busca pela verdade de um fato aparentemente criminoso. Isso não significa, todavia, que os elementos probatórios produzidos no inquérito policial não possam fundamentar a sentença final[12].
Concordamos que, em regra, a capacidade postulatória de provocar o juízo só deve ser conferida às partes do processo. Contudo, nada impede que o legislador, do alto da sua soberania, confira uma legitimação extraordinária a uma autoridade que não seja parte no processo. Trata-se, nesse caso, de uma "capacidade postulatória imprópria", uma verdadeira legitimatio propter officium, ou seja, uma legitimidade em razão do ofício exercido pelo delegado de polícia, que tem a função de atuar como “os olhos” do Juiz nesta fase pré-processual, um verdadeiro longa manus do Poder Judiciário na preparação para eventual persecução penal em juízo. É exatamente isso que ocorre no caso da colaboração premiada!
Nesse ponto, vale destacar as lições de Rogério Sanches e Ronaldo Batista ao discorrer sobre a representação do delegado de polícia visando à concessão de perdão judicial ao investigado colaborador. Apesar das críticas de parcela da doutrina, os autores sustentam que o ato de representar, em tais casos, está inserido no âmbito regular das atribuições do delegado de polícia, assim como ocorre na representação para decretação de prisão preventiva, por exemplo.
Contudo, Sanches e Batista asseveram que o juiz não fica vinculado aos requerimentos das partes e nem à representação do delegado de polícia, podendo, inclusive, optar pela concessão do perdão judicial no ato privativo de sentenciar. E concluem: “Ora, se o favor legal pode mesmo ser concedidoex officio, não vemos razão, com a devida vênia, para impedi-lo apenas porque sugerido mediante representação da autoridade policial”.[13]
Noutro giro, é preciso sublinhar um viés da colaboração premiada muitas vezes esquecido, qual seja, o de “recurso” inerente à ampla defesa (artigo 5º, LV da CF). Não é exagero afirmar que constitui direito subjetivo do investigado ou do réu a iniciativa de propor não só ao promotor de justiça, mas também ao delegado de polícia, o acordo de colaboração premiada, a fim de reduzir ou afastar a pena diante da real possibilidade de ser aplicada uma severa sanção penal ao final do processo, o que reforça a natureza dúplice desse instituto.
Obviamente, não há direito líquido e certo ao recebimento do benefício, porquanto a apreciação da colaboração premiada submete-se à regra da corroboração,[14] vedando-se a corroboração recíproca ou cruzada.[15]
Não se pode realizar uma análise opaca e isolada do artigo 129, I da Constituição, ignorando-se o artigo 144 da Carta Maior e olvidando-se do mais importante princípio de interpretação constitucional, a saber, a unidade[16]. Esse postulado exige que o hermeneuta realize uma interpretação sistemática dos comandos da Constituição, evitando a apreciação isolada de normas constitucionais.
Nesse sentido, os dispositivos constitucionais, ao mesmo tempo em que atribuem ao Ministério Público o dever ajuizar ações penais, autorizam a polícia judiciária a protagonizar as investigações criminais, valendo-se de todos os meios legais necessários para tanto. O constituinte em momento algum conferiu ao MP o poder exclusivo de deliberar acerca da necessidade de uma investigação criminal ou sobre a conveniência de tal e qual instrumento persecutório. Tornar vazias as atribuições do delegado de polícia por meio da concentração de poderes nas mãos do MP sobressai-se como perigosa manobra que não interessa a um processo penal equilibrado.
Diante do exposto, concluímos que o parecer do Ministério Público não pode condicionar a decretação de medidas cautelares provenientes de representações do delegado de polícia, sendo que os entendimentos contrários prejudicam a investigação criminal e colocam em risco a própria função das polícias judiciárias, ameaçando, outrossim, o correto exercício do direito de punir pertencente ao Estado. Isso não significa, todavia, que oParquet não possa se manifestar sobre a necessidade das medidas, pelo contrário. Como fiscal da lei, é até recomendável que o Ministério Público se manifeste, mas em um contexto opinativo, sem que isso possa vincular de qualquer forma a decisão do Poder Judiciário.

[1] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 760.
[2] DE GRANDIS, Rodrigo. A inconstitucional participação de delegados de polícia nos acordos de colaboração premiada. Disponível em:http://jota.uol.com.br/rodrigo-de-grandis-a-inconstitucional-participacao-de-delegados-de-policia-nos-acordos-de-delacao-premiada . Acesso em 01.03.2016.
[3] ARAÚJO DA SILVA, Eduardo. Da inconstitucionalidade da proposta do delegado de polícia para fins de acordo de delação premiada – Lei n°12.850. Disponível em www.apmp.com.br . Acesso em 01.03.2016.
[4] Art. 2º da Lei 12.830/13.
[5] STF, Tribunal Pleno, ADI 1570, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 22/10/2004; STF, Tribunal Pleno, RE 593.727, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 14/05/2015.
[6] STJ, HC 45.057, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 21/09/2009.
[7] STF, RE 215.301, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 13/04/99; STJ, HC 154.093, Rel. Min. Jorge Mussi, DJ 09/11/2010.
[8] BADARÓ, Gustavo. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 217/221.
[9] CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, advogados. Lisboa: Clássica, 1960 p. 59.
[10] RAMOS, João Gualberto Garcez. Audiência Processual Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 316.
[11] STF, HC 107.644, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 06/09/2011; STJ, RHC 25.475, Rel. Min. Jorge Mussi, DJ 10/06/2014.
[12] Art. 155, CPP: O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas(grifamos).
[13] CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Crime Organizado. Salvador: Juspodivm, 2014, p.54.
[14] Art.4º, §16 da Lei  12.850/13; STF, HC 75.226, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 19/09/1997.
[15] BADARÓ, Gustavo. O valor probatório da delação premiada. In: Consulex, v. 19, n. 433, p. 26-29, fev. 2015; STF, Pet 5.700, Rel. Min. Celso de Mello, DP 24/09/2015.
[16] NOVELINO, Marcelo. Manual de direito constitucional. São Paulo: Método, 2014, p. 202.
Francisco Sannini Neto é delegado de polícia do Estado de São Paulo, mestrando em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. É professor da Graduação e da Pós-graduação da UNISAL/Lorena.
 é delegado de Polícia Civil do Paraná, mestrando em Direito pela Uenp, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UGF e em Segurança Pública pela Uniesp. Também é professor convidado da Escola Nacional de Polícia Judiciária, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná, da Escola da Magistratura do Paraná e da Escola do Ministério Público do Paraná e professor-coordenador do Curso CEI e da pós-graduação em Ciências Criminais da Facnopar.
Revista Consultor Jurídico, 4 de março de 2016, 6h01